Não há quem não tenha lido “O Pequeno Príncipe” de Saint- Exupéry, penso.
Pois bem. Uma bela cena, entre muitas, foi do encontro da raposa com o Pequeno Principe. A raposa quer ser amiga do Pequeno Príncipe e, para isso, precisa ser cativada. Explica que os homens compram tudo pronto nas lojas. E como não existem lojas que vendem amigos, os homens não têm amigos.
Inspirada nessa cena, fiz o poema “Feira Inútil”, publicado em 2007, no livro “Sal, Pimenta e Ternura.”. Fui ao shopping tentar comprar um amigo. Fui todos os dias e, nada. Então, feira Inútil.
Mas esses dias li um artigo sobre Inteligência artificial que me deixou perplexa. Antes, uma brincadeira de comprar amigos, com base numa ficção, agora é real?
Sim, compra de amigos, namorados. Real, aliás, virtual.
Camila Brandalise, do UOL, tem diversos artigos sobre esses relacionamentos estranhos. Estranhos pelo menos para mim. Claro que já fiz curso sobre inteligência artificial, para provas em processos, já li muito sobre isso, e acompanho o desenvolvimento da tecnologia, que pode até escrever teses de doutorado, dissertações de mestrado, crônicas etc.
Mas essa de escolher um amigo ou namorado AI?
Pois bem. Camila Brandalise afirma que se relacionou com um AI feito sob medida por ela. Escolheu até a roupa que ele usaria, pagando R$ 109,00 (cento e nove reais) por mês, no aplicativo Replika.
“No Replika, o usuário escolhe entre namorado, marido, irmão e mentor — todos pagos. De graça, só a opção amigo”, diz a repórter.
Segundo a reportagem, no Brasil, são mais de 100 mil usuários atualmente.
Uma usuária, em outro artigo, disse que, depois de dois meses de conversa com a Avatar que ela inventara, acabou um relacionamento de dois anos com um humano, porque descobriu como gostava de ser tratada.
Brandalise conta que procurou a psicóloga Ana Canosa e perguntou se estava doida. Resposta: “Tudo está na sua cabeça. O que aparece é o seu próprio julgamento sobre você, sobre seus desejos, suas vontades. O julgamento da IA, mesmo, nunca vai vir”, disse.
Diogo Cortiz, professor na PUC-SP, doutor em tecnologias da inteligência, design digital e especialista em neurociência, citado pela repórter, afirma que, em dez anos, esses relacionamentos serão comuns, porque a evolução é muito rápida e assusta até os pesquisadores da área.
Segundo esse professor, relacionamentos do tipo são bons para quem não aceita o diferente, opiniões divergentes, não tolera conflito, já que faz o robô à sua imagem e semelhança.
Fico até com medo, quando ele alerta que “(…)questões sérias vão surgir. “Quem desenvolve essa tecnologia não está preocupado com a parte ética. Vai ter startup explorando a solidão e o abandono alheio e ganhando com isso”.
Pior é que a solidão campeia por esse Brasil afora. Até perto, muito perto de nós. Aí está o perigo, sim.
Eu leio, leio, esses artigos, fico perplexa e penso: Eu, hein? Amigo virtual? O imaginário da minha infância foi-se, faz tempo…
Prefiro meus amigos humanos, mesmo os doidos, como já disse, com opiniões divergentes, briguentos etc. Mas esse bicho aí? Tô fora!
Maria Francisca – novembro de 2023.
Ref. ‘Namorei inteligência artificial por 2 meses’: dá para amar um robô? (uol.com.br)
Escrevo minha história
A cada dia, desde que nasci.
Caos e cosmos.
De um lado, trevas, sombras
De segredos invioláveis
Solilóquio indevassável
Sofrido, remido.
De outro lado, luz, silêncio,
Ajoelhada em oração
Longe do pedestal.
Na solitude, escrevo
Medito, leio, encontro-me.
Mas na solidão nasci
Na solidão vou morrer
Sem remédio, sem egrégio.
Maria Francisca – outubro de 2023.
Marcos Alencar, em crônica no jornal” A Gazeta” disse: Nem todas as filas são obra do diabo” e enumerou algumas filas que considerou interessantes.
Ninguém gosta de filas, eu sei, e eu também não gosto.
Já Cândido Urbano, de Carlos Eduardo Novaes, era um urubu que queria ser gente e foi informado pelo Velho Noé, o homem malcheiroso (“do ponto de vista dos homens”, segundo Cândido), que a primeira experiência que deveria passar seria entrar numa fila. E uma fila bem grande. E um dia, desolado, por não encontrar emprego na cidade, lembrou-se do velho e foi em busca de uma fila, “porque todo homem que se preza, já entrou numa fila”.
E não há escapatória, mesmo, nos dias atuais. Aonde se vai, há fila. Nas ruas, filas e filas de carros (haja paciência!), nos supermercados, idem, nos pontos de ônibus, nem se fala…
Outro dia, a fila dos idosos no supermercado estava insuportável. Como sempre, é a mais lenta. Demoram para encontrar o cartão, para ver se o preço está certo no monitor, resolvem conversar com o caixa etc. Quanto mais idoso, mais a fila demora.
Era tanta gente que muitos embarcaram noutra fila.
A propósito, vi uma reportagem sobre a redução da fatia da população com menos de 30 anos. Menos da metade do povo brasileiro é composto por jovens. Os filhos aguardam a consolidação da carreira e, portanto, ter filho fica para mais tarde. Essa atitude acaba por diminuir a quantidade de crianças nascendo. Um amigo, à minha pergunta se não tinha netos, respondeu, rindo: meus filhos abriram o parque de diversão e fecharam a fábrica. Era uma brincadeira, claro, mas parece ser verdadeira essa assertiva, porque por todos os lados há idosos.
Pois bem. Na fila para a qual muitos migraram no supermercado, havia vários idosos. Era daquele tipo de caixa a que pode passar apenas quem tem até 10 volumes.
Nesse ambiente, escutar conversa sobre idosos acaba por ser um assunto engraçado.
Como demorava muito, muitos conversavam, riam, contavam casos etc.
Uma senhora começou a reclamar. “Que coisa! Esse povo não tem um pingo de respeito. Uns vêm para essa filha com um monte de pacotes e a moça do caixa, passa assim mesmo, nada diz e nós ficamos aqui, esperando, esperando. Por outro lado, precisavam colocar mais caixas de idosos. Vejam esta filha: tem mais velho do que tudo”.
Um senhor olhou pra ela e fechou a cara. Pensei: Lá vem briga, mas ficou nisso.
Ela arrematou: O que mais tem em Itapuã é velho e cachorro.
Foi a conta de todos começarem a falar ao mesmo tempo. Virou uma confusão, até que veio um senhor, tipo um chefe daqueles posudos e abriu outro caixa.
Eu ria a mais não poder, acompanhada de mais três senhoras e, por isso, demoramos a terminar a nossa compra, pois tivemos que entrar de novo na fila.
De tanto que ri, acabei concordando com Marcos Alencar. Nem toda fila é infernal.
E tome fila…
Maria Francisca – Final de outubro de 2023.
“O censor em mim saúda o censor em você.”
Giovana Madalosso
De vez em quando, ouço alguém falar que não lê isso ou aquilo ou que não assiste a determinados canais de tv, ou ouve alguma emissora de rádio, ou mesmo lê determinado um livro. E, pior, se você fala que lê, vê ou ouve os criticados, é um susto: Nossa! Tem coragem? Ou, pior: Estão “enfiando” ideias em sua cabeça.
Se a pessoa é minha amiga, converso. Explico: leio de tudo que penso valer a pena, da mesma forma, assisto a tudo, mas não “engulo” o que leio. Tenho senso crítico e aprendi desde criança a avaliar as minhas leituras. É ficção? É real? De onde vem isso? É novo? De que lado está esse escritor/escritora? É fanático? Porque todos sabemos que tudo depende de nossa vivência. De nossas relações com o mundo. De nossa educação. Como diz Leonardo Boff, “todo ponto de vista é a vista de um ponto”.
Dependendo do “implicante”, calo-me. Vou discutir com quem quer apenas impor seu ponto de vista?
Às vezes, faço-me de boba. Ah! Não se pode ver esse canal? Por quê? Qual posso ver? Qual é bom? Ah! Esse canal que fala isso e aquilo? Vou ver, então. A pessoa fica satisfeita e me deixa em paz.
Quando falam de política, então, fujo, não quero tratar de política. Ninguém discute sem paixão. E acaba ofendendo quem não concorda com suas ideias, por mais estapafúrdias que sejam. As ideias são dele, ninguém pode “roubá-las”. Se alguém tenta fazer algo diferente dele, é xingado, odiado…
Aqui entra a questão do Narciso.
A sociedade moderna fez com que “o espelho se tornasse o principal acessório do eu e a condição primeira de nosso processo de individualização. Eu, minha sombra, torna-se agora uma equação a três termos: sombra, minha e eu. É a sombra e o sentimento de propriedade sobre ela”, disse o Psicanalista Christian Dunker, (24.05.2022), na Folha.
O pior de tudo, na dicção do Psicanalista, é que o Narciso moderno precisa que o vejam. Daí vem o sentimento de dominação em relação a quem o vê. Como ele não consegue escutar, quem o ignora passa a ser seu inimigo. Eu conquistei alguns assim.
Carlos Heitor Cony (A casa do poeta trágico) conta a história do lorde inglês e seu mordomo James. Os dois estavam diante do janelão, olhando a paisagem da verde Inglaterra, quando James, hierático, ao lado da cadeira de rodas onde ficava seu amo e senhor, disse, para dizer alguma coisa: ‘”Acho que teremos chuva, my lord“. O lorde continuou olhando a paisagem, mas colocou as coisas em seu devido lugar: “Não, meu caro James. Eu terei a minha chuva. Você terá a sua chuva”’.
Então, fico com minha chuva, e deixo a dos outros para os James da vida, como disse Cony.
Maria Francisca – setembro de 2023
Não sei se falo ou se calo.
A indecisão me maltrata
Em meio à noite resvalo
Calar é ouro, falar é prata.
(Indecisão. “Sal, pimenta e ternura”)
Se nossas escolhas se limitassem no falar ou calar, como na estrofe do poema em referência, tudo seria muito fácil. Mas, na vida, há questões que causam até síndrome do pânico.
“Um dia é um tribunal incansável de decisões. A liberdade é uma condição dos humanos. Escolhemos sempre. Das questões mais distraídas aos assuntos que decidem vidas. Um médico escolhe o melhor tratamento. Um juiz escolhe os argumentos que fundamentarão sua decisão. Um motorista escolhe o caminho, e um padeiro o jeito de fazer o pão e alimentar. Um político escolhe entrar ou não em guerra. Mandela escolheu não revidar. Escolheu pacificar”. Disse Gabriel Chalita, no discurso de posse no PEN Clube do Brasil.
Sim. Uma das questões que sempre corroeram a nossa mente foi a indecisão. Quem deixou de fazer algo, com medo de não dar certo e ficou pensando depois: eu deveria ter feito isso e aquilo. E se tivesse sido assim?
Diz Natalia Ginzburg, citada por Julián Fuks, que o traço característico dos jovens, hoje, é a indecisão. E atribui esse estado de coisas aos pais, por não transmitirem firmeza aos filhos. Será?
Na escolha do curso superior, os jovens sofrem. Hoje, com algumas profissões em decadência, está cada vez mais difícil sentir firmeza na escolha. Escolho hoje, faço o curso que está em alta para empregos. Termino o curso e eis a profissão “engolida” por outra…
Suassuna, numa aula magna em evento de juristas, disse que escolheu fazer Direito, sem ter a mínima vocação, porque, na sua época, era difícil. Teria que estudar Direito, Medicina ou Engenharia. Era o que existia. E ele não tinha aptidão para nenhum dos cursos. Então, optou por Direito.
E assim costuma ser: Ou se estuda o que se tem, ou fica sem estudar. Seja por falta de oportunidade, seja por ausência de aptidão. Até saber qual a aptidão, é uma indecisão atrás da outra.
Eu sempre digo que, quanto a profissões, não fiz escolhas. Fui escolhida, sempre, mas é certo que as oportunidades surgiram e eu as acolhi. Então, se era aquilo ou ficar no marasmo, preferi seguir o que se apresentou.
Quando estamos em dúvida sobre dois caminhos a seguir, tememos perder, de acordo com a escolha. Ainda que fosse para querer tudo, ou não querer nada, haveria escolha. E sempre perdemos uma das opções.
Certa vez fiquei numa batalha para saber o que fazer. Trabalhava oito horas diárias, e fui convocada para um curso fora da cidade. Mas eu estudava. Se perdesse duas semanas de aula, perderia duas matérias, porque a matrícula era por disciplina e cada matéria durava uma semana inteira.
Conversei com o psicólogo da Faculdade. Ele, calmamente, me disse: Você terá que optar. Não tem como fazer as duas coisas, tem? Opção é isto: você sempre ganha algo e perde algo. Não se pode ter tudo na vida. Só não vai chorar depois…arrematou.
Aprendi. Em seguida, senti-me envergonhada da pergunta idiota.
Dúvidas também têm escritores com obrigação diária com textos para publicação, contam: muitas vezes, olham a tela do computador e ficam ali, olhando, olhando, sem saber o que escrever. Isto ou aquilo. Pior é quando nada aparece no intelecto. Julián Fuks confessa: Passo horas lendo distraídas mesquinharias e, quando por fim me sento para escrever, quando enfim me ponho a explorar profundezas, a superfície intocada da página só me devolve desdém.
Sir Henry Cole (interpretado por Patrick Stewart) no filme “A última nota”, à pergunta: “Qual seria a sua vida se tivesse feito outras escolhas? Respondeu: “Não seria minha vida!”
Quem dera todos pudéssemos realizar escolhas tão certeiras!
Mas para nós, pobres mortais, restam escolhas, por simples que seja o caminho a seguir.
E vamos em frente, pensando, como Cecília Meireles: “Ou isto ou aquilo”?
Maria Francisca – maio de 2023.
No tempo dos e-mails, recebi um vídeo que mostrava uma cena interessante. Um gari sobre um caminhão de lixo, cantava e dançava, agarrado à beira do caminhão. O trânsito intenso, o veículo ia devagar, e o homem naqueles gestos engraçados, chamou a atenção de uma moça que passava na calçada. Aí foi que ele fez mais graça. Surgiu um galho de flores, não sei de onde, e o gari fazia gestos, como se fosse dar as flores para a moça, enquanto dançava. A moça distraiu-se e bateu com a cabeça num poste. Malvada, eu ri a mais não poder.
Eu sou distraída em algumas horas. Se eu começar a ler algo, perco o fio da meada. Fico fora do mundo. Ou, melhor, fico no mundo da leitura. Outro dia, por exemplo, tive um cuidado enorme para preparar umas torradas mais incrementadas. Coloquei uma forma enorme no forno e fui para a biblioteca. Só o cheiro de queimado me fez acordar. Tinha fumaça para todo lado. As torradas viraram carvão.
Uma distração pode causar grandes desastres. Imagine se pegasse fogo em tudo… Eu não ri dessa vez. Fiquei danada da vida, brigando comigo mesma, chamando-me de burra e outros nomes feios.
O que tenho visto de distração…Quase sempre, e as mais engraçadas, são de homens idosos que se distraem, olhando para moças bonitas.
Há pouco tempo, um amigo me disse: Não tenho visto você no calçadão. Eu fiquei com vontade de dizer. Eu vejo você, mas está sempre ocupado admirando as moças bonitas. Mas me limitei a dizer: Talvez os nossos horários não estejam combinando.
Pois bem. Hoje, vi uma dessas distrações que me fez rir, mas, ao mesmo tempo, fiquei com pena. Eu retornava da caminhada, bem cedinho, toda molhada e passou por mim uma moça de roupa de ginástica bem justa, que realçava o belo corpo.
Um senhor vinha pela ciclovia e começou a olhar para a moça, de longe. Ao passar por ela, moveu o corpo para vê-la pelas costas, como sempre ocorre. Foi a conta. Desequilibrou-se, a bicicleta ficou pra lá e pra cá, atrapalhou os outros, e esborrachou-se na calçada. Levantou-se, todo sem graça, e saiu empurrando a bicicleta.
Uma atitude que costuma provocar muita distração é o uso de celular sem medida. O usuário, esbarra nas pessoas na rua, perdem o rumo e a noção do tempo, com o nariz enfiado naquela maquininha.
Como disse Contardo Calligaris (O sentido da Vida), “(…)é que o celular seja um equivalente geral de nossa dificuldade em prestar atenção ao mundo, ou seja, nossa constante distração”. Selfie, então…A pessoa quer imortalizar o evento na memória, mas acaba por imortalizar o momento em que deu as costas para o evento. Não aproveitou nada do que seria o prazer de estar ali, junto com amigos, e prestigiando o anfitrião. Preocupa-se em aparecer e volta as costas para o que tem à frente.
Mas uma distração incrível aconteceu com minha amiga Rosália e seu marido João. Um parente próximo veio visitar o casal. Depois da boa conversa, do café agradável, Rosalia foi ao térreo do prédio, para acompanhar as visitas que iam embora. Ficou ali uns cinco minutos e retornou.
Não conseguiu entrar. O marido, distraído, esqueceu-se que ela estava fora e trancou tudo. Não escutava os inúmeros chamados, de todos os lados: interfone, telefone dos vizinhos, gritos à porta…
Depois de três horas de tentativas, ela chamou o chaveiro 24 horas… Ufa! Entrou. O marido, tranquilo, assistia a um filme na TV. Ela entrou em casa, danada da vida. Passou por ele, bufando…
E veja o sentimento maior: “Fiquei fora de casa 3 horas e meu marido não sentiu falta de mim…”
Maria Francisca – julho de 2023.
Lembram de um quadro nos programas da antiga TV Cultura, que começava com esta frase “Senta, que lá vem história”?
Pois é. Hoje, eu que digo: Senta, que lá vem história!
Dias atrás, estava eu lá na Praia do Libanês, numa árvore amiga, onde faço meus alongamentos. Como sempre, fico escutando conversas alheias, fingindo que nem estou ali.
Três homens conversavam. Um deles, que depois vi que era vendedor de picolé que anda por ali sempre, disse: Eu estava sentado no banco, uma madame passou, olhou pra mim, eu sorri e ela disse: Não adianta pedir nada, nem comida, porque eu também estou com fome e correndo pra casa.
Ele teria respondido: Então, vamos dividir nossa fome e nossa marmita. Ela sorriu, sentou-se a meu lado. Eu tinha um prato de plástico, coloquei a comida pra ela, e comi na marmita.
Os outros dois homens admiraram-se: O quê? A madame almoçou com você? Então, não era madame. Ele: Estava toda chique, ora! E numa pose… Parecia uma rainha. Mas quando eu conto, ninguém acredita.
Continuei meu alongamento, vi que os dois homens se foram, e o vendedor de picolé veio para perto de mim e começou a conversar comigo.
Fico por aqui todo o dia, com meus picolés e procurando um bom papo. Quando me perguntam como pagar, eu respondo: Pode ser em dinheiro ou PicPay. Pix, não, porque minha mulher tem conta conjunta comigo e toma meu dinheiro. Só que eu nem tenho mulher. Sou viúvo. E deu uma risada.
Quando falo certas coisas, ninguém acredita. Nem acreditam que moro na Praia da Costa… Dizem, zombando: na Praia da Costa? Mora bem, hein? Só que eu não conto que moro aqui, no chique, mas compro tudo na Glória. Com o dinheiro de um tomate aqui, compro seis na Glória…
Eu dei uma risada.
Ele disse: Só de ver esse seu sorriso, valeu a pena vir para o calçadão, hoje. Vejo que não vou vender um picolé.
Nada? Vai embora sem vender nada?
Ele disse: Não vendo picolé, dona. Vendo sorrisos.
E foi-se mancando (só nessa hora vi que mancava), e empurrando seu carrinho de picolé.
Eu terminei meu exercício e fui pra casa, pensando naquele vendedor que parecia nada ter de material, mas tinha tudo: era de bem com a vida.
E nós reclamamos. Que lição!
Maria Francisca – maio de 2023.
Que a vida é tão breve e o tempo não espera ninguém
(Padre Fábio de Melo)
Esses dias, assisti a uma discussão no calçadão da praia.
Era um casal de idosos. Um deles tentava amarrar alguma coisa e o outro interferindo: Não é assim, é assado. A mulher falou alto: Deixe-me fazer do meu jeito. O homem: Não grita! Ela: Quem está gritando é você…
Não resisti e comecei a rir perto deles. Eles riram comigo e ela disse: 51 anos de casados dá nisso, né? Eu falei: Estou um pouquinho acima: 52 anos. Ela: Às vezes, a gente fica de saco cheio, não é? Eu: Sim, e eles também… Rimos os três e continuei meu trajeto.
Depois desse episódio, pensei: Como é difícil conviver! E se não temos ninguém, nós não aguentamos a solidão, porque o ser humano é gregário.
Não sei se redes sociais, a falta de espiritualidade (que nada tem a ver com religião), levam a isso, mas, cada vez mais, vemos brigas, ameaças de quem é de outra linha, seja política, seja religiosa… Marido, mulher, cada um de um lado, brigando.
No livro “O Banquete” de Platão, consta que Aristófanes fala, numa das reuniões, de um interessante mito sobre a origem do homem. Segundo ele, na origem, o homem era dotado de órgãos duplos. Mas esses órgãos eram muito ousados e resolveram atacar o Olimpo. Os deuses, resolveram vingar-se, e os homens foram separados em duas metades. Desde então, os homens vivem à procura da metade que perderam. Quando a encontram, encontram a felicidade.
Hoje, as pessoas brincam de procurar a cara-metade. E, muitas vezes a encontram e não a reconhecem. Por isso, acabam perdendo a chance de viverem felizes.
Já sabemos, como teria dito Bauman, que tudo é líquido, até o amor. Se tudo é líquido, não há relacionamento que perdure. A intolerância vigora em todos os sentidos. Melhor quando não descamba para a violência e para o abuso, como vemos tantos, nos casamentos, como nas amizades, e nos demais tipos de convivência.
Natalia Timerman, hoje, 02/04/2023, na Universa, sobre as manifestações raivosas no twitter: “Mas ah. Como é bom viver acreditando que quem erra são sempre os outros, só os outros, e que por detrás de um perfil não há suor nem lágrimas. E mesmo se houver: pelo menos não são os seus…. “
O inferno não poderá continuar sendo apenas os outros. Como disse Boff, hoje, “(…) somos seres portadores da dimensão de amor e de ódio, de luz e de sombra, da pulsão de vida e da pulsão de morte, do sim-bólico (que une) e do dia-bólico(que desune). Somos a unidade dialética destas contradições”.
Da mesma forma respondi à senhora no calçadão, não só nós ficamos cansados. Todos ficam. Ninguém pode sentir o que o outro está sentindo, por mais que tenha afinidade com essa pessoa e por mais alto que seja o grau de empatia por ela.
Um belo exemplo temos no livro utópico de Huxley, A Ilha, que já citei em crônica anterior. Na terra imaginária de Pala, a professora faz uma experiência com as crianças. Manda que cada uma belisque a outra. E haja ais e uis…Aí, ela pergunta: Vocês podem sentir o que cada colega beliscado está sentindo?
Por isso, que sejamos, pelo menos tolerantes, como forma de mantermos nossa sanidade e nossa convivência harmoniosa com quem quer que seja. E quando encontramos nossa metade perdida, tratemos de cuidar dela, para a felicidade das duas metades.
Como disse o Padre Zezinho, “Chamam a isso de utopia. Eu a isso chamo paz!
Então, dialogue! Não grite!
Maria Francisca – Início de dezembro de 2022.
Hoje, li um artigo de Júlio Pompeu, no site Terapia Política.
Dois empresários num bar. Um deles disse:
“-Pode chamar o sommelier?
-Eu sou o sommelier, senhor.
Não escondeu o olhar de surpresa. Olhou de alto a baixo, como quem avalia a carcaça da mercadoria em busca de defeitos e qualidades para avaliar se vale o preço. Entre indignação e resignação, concentrou-se na carta de vinhos.”
Realmente, o “Vale quanto pesa” ainda persiste. E não é só gente rica, empresário, que trata as pessoas assim, não.
Comigo já aconteceu esse tipo de coisas diversas vezes.
Um senhor que veio à minha casa, consertar o fogão. Atendi-o, mandei que entrasse, mostrei o fogão. Ele ficou por ali, olhou, olhou, depois, virou-se para mim e perguntou: Quem é a responsável? O senhor quer saber a dona da casa? Se for essa a pergunta, sou eu.
Ele fez tal qual o empresário. Olhou-me de cima a baixo e disse, com desdém: Você? Eu não me fiz de rogada. O senhor deve estar vendo novela demais. Só na televisão que as donas de casa ficam arrumadas, maquiadas e de sapato alto, viu, senhor? Ele abaixou a cabeça e não falou mais nada. Deu o orçamento, fez o trabalho, paguei e ele se foi.
Outra vez, na Academia de ginástica, um daqueles estagiários me perguntou, já sabendo a resposta, mas, de um jeito estranho: Francisca, você é juíza? Sim, por quê? Não parece.
Eu disse: Juiz tem cara diferente? Traz escrito na testa, ou eu teria que chegar aqui e nada falar com ninguém nem dar bom dia ou boa tarde? É porque eu brinco, converso? Estou errada? Por isso não pareço uma juíza? Menino, você ainda precisa viver muito.
Falei e saí de perto dele.
Numa outra vez (e houve muitas mais) eu estava no TRT, acompanhando alunos de escolas. Eu ficava de pé. Combinava com eles que, durante a sessão do Pleno, eles se manifestassem apenas levantando o braço, que eu iria até eles, para explicar as dúvidas naquele momento. Então, via um braço levantado, ia perto, abaixava e conversava baixinho com o aluno. Alguns universitários, com é o costume, ali estavam, cumprindo uma parte do estágio.
Um deles me chamou, apontou um papel com suas anotações da sessão e me disse: Pegue a assinatura pra mim. Eu, calmamente, disse a ele. Quem pode fazer isso pra você é aquele rapaz que está na sessão. Ele com aquela prepotência que acomete alguns estudantes de Direito, que se sentem muito importantes, disse: E você, faz o quê, aqui? Minha porção dia-bólica (como diz Boff) respondeu: Dê uma olhada ali na parede (onde estava minha foto) que você saberá. Os demais alunos riram e ele ficou muito sem graça.
Essas histórias repetem-se diariamente. E com pessoas diversas, em locais diversos. Sejam pessoalmente, sejam nas tais redes que de sociais nada têm.
Ainda mais, hoje, quando as “sensibilidades”, o ódio e as maldades estão à solta.
Muitos precisam tolerar olhares de desprezo, como o sommelier referido por Júlio Pompeu.
Comigo, não adianta olhar enviesado. Ainda tenho a minha respostinha na ponta da língua.
E os indefesos?
Maria Francisca – abril de 2023.