Por que será que questiono tanto?
Fico a me fazer essa pergunta de vez em quando. Tudo que vejo, questiono. Será que sempre tive cabeça de Juiz? Ou não seria de juiz e sim de policial? Ou nem um nem outro? Juiz já iria recebendo as informações, as provas, analisando e julgando e eu não fico julgando. Policial questiona para um objetivo prático, descobrir algo que seja uma transgressão. Eu questiono para entender. Questiono a mim mesma. Isso está certo? Como é que isso funciona? Às vezes, só no pensamento. Outra hora, esse pensamento vaza, como hoje.
Pior é que as minhas leituras ainda me atiçam. Por exemplo, “Amor pelas coisas imperfeitas”, do Monge Haemin Sunim.
A minha questão atual é sobre crianças em novelas. Você dirá: Mas é novela… Aí é que está. Tudo pela arte?
Na atual novela das 9 (que não é das 9…), há uma criança, o Tonho. Essa criança sofreu uma perda. A mãe sumiu por um tempo. O pai levou-o para uma casa rica e o menino passou a viver num luxo incomparável e com um carinho do mesmo tamanho do luxo. A mãe apareceu, mas o pai não o deixou com a mãe. O pai roubou do ricaço que iria ser seu sogro e mudou-se. Acabou aquele carinho que o menino recebia do ricaço. Agora, a mãe não é mais a mãe dele, em face de um DNA negativo. O pai é preso, a avó está noutro Estado e a criança acaba tendo que ir para um abrigo. Recebe a visita do ricaço e do professor amigo da família e fica a dizer: quero ir para minha casa… Cadê meu pai? Cadê minha mãe? Questões sem resposta.
Como é que fica a cabeça desse pequeno ator? Ele não está ali vivendo tudo como se fosse verdadeiro? Não estão ensinando a ele as expressões, os risos e os choros nas horas adequadas? Ele compreende que isso é uma arte? Uma brincadeira? Passa incólume por essas emoções?
Eu tenho visto alguns atores dizerem que, após acabar um trabalho em que se investiram de um personagem polêmico, como de uma pessoa má, têm que ficar um tempo sozinhos para se desvencilharem dessa ficção. Como é isso para uma criança?
Sem contar a frustração que já vi, em minhas leituras de jornais e revistas, sobre adolescentes ou adultos que, após trabalhar num personagem de muito sucesso, como criança, não conseguem, nem mesmo trabalho como ator, atriz. Porque o brilho conseguido gera uma expectativa, inclusive na família.
Será que o juiz que autoriza esse trabalho de uma criança analisa e acompanha essa situação? Não sei.
E assim fico a imaginar tudo que vejo. E não é pouca coisa esquisita que se vê, aonde se vá.
Por hoje, fica a questão: Tudo pela Arte?
Maia Francisca – abril de 2023.
Mentiram-me.
Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente.
Mentem de corpo e alma completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente
A implosão da mentira (Affonso Romano de Sant’ana)
Eu vivo em estado flutuante.
Acolho uma coisa como verdade, daí a pouco, a verdade vira mentira. O que penso ser mentira, daí a pouco vira verdade.
Não há notícia de jornal, impresso ou virtual, em que se possa acreditar, sem a eterna pergunta: Será que é verdade? Não se pode crer sequer nos sites que pesquisam se uma notícia, um vídeo, são verdadeiros.
Hoje, estava ouvindo aquela música de Oswaldo Montenegro, A Lista. Tem uma parte da letra que diz assim: Quantas mentiras você condenava/ Quantas você teve que cometer. Sim, quem nunca mentiu?
Dirá: Exame de consciência nesta hora? Por que não?
Até as mentirinhas antigas de nossas mães e avós para se livrarem de visitas indesejáveis. Vassoura atrás da porta que, muitas vezes, causaram saia justa, quando uma criança esperta dizia: Mãe, por que aquela vassoura está atrás da porta? Até aquelas por necessidade mesmo, por caridade a uma pessoa com doença grave, ou para esconder algum pequeno erro próprio ou alheio.
Em questão processual, tem-se a falácia da verdade real. Que verdade real que nada! Existe? Fatos são fatos, e a versão dos fatos depende do olhar e da interpretação de cada um. A verdade, ali, é apenas provável. O Juiz, coitado, tem que se contentar com a prova dos autos, que ele também vê e com os olhos que tem. Muitas pessoas pensam que o juiz tem bola de cristal. Quantas vezes já ouvi: Mas era mentira! E foi uma injustiça! Como saber? Prova testemunhal, então… E se a testemunha contou mentira, uma mentira tão bem contada que pareça verdade?
A insanidade tomou conta do mundo. E, para os desajuizados, nada mais irritante que o juízo, como diz Mr. Bahu, personagem de Aldous Huxley, em “A Ilha”. E nesse caso, “No país dos insanos, o homem perfeitamente integrado não se torna rei”. Da mesma forma, mostra José Saramago, em “Ensaio sobre a Cegueira” (que já citei em crônica anterior): Em terra de cego, quem tem olho não é rei.
Quando essa insanidade não prejudica a vida de alguém, tolera-se, mas o que se tem visto é a exposição indevida de pessoas, sujando a sua honra, sua dignidade. Ou quando se mente em processos, principalmente os criminais, empurrando um inocente para a cadeia, senão para a morte.
Saber o que é verdade está difícil, cada vez mais.
Segundo a parábola, atribuída a Jean-Léon Gérôme, escultor e pintor francês, a mentira, vestida de verdade, anda por aí, sem que ninguém a intercepte. E a verdade parece ter se escondido, com vergonha da nudez, mas talvez nós é que talvez tenhamos vergonha, ou medo, da nudez da verdade.
Na “Ilustrada” de março de 2013, Inácio Araújo, numa crítica ao filme A marca da maldade, de Orson Wells, diz que, a partir da disputa entre dois personagens Quinlan x Vargas, Welles lança a questão que atravessa toda a sua obra: onde está a verdade e, aliás, o que é ela? E complementa: “O mundo se abre a partir da dúvida sistemática lançada pelo incomparável Welles”
Mas quando Jesus se apresentou diante de Pilatos, por obra e graça dos “donos” do Templo, à pergunta do Governador, se Ele era rei, a resposta foi (segundo João-18,37): “Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da verdade que vim ao mundo. Todo o que é da verdade, ouve a minha voz”. Mas Jesus não respondeu à pergunta de Pilates sobre o que era a verdade.
Hans Kelsen (O que é Justiça?) disse que, cético, o Governador não esperava a resposta.
Se Jesus tivesse dito o que era a verdade, teria mudado algo? Não sei.
Afinal, como disse o juiz-poeta Francisco Barbosa, em Veritas: Busco verdade/Mas como sabê-la se todos dizem tê-la?/ Cada uma, dentre pares, nenhuma/ Melhor, então, manter a procura.
Há mentiras e Mentiras. Umas trazem consequências funestas. E, hoje, vivemos um tempo assim.
E seguimos flutuando…
Maria Francisca – março de 2023.
Hipster? Eu, Hein?
Nunca gostei de pintar os cabelos. Um trabalhão! Mas não queria ficar de cabelos brancos. Só dizia que aos setenta anos, acabaria com essa chateação.
Alguns falavam, mais as mulheres, por que você não clareia seus cabelos? Eu fazia uma brincadeira: Eu? Não quero ficar de uniforme. De uniforme, como é isso? Não dizem que as mulheres não envelhecem, ficam loiras?
Ríamos e a história acabava.
Só que cheguei aos setenta, passei dos setenta…e nada de deixar os cabelos brancos.
Um dia, acordei e decidi: vou deixar meus cabelos brancos. Fui deixando e gostando da experiência.
Fui a alguns eventos, tirei fotos, e fui me acostumando. De vez em quando, alguém me dizia: Ah! Entrando na onda…
Eu já andava aborrecida com esses comentários.
Hoje, li na “Folha” um artigo de Marcelo Viana, muito interessante sobre os hipsters: “Matemática explica o paradoxo ‘hipster”. Disse ele: (…) um certo número de inconformistas (hipsters), que rejeitam o padrão da maioria, frequentemente leva a que os inconformistas gradualmente sincronizem suas atitudes de tal forma que acabam adotando comportamentos idênticos, criando um novo tipo de conformismo”.
E contou um fato, mais ou menos assim:
Um homem que se considerava inconformista ameaçou processar a revista da “MIT Technology Review” acusando-a de ter usado como ilustração, sem autorização, uma foto roubada das suas redes sociais. A foto utilizada na publicação, entretanto, fora adquirida legalmente, e estava em seu estoque. Representava um hispter de barba, usando uma camisa estampada de flanela e um gorro de lã. Os dois homens e seus visuais eram idênticos! Mas não era ele, o revoltado.
Querendo ficar diferente, ficou igual.
Comigo estava ocorrendo a mesma coisa. A diferença é que não sou nenhuma inconformada. Quem quiser ficar de cabelo preto, branco, azul, que fique. Então, hipster não sou.
Eu não queria ficar de “uniforme, mas estava na onda de outras mulheres que resolveram fazer moda com os cabelos grisalhos. Ai, fui alertada por minha filha e caí na real. Afe!
Comecei a me achar triste ao espelho, achar defeito nos cabelos brancos que, até aquele momento estavam lindos, olhava, olhava e pensava. Ora achava-os bonitos, as pessoas estão elogiando, ora achava-os feios.
Até que saí de casa, sem pensar muito, e fui à cabeleireira.
Pintei, cortei e voltei feliz. Fui depressa ao espelho.
Depois da sua aprovação, raciocinei. Fiquei igual, de novo. Opa!
E, daí? Não sou hipster…
Maria Francisca – Janeiro de 2023.
Amigos, teremos tarde de autógrafo, dia 11 de fevereiro de 2023, sábado, na Academia de Letras de Vila Velha.
Endereço: Rua Vinte e três de maio, 83, Prainha, Vila Velha.
Conto com a presença de vocês.
Grande abraço.
“Assim os dias passarão
Virão as novas gerações
Outras perguntas, prováveis canções
Outro mundo, outra gente, outras dimensões
E na hora marcada, em algum lugar
Uma estrela virá pra lhe acompanhar”
(Renato Teixeira, Almir Sater e Paulo Simões)
Assistia a uma reportagem sobre as sequelas da covid-19 no jornal de A Gazeta e a entrevistada falou a expressão “derepentemente.” Foi o link pra eu me lembrar daquela música “Urubu tá comendo gente”. Só que a memória apagou o nome do cantor da tal música.
Vim para a biblioteca, liguei o computador para pesquisar, distraí-me, e cadê que eu me lembrava do que queria pesquisar? Fiquei na maior aflição.
Mais tarde, consegui, ufa! Fiz a pesquisa, vi que era o grupo” Baiano e os Novos Caetanos” formado pelos humoristas Chico Anysio, Arnaud Rodrigues e Renato Piau.
Às vezes, quero falar uma palavra, lembrar um nome de um escritor e tudo me foge. Converso com amigos sobre isso e todos reclamam da mesma situação. Uns, até bem mais novos do que eu, esquecem nomes, perdem as chaves, não sabem onde deixaram o carro etc.
Nesse dia, como computador continuava ligado no YouTube, fui embarcando naquelas músicas engraçadas do grupo “Baiano e Novos Caetanos” e esqueci o meu esquecimento.
Mas a noite sempre se incumbe do resto dos pensamentos não completados durante o dia. Então, voltei a pensar nesses lapsos de memória, fruto dos anos vividos e vencidos.
A figura de minha mãe surgiu na mesma hora. Já estava em idade avançada. E vinha tendo falhas na memória, sim, mas a primeira vez que ela não me reconheceu foi muito triste. Chorei, chorei.
Ao chegar lá, ela perguntou quem eu era. Um baque no meu coração. Quando eu disse quem era, falou: Você está brincando comigo e foi me interrogando sobre a família, nome do meu pai, dos meus irmãos, nada disso resolvia. Minha tristeza era tanta, que passei a me sentir culpada por não ficar mais perto dela, por morar longe. Depois, acabou lembrando-se de mim, mas compreendi que, dali para a frente, só iria piorar.
Tempos atrás, falávamos que a pessoa estava caduca.
Ouço, de vez em quando, pessoas falando sobre demência de alguém da família. Qualquer demência é triste, mas a doença de Alzheimer, penso, é mais triste, porque, além dos esquecimentos, traz dificuldade para a vida diária, e alterações comportamentais. Às vezes, ataca pessoas em plena vida ativa, como nos mostra o filme, do livro homônimo, “Para Sempre, Alice”.
A tecnologia ajuda-nos muitíssimo, mas tem seus prejuízos. Quem se lembra de números de telefone de amigos? Está tudo aí, no celular, para que procurar lembrar? Como gosta de dizer meu marido, a experiência dos idosos perdeu o sentido, porque o Dr. Google resolve tudo. E está à mão. Ninguém precisa se lembrar de nada. Por isso, vamos perdendo o interesse em arquivar na memória e ela vai perdendo o ritmo. Será isso?
Hoje, se esquecemos algo importante, principalmente perto de amigos, costumamos brincar, para disfarçar. Puxa! Estou sendo atacada pelo alemão!
A longevidade é um bem conquistado pela medicina, mas nem tudo é perfeito. Sabe-se.
Minha mãe, depois, bem mais idosa (101 anos), e acamada, o tempo presente era para ela apenas um “indefinido rumor”, como diz Borges em Aleph.
Na nossa cultura não se fala sobre velhice e morte, talvez por entendermos e temermos o caminho para o mesmo rumo, já que a vida é uma incógnita. O que nos espera? Como diz Zeca Baleiro, “Tu não sabes”.
E ninguém se livra da trágica erosão dos anos.
Maria Francisca – Janeiro de2023
A chuva dominou os assuntos e as reportagens nos últimos dez dias. Muita gente precisando de ajuda, uns correndo para ajudar, outros se enfurnando em casa para fugir, e outros, ainda, aproveitando-se da desgraça alheia. Sempre temos gente de todo tipo, em qualquer ocasião.
Triste, muito triste, é saber que muitas pessoas, depois de muita luta para conseguir montar sua casa, por mais simples que fosse, ficaram sem nada, porque a água não deu trégua. Ainda bem que ainda temos cristãos, no sentido amplo da palavra.
Pensando nessa chuvarada, imaginei o dilúvio de que fala o “Genesis”. “As águas subiram cada vez mais sobre a terra, até cobrirem as montanhas mais altas que há debaixo do céu (…) Morreu tudo que tinha sopro de vida…” Segundo o texto bíblico, o dilúvio durou 150 dias. Quando tudo acabou, Deus disse: “Enquanto durar a terra, jamais faltarão semeadura e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite”.
Noé, então, saiu da Arca, pisou em terra firme, abençoado por Deus! E com o arco-íris, que marcou a esperança, segundo o texto bíblico!
E Noé foi logo tratando de plantar sua vinha, cuidar da vida.
Voltando ao “hoje”, depois de dias e mais dias chuvosos, sem ver o sol, ele, o Rei, brilhava tanto que a vontade era sair correndo e aproveitar essa beleza de céu, sol e mar.
Quem conseguiu voltar pra casa, depois dessa chuvarada deve estar muito feliz.
Eu vi, por obra de minha caminhada matinal, a alegria dos donos de barracas que vendem de tudo no calçadão. Arrumando as mercadorias, esperando os fregueses e torcendo para o sol continuar, para que pudessem ganhar o pão de cada dia, naquela luta diária.
E eu, à medida que caminhava, sentia como se tivesse encontrado uma grande amiga que não via há muito tempo. Sorria, sorria, e quem me visse assim diria que viu uma doida, rindo para as paredes, aliás, para o vento.
E prometi que hoje nada iria me perturbar. Os mal-educados, eu nem iria ver. Os cachorros atrapalhando o caminho, da mesma forma. Pessoas brigando, falando lorotas, nem prestaria atenção.
Mas esse último propósito não vingou por muito tempo. Como teria dito José de Alencar, o cronista é como o colibri, esvoaçando de caule em caule. “Tudo lhe pertence, até mesmo a política”.
Então, já estava olhando para todos os lados, e escutando juízes, críticos literários, advogados, especialistas em política, todos com “muita sabedoria”, dando lições.
Mas nada disso me incomodou, tamanha minha alegria.
Um homem passou como um relâmpago, num skate de duas rodas, um enorme cachorro corria à sua frente, puxando-o. Na pista de ciclista. Fiquei ali olhando aquela beleza e, ao mesmo tempo, imaginando o perigo a que se submetia o homem e os ciclistas.
Daí a pouco, ouvi a notícia da chuva em Belo Horizonte, que estava deixando os moradores sem energia, derrubando árvores, causando alagamentos, enchentes e confusão no trânsito.
Nada é perfeito. Minha alegria esgarçou-se, para, em seguida, encontrar uma linda criança que me sorriu.
Foi como se eu tivesse visto um arco-íris.
Maria Francisca – dezembro de 2022.
Houve um menino e uma estrela
A estrela era o Menino
E o Menino era a estrela.
A estrela iluminava os caminhos
Para chegar ao Menino.
E o Menino dava luz à estrela
Para iluminar os caminhos
O Menino cresceu sendo estrela
A Estrela foi além.
Revolucionou o mundo
Com suas ideias e palavras.
Disse verdades, balançou estruturas
E sacudiu a história.
Arrastou multidões,
Revoltou-se com a miséria,
Com a doença, com a hipocrisia.
Denunciou, amou, sofreu.
Foi crucificado, morto e sepultado.
Mas ressuscitou como prometeu
E aí, está, entre nós, dentro de nós
Na nossa casa, no nosso trabalho
Se O quisermos receber,
Com o coração aberto,
Liberto das tristezas da vida,
Para alegrarmo-nos na paz
Que só Ele traz.
Maria Francisca – dezembro de 2018.
Relendo “Crônicas Escolhidas” de Machado de Assis, deparei-me com as “Balas de estalo’, logo no início do livro. São dez regras para uso dos que frequentam os Bondes. Uma delas fala da posição das pernas. “As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco”. Não se proíbe viajar de pernas abertas, acrescenta o cronista, mas o passageiro deve comprar dois lugares.
Pois bem, sempre que preciso comprar passagem, seja de trem ou de avião, alguém pergunta:
– Não quer cadeira no canto?
– Não, prefiro no corredor.
Esses dias, ao ver que eu comprara passagem, para ir a um evento, uma amiga me disse que muita gente, ela, inclusive, gosta de cadeira no canto, para poder desfrutar da paisagem. Eu também gosto, claro, mas, para não incomodar as pessoas que estarão no corredor, se eu precisar me levantar, desisto da janela. Podem estar dormindo, comendo…
Em verdade, o que me fez pensar assim foi um fato acontecido há anos.
Eu morava em Juiz de Fora e trabalhava em Ubá, cidades mineiras. Ia de ônibus todos os dias. Aquele tipo de ônibus que vai parando pela estrada, e onde acontecia de tudo. Todos conheciam o motorista e ele tinha a maior paciência com todos a ponto de andar um pouquinho com o ônibus, para ficar mais perto da bagagem (um enorme saco), a pedido de um passageiro.
Certa vez, uma abóbora caiu do guarda volumes interno, sobre a cabeça de uma senhora, fazendo um rombo na testa da criatura. Outra vez, uma garrafa de mel destampou-se e o mel começou a derramar-se, sem que ninguém notasse, escorrendo, sobre a roupa de um senhor, entrando nos seus sapatos etc. E eram pessoas que se encontravam no corredor do ônibus.
Eu costumava viajar no canto, porque minha viagem era completa, ou seja, o destino do ônibus era o meu, mesmo. Então, ia e voltava lendo, ou estudando, aproveitando o tempo da viagem.
Um dia, porém, eu ali no meu canto, o ônibus lotado, pessoas viajando em pé, onde não cabia mais nem um mosquito, um senhor sentou-se na beira, perto de mim, e, daí a pouco, eu estava espremida no cantinho, que nem conseguia me mexer, tanto que o homem se esparramou. Vi que não ia conseguir viajar daquele jeito, pena de chegar ao destino com a coluna torta e as pernas dormentes. Claro, ele não comprara o direito de uso de duas cadeiras, como ditara a crônica de Machado de Assis.
Então, falei: Senhor, por gentileza, pode chegar um pouquinho pra lá? Está muito apertado aqui.
Ele virou-se para mim e já senti o cheiro de bebida, pelo que até me arrependi de ter abordado o homem. Ele foi logo falando, de forma irônica, gritando:
– Ah! É madame! Quer espaço, né? Por que não compra um ônibus só para a madame andar bem livre? Tem dinheiro, né? Com um livro na mão, só pra parecer importante! Quer me ensinar alguma coisa? Não quero nem saber!
Falava, falava, e todos olhavam. Fui ficando incomodada…
Eu não tinha como sair dali. Ônibus entupido de gente. Então, a única saída, foi ficar olhando pela janela, disfarçar, como se não fosse comigo. Um policial que estava no ônibus olhou-me, fez um gesto do tipo, é doido? Eu fiz aquele gesto com a mão, mostrando que sim.
O que eu poderia fazer? Um escândalo? Fazer o bêbado ser preso? Fazer as pessoas pensarem que sou maluca também? Melhor fingir que não era comigo. E foi o que fiz.
Passaram-se alguns minutos, o homem dormiu. Tão logo o ônibus ficou mais vazio, bati no ombro dele e disse: Moço, preciso sair. Ele só resmungou, levantou-se e me deixou passar. Eu fiquei em pé, o resto da viagem.
A partir desse evento, nunca mais viajei em cadeira no canto, em qualquer meio de transporte público.
A memória do fato não perdoa. Sempre que preciso viajar e estou comprando passagem, ela pergunta:
– Vai passar vexame de novo?
Maria Francisca – final de novembro de 2022.
Ontem, li uma crônica do Ruy Castro sobre as palavras novas, substitutas de antigas, e a mudança do sentido de outras.
Então, já alerta por essas mudanças, fiquei em dúvida sobre esse título. Será que ainda existe a palavra pasmaceira?
Existindo ou não, é isto que sinto aqui no trem da Vale, depois de longo tempo sem viajar: pasmaceira.
É ruim, mas é bom, como dizia uma humorista faz tempo. Pode isso?
Pode. Não escuto conversa alguma, a não ser os anúncios do próprio trem. Era muito mais divertida aquela barulheira. Papos e mais papos e eu só bisbilhotando. E, depois, tome crônica…
Mas é bom, porque vejo que, diferente dos aviões, o trem cuida do distanciamento. Não fica somente no discurso, com aquela velha hipocrisia.
As cadeiras são marcadas, distantes, as bagagens reduzidas e gratuitas.
Então, fiquemos na pasmaceira, que, apesar de ajudar pouco nas minhas “belas” crônicas, cuida de mim, das pessoas que estão em viagem.
Como eu disse que a barulheira era mais divertida, ganhei um “presente” na viagem seguinte: Três famílias com nove crianças entre três e oito anos. Gritos, pulos, choro…Em pé, em cima das cadeiras, saltando de uma poltrona pra outra. Os pais? No maior cochilo. No estilo “não é comigo”. Só que daí a pouco apareceu o fiscal e disse: quem é o responsável por essas crianças? Um dorminhoco abriu os olhos e, mal o fiscal saiu, continuou tudo igual. O incrível foi uma criança, na hora do lanche, resolveu limpar a mão na minha calça.
Num determinado momento, dois meninos começaram a trocar tapas. Aí, sim, o pai do agressor acordou e “enquadrou” a criança…
Voltando às palavras antigas, converso, vez ou outra, com um amigo da minha idade. Rimos muito das palavras que ambos falamos e nos perguntando: Ainda existe?
Uma professora me falou sobre as gírias novas dos adolescentes. Em vez de falarem que fizeram algo, dizem: Fui lá e pá. Achei engraçado. As palavras caem de moda, as gírias caem de moda, e aparecem outras. Os professores têm que aprender até as novas gírias, para lidar bem com seus alunos.
Então, já alerta para essas mudanças, fiquei em dúvida. Será que ainda existe a palavra “pasmaceira”?
No mais, um tédio? Não. A palavra certa para mim é pasmaceira.
Em casa, primeira coisa: ainda existe a palavra? Nos dicionários, está. No Houaiss, consta: marasmo, pasmo, imbecil, embasbacamento. No dicionário, há a palavra. E a moda? Tem-se que seguir a moda, ora.
O detalhe é o seguinte: perguntei ao meu neto de 17 anos. E a um amigo de 45. O neto disse que não sabia o que era. O amigo disse que achava que significava vergonheira…
Em suma: a palavra pasmaceira caiu, mesmo, de moda.
Mal cheguei ao térreo do prédio onde morro, dia seguinte ao retorno da viagem, o porteiro veio me dizer que a filha, que estuda numa escola que visitei dias antes, perguntou se eu era uma senhorinha assim, tal etc.
Senhorinha? Que palavra é essa? Seria uma senhora pequena? Mas, não, ela queria dizer uma senhora idosa, como sempre tenho ouvido falarem.
Não é que esses dias um amigo me chamou assim? Contei pra ele que subi o morro do convento num domingo desses, como sempre faço e ele me disse: Nossa! Uma senhorinha subindo o morro do convento? Forte, hein?
Sabe o que respondi pra ele? Se você estiver perto de mim e falar essa palavra, dou-lhe um tabefe! Ele riu e disse: Não falo mais. Sou bobo?
Cada dia esse povo inventa uma expressão para os idosos. Ora é melhor idade, ora é terceira idade, agora senhorinha? Eu hein? Piora a cada dia? É sempre aquele famoso diminutivo para infantilizar o velho?
Prefiro a palavra idosa, como está na lei. Como disse Boff: a partir dos 60, somos oficialmente idosos. A lei não nos chama de senhorinha, nem de melhor idade, nem outra coisa qualquer.
Em suma: a palavra pasmaceira caiu, mesmo, de moda. No lugar, tédio. Idoso parece que ficou só na lei. Na linguagem falada, ficou senhorinha.
Ruy Castro tem toda razão. Palavras caem de moda e outras vão surgindo e, nós, pobres idosos, vamos ter que nos acostumar.
Mas senhorinha… Que palavra horrível!
Aviso aos navegantes: Detesto que me chamem assim.
Maria Francisca – setembro de 2021.
Caminhando contra o vento, com lenço e sem documento, no sol de quase primavera, como numa paródia do Caetano, vou ouvindo conversas aqui e acolá. Umas de raro proveito, outras, de nenhum, e outras, nem merecem uma pausa.
“Emprego? Não existe! Ouço. Ah! Emprego existe sim, só que ninguém quer trabalhar. Trabalho? Quero um emprego bom, mas só acho miséria.”
Desligo-me dos papos e vou olhando para aquele mar azul, com nadadores, mergulhadores e muitos, muitos barcos compridos, as tais canoas havaianas, aquele povo todo remando no mesmo compasso. Uma beleza de se olhar e o convite a perder-se em pensamentos e devaneios.
Sento-me num daqueles banquinhos e fico por ali.
Vejo-me criança, na minha cidade natal, sem mar, sem barco. Sem eira, nem beira. Mas brincava na areia, fazendo buracos e colocando água, como se estivesse sonhando.
Entretanto, à minha frente, uma senhora varria a calçada. Chamou-me a atenção, porque não usava o uniforme típico dos garis. Olhou-me e eu a cumprimentei. Foi a dica para ela puxar conversa.
Sentou-se ao meu lado e contou-me que morava sozinha e, de vez em quando, ia para o calçadão ajudar os garis na limpeza. E viu o preconceito que rola por ali. Eu fui a única pessoa que a cumprimentou. Conversou um tempinho e disse que precisava voltar pra casa, para fazer o almoço, pois esperava uma visita. Agradeceu, levantou-se e saiu.
Fiquei ali ainda um bom tempo, pensando como nossa boa educação caminha contra o vento, como somos preconceituosos. Todos o somos. Preto discrimina preto, pobre discrimina pobre, velho discrimina velho, mulher discrimina mulher e assim caminha a humanidade.
O preconceito é o pai da discriminação e “é filho da deseducação, daquele que não abre a cabeça (quando) observa o mundo”, segundo o historiador Severino Vicente, da Universidade de Pernambuco, citado em recente artigo de Mateus Pichonelli. Será que nosso narcisismo nos impede de ver o outro, centrando-nos em nossa forma canhestra de ver o mundo?
A questão do preconceito entrou na ordem do dia, em face de críticas aos nordestinos por certos políticos. Aí, todos falam. Mas temos discriminação dia a dia e nem vemos. A mulher é sempre alvo. Outro dia, por exemplo, escutei uma conversa atravessada (cronista ouve tudo) de um cara dizendo que o seguro de carro é mais barato quando as mulheres são as principais condutoras, porque elas dirigem mais o fogão e as panelas, e menos os carros. Meu estômago até revirou.
Uma questão recorrente é o sotaque. Carioca ri de mineiro, mineiro ri de carioca e de baiano, e assim vai. Quando morei em Salvador, uma colega de trabalho, todas as vezes que estava perto de mim, repetia tudo que eu falava, carregando no meu sotaque. Os esses e os erres eram sua predileção. Vocêsss, então…Um dia, numa reunião, eu falava e ela repetia. Subiu-me uma raiva tamanha que vociferei: QUER PARAR DE ME IMITAR? ISSO NÃO IRRITA SÓ A MIM, MAS A QUEM ESTÁ PRÓXIMO DE NÓS. PENSEI QUE SE CANSASSE COM O TEMPO, MAS CONTINUA. VOCÊ NÃO APRENDEU QUE ISSO É FALTA DE EDUCAÇÃO? Ela somente resmungou. Fiquei livre.
Numa escola, recentemente, no meu trabalho voluntário do TJC, fui com uma professora, falar para os alunos sobre assédio moral, discriminação etc. A professora falou muito bem, e deu seu depoimento sobre o que passou, quando estudante. Na hora das perguntas, um aluno disse: professora, se um colega ficar falando isso e aquilo comigo, posso quebrar a cara dele? Claro que lhe foi explicada a providência a tomar, mas eu me vi na pele daquele aluno.
Pois é. Nós adoramos ver um europeu ou americano no Brasil, mas a um venezuelano, torcemos o nariz. E eles, americanos e europeus torcem o nariz para nós. Até Gisele Bündchen, em jornal americano, foi chamada de “brasileira estourada”, “cabeça quente daquele jeito brasileiro”, numa clara atitude xenofóbica.
Devemos ter muito cuidado com o preconceito. Nossa cultura ensina que branco, loiro, principalmente, é rico, e moreno ou preto é pobre (quando não é bandido). Entrar numa loja e ser acompanhado o tempo todo, enquanto se olha os produtos é uma humilhação e já ouvi muitas vezes relato desse tipo.
Não consigo entender tanta discórdia. Como disse Rubem Braga, numa bela crônica, “quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços”, e ainda brigamos por sermos diferentes. E todos brigamos, uns mais, outro menos.
José Faleiro, preto, de periferia, escritor premiado, fala na crônica “A faxineira”, sobre uma mulher que ele sempre encontrava no ponto de ônibus, quando voltava da EJA. Apenas por a mulher ser preta, ele pensou que fosse faxineira num dos prédios elegantes perto dali. Conversando com a suposta faxineira, contando que fazia EJA (“quem sabe ela se anima volte a estudar também…”, pensou). Só que a mulher, alegremente, disse: Que maravilha! Você voltou a estudar e faz EJA? Eu sou professora naquela Universidade. Pois é. A suposta faxineira era formada em Letras, mestre e doutora. Aí, o queixo do preconceituoso caiu de vergonha.
É preciso que nossas cabeças se abram para observar o mundo, o outro, e lembrar que somos todos iguais, mas diferentes, no jeito, nos modos, no linguajar, uns bonitos, outros não tão bonitos, mas todos humanos e devem ser respeitados nas suas diferenças.
Caminhar contra o vento? Só na praia!
Maria Francisca – Início de setembro de 2022.