Peguei o livro Discriminação na estante, porque queria fazer uma pesquisa, mas parei no artigo de Márcio Túlio e deleitei-me com a leitura. Ele começa dizendo o seguinte: “Isonomia é hoje uma palavra mágica. Não, certamente, porque o mundo tenha se tornado mais igual: pelo contrário. Nos novos tempos liberais, cresce a distância entre negros e brancos, homens e mulheres, empregados e precários, proprietários e sem-tudo. Mas foi talvez por isso mesmo que a fome de igualdade aumentou. E a Constituição de 1988 soube captar essa mudança, dando nova ênfase a um ideal antigo”. Fala, ainda, o querido jurista, que, embora as constituições nem sempre sejam sinceras, porque cheias de discursos vazios, frases de efeito e tiradas poéticas, aí está o intérprete das leis para torná-las renovadas, aplicáveis e aplicadas.
A propósito, essa charge acima, muito bem-humorada, da Folha de São Paulo, de 07.11. 2008, quando a Constituição dita Cidadã completava 20 anos, mostrando que é tudo muito bonito e bom, mas, nem sempre o que está escrito vale na prática.
Mas essa dicotomia entre a lei e a prática não é novidade. Infelizmente, no Brasil, desde sempre, imperou a beleza da lei em confronto com o horror da realidade. Laurentino Gomes (1889) conta que Euclides da cunha, que era republicano, definira o Brasil como único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política. Segundo o famoso escritor de “Os sertões”, no relato de Laurentino, as instituições nacionais construídas no Império baseavam-se em conceitos políticos e filosóficos importados de fora, com nenhuma similitude com a realidade observada nas ruas de um território pobre e atrasado. O Brasil da teoria era diferente do Brasil da prática. Era e ainda o é, Senhor Euclides da Cunha.
As nossas leis são ótimas, nossa Constituição proclama a igualdade, mas só se vê desigualdade. E tudo é bonito, mas só na teoria. Quem conhece as normas de segurança no trabalho pensa que é norma de outro país, tão evoluídas e bonitas, mas só no papel.
Após esse parêntese, li o restante do artigo, sempre atenta às bem escritas e belas palavras do Márcio Túlio.
Fechei o livro, fui cuidar de um compromisso em Vitória e, ao voltar, chegando a Vila Velha, passando pela famosa alça da Terceira Ponte, parei em três faixas de pedestres, como manda a norma escrita e a educação. Duas vezes, era para passar uma mulher. Na terceira, um homem. O homem, ao passar, agradeceu com gesto de positivo. As mulheres olharam-me e simplesmente passaram. Se fosse um homem ao volante…
E eu fiquei a pensar sobre discriminação. Desta feita, da mulher contra a mulher.
Muitas mães apoiam tudo que os filhos fazem. Não se preocupam com quem saem, se mal ou bem podem fazer às meninas ou aos meninos com quem se relacionam.Com as filhas, todo cuidado é pouco. E com as filhas dos outros? Não são mulheres também?
Essa situação é comum, não só com pessoas menos instruídas ou de menor poder aquisitivo, não. Em todos os lugares e em todas as classes sociais. Vejo isso por onde ando. E, quando posso, se a pessoa é de minha intimidade, digo: Mas e as meninas ou meninos com quem saem? Podem ser assacados? Melhor dizendo: São piores do que sua filha?
Se uma mulher viaja sozinha, as outras mulheres que estão com os maridos, nem chegam perto. Vai que aquela “vadia” resolva dar em cima do seu marido! E quando as amigas (?) se divorciam? Muitas mulheres afastam-se porque o marido “vira” presa fácil da divorciada. Se ocorrer, a dita divorciada é a culpada. Nunca o marido. Muitas até se arvoram em dar uma surra na “outra”.
Há pouco tempo, li uma entrevista da historiadora Mary Del Priore, concedida à BBC Brasil. Ela, além de historiadora, é professora universitária e autora de obras como História das Mulheres no Brasil (ed. Contexto), vencedor dos prêmios Jabuti e Casa Grande e Senzala, e Histórias e Conversas de Mulher (ed. Planeta), em que acompanha avanços femininos desde o século 18.
Para ela, as mulheres brasileiras do último século conquistaram o direito de votar, tomar anticoncepcionais, usar biquíni e a independência profissional. Mas ainda hoje são vítimas de seu próprio machismo. Muitas mulheres “não conseguem se ver fora da órbita do homem” e são dependentes da aprovação e do desejo masculino, opina ela.
Ainda segundo a historiadora, na sociedade, o machismo no Brasil se deve muito às mulheres. São elas as transmissoras dos piores preconceitos. Na vida pública, elas têm um comportamento liberal, competitivo e aparentemente tolerante. Mas em casa, na vida privada, muitas não gostam que o marido lave a louça; se o filho leva um fora da namorada, a culpa é da menina; e ela própria gosta de ser chamada de tudo o que é comestível, como gostosa e docinho, compra revistas femininas que prometem emagrecimento rápido e formas de conquistar todos os homens do quarteirão.
Sinal de que não estou sozinha na minha análise.
Em março de 2014, saiu o resultado de uma pesquisa em que a maioria afirma que a mulher que veste curto ou decotado merece ser assediada e até estuprada. A que ponto chegamos… E mulheres foram ouvidas também. Mais uma vez confirma-se a minha ideia da discriminação pelas próprias mulheres. E eu que não estava falando desse tipo de violência, fiquei parada, olhando pro nada, enquanto me refazia do susto.
E a “Revista AG” publicou, em abril de 2014, uma reportagem justamente sobre a pesquisa, em que pessoas da sociedade, entre cantores, escritores, professores, fotógrafos, se despem, e, com um cartaz à frente do corpo nu, manifestam seu repúdio às ideias machistas, homofóbicas e absurdas desta nossa sociedade hipócrita. E, mais uma vez, temos manifestação de especialista no assunto: Beatriz Nader, estudiosa em história do feminismo, afirma que “Boa parte das mulheres ainda julga, por exemplo, outra mulher com uma roupa mais curta, apontando-a como vagabunda ou sem valor. E esse conceito ela passa para os filhos”.
Recentemente, está dando o que falar, o susto do mundo com o estupro coletivo de uma jovem de 16 anos. Um horror. E muitos ainda a acusam. Dizem: Ela estava se oferecendo…Eles são homens…Nem parece que estamos no século XXI.
Quando é que isso vai parar?
Maria Francisca –começo de 2013. Atualizada no final de 2015, a situação perdurando. Agora, em 2016, da mesma forma.
Minha mãe tem 95 anos. Mora num bairro exclusivamente residencial, muito simples e tranquilo, há mais de 40 anos. Conhece todo o mundo e todos a conhecem.
Ainda tem o costume de sentar-se à calçada e conversar com as pessoas que passam. Um dia, estava sentada ali no seu banquinho, quando veio vindo um dos quantos conhecidos, totalmente bêbado, trocando as pernas, mal se aguentando em pé.
Parou, daquele jeito típico, balançando o corpo, pra lá e pra cá, e perguntou, gaguejando, quase não conseguindo pronunciar as palavras: Tudo bem, Dooooona Se sesebastiaaaaaana?
Ela, como a maioria dos idosos, gosta de falar de seus males, disse: Vou indo, Antônio, mas com muita dor nas pernas.
Ele não titubeou: Uaaaaiii, dooooona Sebastiaaaaana, que será que está acontecendo com essas nossas pernas?
Ela respondeu, rindo: Com as minhas eu sei, com as suas, você é quem sabe…
Maria Francisca – maio/2016.
Meu espírito é um deserto.
A desigualdade bate à porta e não ouço.
Não escuto a voz do vento
Nem do tempo.
Nada vejo. Meus sentidos dormentes,
Inconscientes do mundo ao redor.
Tu vês? Ele vê? Nós não vemos.
Quem vê?
Mercenários, mercadores, credores,
Cobram a libra de carne viva, pela dívida.
Faltam emprego, saúde, escolas.
Sem moradia, sem alegrias, sem fama,
Pessoas como nós patinam na lama.
A desertificação dos sentidos
As luzes apagadas, o mal enraizado,
Banalizado. E nós?
Murchos ou robotizados,
Desumanos.
Maria Francisca – agosto/2016
“Onde está o teu tesouro, aí está teu coração” (Mateus, 6:21)
Resolvi dar uma limpeza na biblioteca e comecei a encontrar tantos e tantos livros bons que tive que fazer um esforço muito grande para não fazer vir abaixo a biblioteca toda para reler um por um. Aí, retirei da estante “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley e outro, apenas, mesmo porque a minha fila de novos ainda está grande.
Por acaso, no mesmo dia, caiu-me às mãos uma ótima resenha desse livro do Aldous. Uma coincidência, ter aparecido logo agora. E coincidências sempre mexem comigo. Por isso, fiquei pensando sobre esse nosso “admirável mundo novo” e concluí, como o autor da resenha, que estamos todos manipulados tanto pela tecnologia como pela mídia. Aldous Huxley previu um mundo de desamor e robotizado. E proclamou-o muito bem, numa espécie de denúncia, como o faria um profeta.
Compramos o que a mídia manda, vestimos o que a moda dita, não pensamos, não raciocinamos, não amamos, não nos relacionamos com nossos semelhantes senão por meio dos instrumentos tecnológicos que todos somos obrigados (?) a usar. Cada um com seu aparelhinho, um olho aqui e outro acolá, para ver tudo o que há nas redes sociais, fascinantes.
E assim, entrou a droga na vida de nossos adolescentes. Sentem-se poderosos, valentes, usando a droga. Poderosos, valentes, mas caem. Em 2013, sete alunos adolescentes de uma escola de Vila Velha foram assassinados por traficantes. Uma tristeza para as famílias envolvidas que se veem sem instrumento algum para conter essa terrível onda que faz tantas vítimas.
Ler um livro…E quem tem tempo?
Nas mesas de restaurante, o que mais se vê são pessoas ao celular. Estão ali só de corpo. As mensagens eletrônicas é que comandam o espetáculo. Conversar olho no olho caiu de moda. Já fui a um aniversário num restaurante, em que o filho adulto da aniversariante ficava o tempo inteiro enviando e recebendo mensagens pelo facebook, sem dar a mínima atenção para quem estava a seu lado.
Não sou contra as chamadas redes sociais. Aliás, uso facebook, whatsApp, tenho tablete, celular, mas a tecnologia deve estar a serviço do homem, para seu bem-estar, e não para escravizá-lo, como temos visto com as crianças, com os jovens, e até com pessoas maduras. Na escola, é um tormento para os professores. Como nas festas o barulho do som é tanto, que não se conversa, entram as tais redes sociais para transmitir os selfies. Nos congressos, o chique não é ouvir, é tirar fotos e postar nas redes sociais. Nos passeios, da mesma forma. Por que tem que ser assim? Porque sim. É moda. Todos fazem dessa forma. O que vale é a dita diversão. E falamos tanto em qualidade de vida e nos submetemos a tanto barulho e a tanta escravidão…
Por último, a febre do tal Pokemon Go. Perto de minha casa, há uma igreja evangélica e um posto de combustível. Ali, juntam-se jovens de todas as idades. Todos na captura dos tais monstrinhos. Tem-se a impressão de que há uma articulação, para impedir o pensamento, o raciocínio, a crítica, alienando todos do mundo real.
E assim, somos todos “humanos” robotizados.
É o admirável mundo novo de Huxley, ou não?
Maria Francisca – agosto de 2016
Na abertura de um Congresso de Magistrados, o palestrante, referindo-se ao narciso que mora dentro de cada um de nós, disse: Quem nunca ouviu a clássica pergunta “sabe com quem está falando?”
Aí, lembrei-me de um longínquo dia em que ouvi essa pergunta. Saí do trabalho, já noite, debaixo de uma chuva torrencial, ensopada, fui a casa trocar de roupa, às pressas, atrasada que estava para uma prova que não poderia perder. Então, resolvi trafegar na contramão, um pedacinho à toa de uma rua minúscula e tranquila, que nem sei por que era contramão. Mal saí da garagem e entrei na rua, veio um carro com um farolzão à minha frente, fiquei com medo e parei, já antevendo a colisão, quando o motorista parou ao meu lado e disse, aos gritos: A SENHORA ESTÁ NA CONTRAMÃO! O meu narciso apareceu na hora, tamanha a raiva que se apossou de mim, e respondi, gritando: E DAÍ? O narciso dele retrucou: A SENHORA SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO? Não sei e nem quero saber, respondi e arranquei.
Pois é. Ninguém se livra do narciso.
A “Folha de São Paulo” publicou, recentemente, uma pesquisa em que mostra a animosidade entre passageiros de elite e os de classe econômica nas viagens aéreas. Comportamentos raivosos são demonstrados em ambas as classes. Mas de acordo com a pesquisadora, indivíduos de classes mais altas muitas vezes fazem comparações absurdas com os mais pobres, lembrando seu status de elite, num comportamento egoísta e desdenhoso.
É sempre o narciso falando mais alto.
A propósito, dia desses, no aeroporto de Vitória, estávamos o colega Hélio Mario e eu na fila de prioridade, aguardando pacientemente a nossa vez, quando, à frente da moça que estava atendendo ao guichê da empresa aérea, postou-se um homem alto e forte, apresentando seu bilhete. A moça, então, mostrou-lhe a fila a que estava atendendo e ele resmungou irritado: Vou ter que ficar nessa fila enorme? Eu, inocentemente, querendo ajudar, disse, feito uma boba: É a fila de atendimento preferencial.
Narciso, então, soltou sua pérola matinal, com o maior desprezo: SOU DIAMANTE, MINHA FILHA!
O infeliz, além de prepotente, é mal informado, porque não sabe que a preferência da lei precede à da empresa aérea. Ou seja, é a preferência da preferência.
Apenas rimos diante de tamanha petulância e ele saiu danado da vida.
Bem-feito!
Maria Francisca – maio de 2016.
De vez em quando deparo-me com uma bicicleta em situação desconfortável, para não dizer outra coisa. Estou saindo da garagem de casa e, zás! Surge uma bicicleta (na contramão). Um susto! Por pouco não há um acidente. É sempre assim. Ora quase sendo atropelada por uma, ora andando em disparada na calçada, ora na área de pedestres no calçadão com a ciclovia ao lado. Puxa! Estou sempre perseguida por bicicletas.
Interessante que os ciclistas querem sempre o melhor dos mundos, porque passam nas faixas de pedestres devidamente acomodados no selim e pedalando, não param nas faixas de ciclovias para pedestres, trafegam junto aos carros, nas ruas e avenidas e, muitas vezes, o que é pior, na contramão.
Afinal, são veículos, ou não? O que é uma bicicleta?
Aí, fui ao Dr. Google, ou seja, à “obra lítero-musical” de Paulo Bonates (segundo afirmou numa crônica) e encontrei: “Veículo composto de um quadro (‘conjunto de tubos metálicos’), assentado sobre duas rodas iguais alinhadas uma atrás da outra e com raios metálicos, das quais a da frente é comandada por um guidom e funciona como diretriz, e a de trás, ligada a um sistema de pedais acionados pelo bicicletista, funciona como motriz”.
Pois é. E nenhuma autoridade toma providência quanto a esses veículos. Aliás, o que se vê, noite e dia, é propaganda para incentivar o uso de bicicletas. Há até um parquímetro de bicicletas em Vitória, o que é louvável, mas ações são necessárias para balizar o uso, em respeito aos demais transeuntes.
Ontem, caminhando para os lados de Itaparica, vejo placas com avisos do tipo: “Pedestres, não andem nas ciclovias”. Fiquei danada da vida! Ah, é? Os ciclistas podem andar junto aos pedestres? Só os pedestres é que devem respeitar o espaço dos ciclistas?
Fui caminhando e ruminando essa raiva, quando vejo outra placa, com o desenho de uma bicicleta. Já fui ler com prevenção, mas que surpresa! Lá está: “Ciclistas, parem nas faixas de pedestres ”. Oba, até que enfim, resolveram instruir os ciclistas!
Alvíssaras! Neste domingo, outra coisa boa acontecendo. Escuto um som característico de passeata, corro à varanda e vejo a avenida toda colorida de sol, apesar do dia nublado, com muitos e muitos ciclistas de camisetas amarelas, atrás de um carro de som que falava sobre o respeito no trânsito. Pena que não consegui uma boa foto da grande passeata.
Então, está resolvido: Bicicleta é veículo e como tal vai ser usada.
A ver.
Maria Francisca – julho de 1016.
Para Paulo e Francisco (in memoriam)
Meu trem partiu de repente
Não tive tempo de me despedir
Mas parou na estação das flores
E senti saudades dos meus amores.
Eu queria ficar mais um pouquinho,
Mas uma voz suave me falou baixinho
Que eu deveria partir enquanto tempo
Pois meu tempo se encerrou neste caminho.
Viajo saudoso de tudo
Não sei quando ao destino chegarei
A primavera já se fez faz tempo
Desde que o outro caminho deixei.
Mas sigo certo na esperança
De que há na luz das estrelas
A paz que procuro e anseio.
Que flores nascerão nas veredas
De um mágico lugar onde mora
O Princípio, o Fim e o Meio.
Maria Francisca – abril/2014.
O sol já ia alto, quando resolvi sair para uma caminhada. Ia me esquivando aqui e acolá, procurando proteção numa sombra qualquer, naquele dia claro e belo.
De repente, vi um homem, típico morador de rua: com um saco às costas, sujo, barbudo, de tênis zurrado, descabelado. Andava devagar. Depois, parou perto de uma daquelas árvores com frutos verdes e tentava tirar algo de bolso (Uma arma, talvez?). Em estado de alerta, estaquei. Era um pedaço de pau que, com certeza, usa para defender-se à noite. E ali, para quê? Para cutucar uma daquelas castanhas verdes, de que nem se sabe o gosto ou, mesmo, se são comestíveis, se venenosas, derrubou e começou a comer. E quem tem coragem de parar e perguntar se está com fome, coragem (e até temeridade) de levar para casa para acolher, como fazia minha mãe? E a violência? E o medo? E assim vamos levando essa vida absurda, nesse mundo absurdo, sem qualquer solidariedade com o próximo. Cada um por si, onde Deus não é por ninguém, claro.
Aí, passo perto de um outro barbudo, sentado frente a uma esteira, com alguns pequenos objetos decorativos que, penso, pretendia vender. Só que ele, a cada passante, gritava, Fulano é pedófilo! Fulano é pedófilo! Citava cada hora um nome de um apresentador de TV. Agora, quando vejo na TV uma das pessoas citadas, lembro-me do barbudo e penso: qual seria a intenção dele? Só loucura?
Mal acabava de pensar numa figura, aparecia outra. Uma moça loira, bonita, entrava debaixo do chuveiro, saia correndo, gritando: Água, água, quem paga a água? Água, água, quem paga a água?
Será que ela estava pensando no desastre da água do Rio Doce ou alegre por estar debaixo do chuveiro e com aquele desperdício todo?
Na volta, sentada num banco, com uma bolsa ao lado, uma senhora magrinha, singelamente vestida, chamou-me: Moça, senta aqui comigo um pouquinho! Entre curiosa e temerosa, relutei um pouco, mas sentei-me.
Ela começou a falar baixinho, com o olhar distante, como se estivesse sozinha. Pois é. Fui muito, muuuuiiiitoooo rica. O tempo passou e eu ficava pobre. Até que empobreci de vez. Pobre, só pobre. Não. Miserável, não. Mas resolveram que estava caduca e me colocaram num asilo. Fugi. Acharam-me. Viram que eu não era caduca… Deixaram-me em paz… Filhos…sumiram todos. Ninguém vem me ver. Continuou assim, cada vez mais baixo…Eu mal conseguia entender. Quando senti que ela dormia, levantei-me e sai devagar.
Vim para casa pensando naquilo tudo que vi, todos solitários, e, principalmente, naquela senhora idosa. Não parecia doente, tampouco moradora de rua. E os filhos, por onde andariam? Seria devaneio?
No meio de uma multidão e sozinhos. Sinal dos tempos?
Maria Francisca – janeiro de 2016.
Não tracei planos pra tantos abraços,
Nem pensei ter tantos braços.
Não contei quantas horas dormi,
Nem me dei conta de tanto cansaço.
Não tracei planos pra dias de glória,
Nem pensei nas lutas sem tréguas.
Não tentei fugir das ventanias,
Nem quis mudar a curso das águas.
Não li cartas pra saber o destino,
Nem pretendi interpretar a vida.
Não me livrei de angústias e desditas,
Só desfraldei bandeiras pra seguir na lida.
Não pensei quantos anos viver
Nem quantas ondas vencer
Não vi instalar-se o silêncio,
Nem senti chegar o entardecer.
Hoje olhei o mar. Vi ondas calmas
Fazendo espumas entre as brumas leves,
Lavar meus pensamentos graves,
Pra esquecer os ventos, esses dias frios,
E esta vida breve.
Maria Francisca – maio de 2016.