Virou lugar comum dizer-se: “Gentileza gera gentileza”. É que tudo muito repetido perde a força. Se uma pessoa é pródiga em elogios, damos menos valor quando nos elogia. Pois se elogia tudo… Da mesma forma, quando alguém critica tudo, a crítica perde a credibilidade. As palavras e os gestos, da mesma forma.
Mas essa expressão, apesar de desgastada, é verdadeira. Gentileza dificilmente provoca grosseria. E os gestos de delicadeza ou de solidariedade, por menores que sejam, aquecem o coração e nunca são esquecidos.
Esses dias, vi um vídeo, em que dois rapazes entregavam rosas a mulheres desconhecidas que encontravam no caminho. Todas ficavam surpresas e felizes.
Podem ser simplesmente um “bom dia” alegre a um passante, uma paradinha para ouvir algum idoso que nos cumprimenta e quer conversar conosco, uma visita a um asilo ou casa de repouso para ouvir as histórias dos idosos, brincar com crianças de alguma creche, ou contar-lhes histórias. Tudo isso tem um valor imenso. E não só agrada a quem recebe, não. Alegra o coração de quem pratica tais gestos solidários ou simplesmente gentis. Não há uma letra de música com um verso que diz: Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas?
Alice, personagem de Maria Valéria Rezende conta, no memorável “Quarenta dias”, sobre gentilezas inesquecíveis que recebera na vida.
Pois é. A memória eterniza os gestos gentis. Até hoje lembro-me de uma gentileza que recebi, no final dos anos 80. Quando fui morar em Salvador, andava pela cidade de ônibus, seja para trabalhar, seja para fazer compras. Não sabia dirigir naquele trânsito caótico, além de não conhecer a cidade. Um dia, voltava do trabalho e estava num ponto de ônibus com uma sacola cheia de belas frutas que acabara de comprar numa das inúmeras bancas de rua. De repente, a sacola rasgou-se e lá se foram minhas frutas rolando. Eu fiquei ali a olhar, sem saber o que fazer. De repente, uma senhora desconhecida passou perto de mim, tirou uma sacola de plástico da bolsa, entregou-me e saiu andando apressada. Eu só tive tempo de gritar: Moça, você caiu do Céu! Ela apenas acenou, sem olhar para trás.
Outra pequena gentileza que recebi foi num supermercado, há pouco tempo. Estava eu tentando ver o preço do leite e um senhor fazia a mesma coisa. Ele encontrou duas caixas de um leite semidesnatado, com um ótimo preço. Mostrou-me. Eu disse: Vamos olhar a validade, porque pode ser uma “pegadinha”. Mas, não. Era promoção, mesmo. Em seguida, ele constatou que só havia duas caixas. Como ele apanhara as duas, olhou-me sorrindo, e disse: Quer uma? Fiquei comovida. Tratava-se de um senhor idoso, muito simples, pelo jeito e modo de vestir e pelas mercadorias que estavam em seu carrinho. E tentava dividir comigo o leite que vira ser mais barato. Agradeci e fiquei pensando naquela gentileza o dia inteiro.
Recebo tanta gentileza (esqueço as grosserias, claro), que procuro ser gentil com as pessoas, procurando retribuir um pouco das bondades que recebi na vida.
Claro que cometo os meus desatinos também. Sou maltrapilha, como diz Brennan Menning. Tenho defeitos a mais não poder. Mas que é bom demais fazer e receber gentilezas, ah, isso é.!
E, depois, ter um pouco de perfume nas mãos. Quem não quer?
O ditado e o operário: Os anéis vão ficar. Há dúvida quanto aos dedos.
José Irmo Gonring
Há pouco tempo, escrevi uma crônica sobre a escravidão moderna para uma revista literária, cuja publicação será em dezembro. Eis-me, agora, surpreendida com a Portaria 1.129, do Ministério do Trabalho e Emprego, dispondo sobre o trabalho em condição análoga à escravidão, reduzindo-a, todavia, ao fato de estar o empregado sem liberdade de ir e vir. Isso, a pretexto de estabelecer as regras do seguro-desemprego para as pessoas resgatadas da situação considerada degradante.
É incrível, como uma Portaria de um Ministério pode afrontar leis, tratados internacionais e ainda, no preâmbulo, ou “considerandos”, citar todas essas leis e tratados. Tem-se a impressão de que esses governantes não leram nada dessas normas, ou, pior, zombam do povo.
Desde a edição da bendita portaria muitos órgãos, como Ministério Público, Ministério Público do Trabalho, Entidades Internacionais e de classe e alguns Ministérios do mesmo governo condenaram o texto dessa norma.
A explicação dos que a defendem: ela apenas retira a subjetividade dos conceitos do Código Penal, trazendo segurança jurídica às relações de trabalho. E o Ministro continua dizendo a mesma coisa, mesmo depois que os efeitos da Portaria foram suspensos pela Ministra do STF Rosa Weber. Disse que não vai revogar a norma. Vai apenas aperfeiçoá-la.
Se reduzir o empregado à condição análoga a escravo é simplesmente impedir o seu direito de ir e vir, o que fez o governo foi rasgar o Código Penal, como disse o colega Marcelo Tolomei, numa entrevista na Rede Gazeta ontem. E a falta de água para beber? E dormir sobre esgoto? E não receber a remuneração? E não poder deixar aquele patrão, porque tem dívida que não acaba nunca? E um cortador de cana ou trabalhador em carvoaria trabalhar 15 horas por dia? A Gazeta noticiou inúmeros casos de condição degradante, todos sabemos. E o que noticiou com fotos não é trabalho escravo?
Agora a expressão segurança jurídica virou moda. Tudo é para dar segurança jurídica. As mudanças das leis trabalhistas trazem “segurança jurídica”, mesmo com tantos absurdos, como tarifação de dano moral. O valor da condenação em dano moral vai depender do salário do ofendido. Se ganha pouco, o valor é menor. Se ganha mais, tem direito a uma indenização maior. Conceito de igualdade da nova lei: ao pobre, a pobreza sempre. O sofrimento do pobre tem menos valor.
Dizem as más línguas que o governo quis agradar à bancada ruralista no caso da portaria e, na reforma trabalhista, aos empresários que o apoiam. Com tanta coisa estapafúrdia, chego a acreditar nisso.
É. Infelizmente, tenho que concordar com meu amigo jornalista, cronista e poeta, José Irmo Gonring, no seu belo livro “Garimpo de estrelas”: os anéis vão ficar. Há dúvida quanto aos dedos. Do operário, claro.
Maria Francisca – outubro de 2017.
Os passarinhos cantavam tanto pela manhã, na minha varanda, que imaginei tivesse sol. Qual nada! Um céu coberto de nuvens escuras, prenunciando muita chuva, que não demorou a cair, acompanhada de um frio de doer os ossos. E em pleno outono, arre!
Mesmo assim, resolvi sair a pé, porque havia providências a tomar. Com essa dificuldade de estacionamento, prefiro andar, e ando muito, por todos os lados, seja no bairro, seja no centro da cidade. Parafraseando Adélia Prado, caminho como um judeu errante.
Estava de muito bom humor. Resolvi, então, fazer uma brincadeira com as pessoas. Vesti uma roupa de ginástica, calcei um sapato cinza, armei-me de um grosso casaco de frio e de uma grande sombrinha. Olhei-me ao espelho e gostei do que vi. Fiquei caricata, mas faltava alguma coisa. Lembrei-me de um par de óculos escuros, grande e chamativo, dele me apossei, coloquei-o e fui ver o efeito. Não poderia ser melhor. Caricatura hilária. Saí à rua. Claro que fui por caminhos nunca dantes caminhados, para encontrar apenas pessoas estranhas. Se assim não fosse, graça alguma haveria na minha experiência.
Encontrei, primeiro, um homem. Se me viu, fingiu que não viu, passou incólume. Depois comecei a encontrar mais gente. Uns olhavam, desviavam o olhar, outros riam um riso dissimulado, olhando para os lados, até que encontrei algumas adolescentes. Uma apontou-me à outra e todas começaram a rir. Uma, mais corajosa, chegou perto e disse: Senhora, está chovendo, pra que esses óculos? Eu, séria, mas morrendo de vontade de rir, disse: Porque está na moda, ora… Todas caíram na risada.
E fui andando e me divertindo com o olhar das pessoas. Até que encontrei uma senhora que também estava de óculos escuros. Enoormes… Muito maiores do que os meus. Aí foi a minha vez de olhar. Sem dissimular. Parei e olhei. Ela também parou e, à minha frente, disse, forte: Que foi? Seus óculos, lindos, respondi. Ela riu gostosamente. E disse: Comprei em Londres. Eu consegui manter-me séria e afastei-me depressa, mas desconfiada. Será que teve a mesma ideia que eu?
Andei mais um pouco. Olhei para trás e lá estava a mulher, conversando com alguém e rindo. Ah, com certeza realizava a mesma experiência que eu, pensei. Tive a tentação de ir até lá e conversar com ela, mas me contive. Temi a reação da mulher, caso eu estivesse enganada. Melhor continuar na minha andança de experimentos.
Dei alguns passos, mas senti que acabou a graça e resolvi voltar pra casa, pensando naquela mulher… Será? Chegando ao portão do edifício, é que me lembrei de que não havia resolvido nada das minhas providências.
Chega de cara de pau por hoje. Pior é que a chuva aumentou e caía forte. Mesmo assim, despi-me da indumentária maluca e fui cumprir minha obrigação.
Num outro dia de perfeita loucura, em que a temeridade estiver em alta e a cara de pau brotar com força novamente, sairei por aí, para mais uma dessas brincadeiras.
O resultado? Depois, saberemos. Que vou me divertir, já sei que sim.
Amigos,
Peço desculpas. Mudei o comutador e não consegui responder às mensagens carinhosas do texto “Velha, eu?”, porque não consegui recuperá-las, tampouco o texto original.
Um abraço, esperando merecer a leitura dos próximos posts.
Acorda, oh, tu que dormes!
A rua deserta convida ao sono.
Alerta! O mal ama deserto,
O caos e abandono.
Acorda, oh, tu que dormes!
Não te instales na inércia.
Acende a lanterna e segue
Em silêncio, vem depressa.
Acorda, oh, tu que dormes!
O dia amanhece. Resplandece
Tudo em volta, e tu dormes?
O mundo gira, a terra treme,
Passa do caos ao cosmos,
Retorna ao caos
E tu dormes?
Até quando?
Maria Francisca – agosto de 2017.
”Eu quero um rio de água viva!
Eu quero um sopro de esperança
Minh’ alma segue e não se cansa
De caminhar…”
Antônio Carlos Santini
Pedro é uma figura ímpar, dentre os apóstolos de Jesus. Amo esse apóstolo, porque era humano e mostrava toda a sua humanidade com os gestos e as palavras inusitadas ou inoportunas. Melhor dizendo, estava sempre falando pelos cotovelos. Errava, caia, levantava-se. Fraquejou na fé, ao andar sobre as águas, dormiu na agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras e negou o Mestre três vezes.
No Monte Tabor, Pedro lança uma de suas pérolas. Como relatam Mateus (17,1-8), Marcos (9,2-8 )e Lucas (9,28-36), após a transfiguração de Jesus, Pedro fica tão maravilhado que diz: “Senhor, é bom estarmos aqui. Se queres, farei aqui três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias”. Jesus não deu papo pra ele. Mesmo porque, de repente, veio uma nuvem luminosa e os envolveu, deixando todos com muito medo, como diz o Evangelho. Fico a imaginar a cara de Pedro. Estava tão bom, daí a pouco aquela nuvem estranha e aquele medo! Teve vontade de correr, imagino.
Mas foi o homem escolhido por Jesus para receber as chaves do Céu e o texto bíblico mostra a bela trajetória desse homem e o trabalho que realizou.
Gosto muito dessa passagem bíblica. Quantas vezes, não tive vontade de ficar quietinha, deixando tudo sem fazer? Naquele comodismo gostoso, de preferência num cochilo de uma cama macia ou que tal numa rede? Mas o caminho está a aí para ser percorrido. Não há tempo a perder.
Pensando nisso, lembrei-me de uma história (haja história nessa cabeça de velha), sobre o batismo. Contou um amigo que um padre idoso visitando Manaus, foi levado a uma Igreja linda e muito antiga. Os anfitriões disseram-lhe que havia um problema sério naquela igreja: os morcegos. Não sabiam como acabar com eles. O padre, tranquilamente, disse: batiza-os. Boquiabertos, os jovens padres perguntaram: Como? E, ele, mais do que tranquilo. Ora, se batizar, somem todos…
Claro que foi uma brincadeira, mas com toda razão. Somos muito solícitos e presentes, enquanto queremos algo. Quando conseguimos, não damos mais valor, por sabermos que teremos algum trabalho. Isso ocorre na Igreja, quando as pessoas levam seus filhos para serem batizados, na Academia de Letras, onde frequentam antes de ser acadêmicos, depois todos somem. Nos trabalhos voluntários, quando fazem a preparação ou a formação específica, acham uma maravilha, mas na hora da batalha, cadê? Até na diretoria de associações de classe. Entrar para a diretoria é chique, mas as reuniões são muito cansativas. Não vou, não.
E há quem diga, achando bonito: fui convidado, mas não estava “afim”. Ninguém quer trabalho. O bom é cair tudo do céu, prontinho. Diante de uma dificuldade, então, é que nos acovardamos. Sentimos vontade de armar uma tendinha, ou, quem sabe, uma rede, e ficar a balançar preguiçosamente…em suma: fugir da raia. Quantas vezes não tive sono, quando via que tinha muito a fazer? Só pra fugir da responsabilidade. Talvez Freud explique.
Como na música religiosa, todos queremos um rio de água viva e um sopro de esperança, mas o importante, mesmo, é o final da estrofe: “Minh’alma segue e não se cansa de caminhar…”
E vamos que vamos.
Maria Francisca – julho de 2017.
Para minha mãe
Não repare meus cabelos brancos
Não repare minha pele flácida,
Meu andar cansado, meu corpo curvado.
É tudo normal: envelheci.
Perdoe meu cansaço, minha voz pausada,
Meus olhos baços, as minhas dores.
O tempo passou depressa…
Envelheci.
Perdoe se sou lenta, se não o ouço.
Meus ouvidos são outros.
Minhas pernas trôpegas.
Envelheci.
Perdoe essa dinâmica morna
Experiência passada, desusada.
Meu tempo é outro, mais lento,
Mais difícil, mais descrente.
Perdoe minha história vencida
Minha autoridade perdida.
Já não corro, já não aprendo fácil.
Envelheci.
Nascer, florescer… morrer?
Com licença, tenho muito a fazer.
Ainda há tempo e sopra forte o vento.
Restam sementes.
Vou semear…
Maria Francisca
Quando conheci Brasília, a par da beleza da cidade, senti-me um pouco decepcionada. Talvez por ter idealizado demais a tão festejada BELACAP do Juscelino, do Niemayer e do Lúcio Costa. A construção foi uma polêmica, a vida dos moradores de periferia, outra polêmica, a corrupção, mais outra, até a inauguração, uma festa. E, depois, continuou uma festa. Para poucos, claro.
Demorei a conhecer a cidade. Talvez por inércia ou inépcia, mesmo. Eu sempre falava: conheço tantos lugares e não conheço Brasília. Até que criei “coragem” e fui conhecer a Capital da República. Isso em 1995, ou seja, 34 anos após a inauguração.
Que beleza! Tudo falava de grandeza. Largas avenidas, edifícios maravilhosos, igrejas lindíssimas, pura arte. Tudo chamava atenção. A Igreja Dom Bosco, então! Entrei lá e não tinha mais vontade de sair. Um ambiente de paz maravilhoso.
Mas, a decepção: Junto ao poder e à beleza, muita sujeira de camelôs, pedintes, moradores de rua dormindo ao relento. A contradição à mostra. E fiquei a imaginar se os poderosos de Brasília não pensam, ou, se pensam, fecham os olhos e os ouvidos, ao passarem por aquelas largas e belas avenidas. Talvez a película bem escura de seus possantes veículos oficiais já tenha este objetivo: tapar a pobreza. Se não vejo, não me preocupo.
E essa contradição está por todos os lados que se olhe. No início da semana, caminhando na Praia da Costa, vejo uma propaganda de construção: “Luxuoso apartamento de quatro quartos, três suítes. Visite decorado”. Em frente, na praia, muitas pessoas dormindo ao relento. Chamou-me a atenção uma família inteira na areia, enrolada em trapos, com sacos de outros trapos ao lado. Dois adultos e duas crianças. Parei, olhei, olhei para os prédios e segui meu caminho, como todos fazem. Olhei, mas não vi nada, porque, se visse, teria que fazer alguma coisa. E o que vou fazer? Levar para minha casa? Só se for, porque denunciar ao poder público, que é quem tem o poder, já cansei. Não fazem nada. Fico a esbravejar nos meus escritos, num arremedo de discurso em praça pública, talvez para espantar esses fantasmas, ou, mesmo, para não mudar de ideia sobre esses absurdos deste nosso mundo. Pra não me acostumar e passar a achar que está certo.
Elio Gaspari, no texto “O rolezinho pode acabar em rolão”, diz o seguinte: “Enquanto rolavam rolés, um grupo de trabalhadores foi barrado num centro comercial da Barra da Tijuca porque traziam poluição visual e mau cheiro. Isso na cidade onde o révellion da praia teve tenda VIP para convidados e, uma passeata, cercadinho para celebridades”. Aí está, mais uma vez, a segregação a olho nu.
Veríssimo, com sua verve crítica, afiança que a invasão planejada de xópis pela turma da periferia, que tem acontecido nos grandes centros, tem algo de dessacralização: a rua se infiltrando no falso primeiro mundo e, perigosamente, estragando a ilusão. Ancelmo Gois noticia que no Jockey Club o clima fechou porque duas babás entraram na piscina com as crianças de que cuidavam. Uma madame arranjou uma grande encrenca com o diretor.
Já a revista AG de 26.01.2014 trouxe uma reportagem sobre um beach club na Praia de Peracanga, Guarapari, onde se gastam cerca de dez mil reais por tarde, em champanhes e outras delícias. Uma das meninas que frequentam o clube, diz o seguinte: Eu prefiro aqui a estar na areia da praia. O público é selecionado e o ambiente é divertido. Aí, penso: Então tá: a praia não é mais um lugar democrático. Nem na praia querem mais se misturar com a plebe ignara.
Mas como disse Lúcio Manga no “errei na Mosca” de A Gazeta, a miséria está também no facebook. E diz mais: Tudo começou no orkut, mas como havia ficado popular, muitos jovens abastados migraram para o condomínio fechado do facebook, lembram? Completa o autor.
Pois é, então, está na hora de os jovens abastados saírem do facebook e irem para outro condomínio fechado. E isso já está acontecendo. No “A Gazeta” (03.02.2014), com o título Facebookcídio, uma psicóloga afirma que a popularização está afastando algumas pessoas que se sentem diferenciadas e que as redes sociais terão preferência, na medida em que forem exclusivas, ou seja, um condomínio fechado, na expressão de Lúcio Manga.
Daqui a pouco, vão arranjar um meio de isolar parte dos hoje denominados shoppings, que já são à prova de pedintes e vão passar a ser à prova de pobre. Espaço para cada qual. Já não fizeram isso com parte de algumas praias? Isso funciona com a moda e até com decoração de casas e apartamentos: quando fica popular, muda, porque ninguém quer ficar perto de pobres ter algo com eles.
Por fim, quando penso nessas contradições, relembro Gilberto Freire, com “Casa grande e senzala”. O que são a casa grande, senão os edifícios e casas luxuosas de Brasília, ou a moda para os ricos, os cercadinhos para os chamados Vips, os beat clubs, os shoppings fechados contra os tais rolezinhos? O que são as senzalas, senão os barrados nos shoppings, senão a rua como moradia, os farrapos, a fome e a miséria em geral?
Escrevi este texto faz tempo. Mas hoje, verifico que tudo está pior.
Em Brasília e no Brasil todo. A corrupção é endêmica, os números da roubalheira espantam e o desemprego assombra. Gente e mais gente dormindo ao relento. E os belos cachorrinhos peludos agasalhados em carrinhos de luxo nesses dias frios. A fome? A fome do povo? O que é a fome? Não posso ver, não quero ver.
Diz Drummond: “As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação”.
Maria Francisca – julho de 2017.
“Quando o rei eu vejo, bocejo”
Maria Francisca – “Uns são mais iguais”
Era dos direitos? E dos deveres? Nada?
Norberto Bobbio, em seu belo livro “A era dos Direitos” fala da dimensão desses direitos e da democracia, como sistema propício à sua realização. Já no livro “Diálogos em torno da República”, o filósofo Maurizio Viroli, pergunta a Bobbio: Você acrescentaria a esse livro um ensaio sobre a necessidade do dever? Ao que ele responde simplesmente que a reivindicação do direito foi uma resposta ao despotismo. Foi uma necessidade de defender-se da opressão e da prepotência. E complementa que, se ainda tivesse alguns anos de vida, tentaria escrever “A era dos deveres”.
E fico a pensar no nosso tempo. Uma época difícil. Mas estamos precisando nos defender de quê? Vivemos numa democracia. Mas vemos cada vez mais isto: só nós temos direitos. Os outros, não. E os deveres? Ora, os deveres. Será?
Isso me faz lembrar um senhor que foi meu colega no antigo INPS.
No final dos anos 60, o INPS pertencia ao Ministério do Trabalho e Previdência Social. Então, no mesmo local do INPS, funcionava o setor de emissão de Carteiras do Trabalho. Quem cuidava desse trabalho, era Serafim (de saudosa memória), um senhor muito cioso de suas obrigações. Espirituoso, gostava de brincar com as pessoas que atendia, gentil com todos, mas muito rigoroso. Só emitia a carteira, se os documentos estivessem todos em ordem. Se a pessoa insistia, dizendo que precisava com urgência da carteira, ele dizia: Você quer que eu seja bonzinho pra você, não é? Mas aí eu seria ruinzinho para mim e isso não vou ser.
E se alguém dizia, choroso, estou precisando, senão não vou conseguir meu emprego, estou em dificuldade, ele dizia: Você está abusando do direito de ser fraco. E não atendia o pedido, sem que estivessem cumpridas todas as exigências.
Nós queremos tudo, mas sem nos comprometermos com nada. Será isso? Será a hora de pensarmos na “Era dos deveres”?
E, novamente, o diálogo entre Bobbio e Viroli. À pergunta do segundo sobre o dever do cidadão, Bobbio responde: ‘O dever de respeitar os outros. A superação do egoísmo pessoal. Aceitar o outro. A tolerância aos outros. O dever fundamental é dar-se conta de que você vive em meio aos outros”. E quanto aos governantes? “O senso do Estado, ou seja, o dever de buscar o bem comum e não o bem particular ou individual”.
Então, como conviver com tantos problemas no Brasil, apesar de vivermos numa democracia? Nessa nossa democracia, onde mais vale ser amigo do rei? E há amigos do rei que enchem a boca para falar de assunto ou atitude que diz ser republicana (palavra desgastada pelo mau uso) que imagino: ele/ela nem deve saber o significado da palavra.
Nós, por outro lado, vamos nos acostumando com isso e também vamos buscando nossos jeitinhos de resolver tudo nessa base e queremos nossos direitos, sem pensar nos deveres. Passamos a considerar que, se precisamos de algo, vamos arranjar uma forma de consegui-lo, nem que seja vendendo nossa alma ao diabo: votando em quem não pensa no bem comum, para não dizer coisa pior, se esse “diabo” pode nos proporcionar algum favor. E a democracia e a república passam a ser a palavra da moda: a pós-verdade.
Precisamos, ora…E no beija-mão do rei, conseguimos. E se não conseguimos, continuamos chorosos, sem fazer a nossa parte.
Abusamos de nossa fraqueza, portanto, como dizia o Velho Serafim.
Maria Francisca – junho de 2017.
Com essa história de voos diretos reduzidos e preços de passagens proibitivos, tenho viajado de trem para Minas Gerais. No trajeto, além dos recados para os passageiros, nos monitores passam alguns filminhos, mas, sem fone de ouvido – nunca me lembro de os levar – fico sem conhecer o conteúdo das mensagens.
Desta vez, ao contrário, deixei os livros de lado, cansada, pois oito horas lendo sem parar, não há cristo que aguente. Coloquei os desconfortáveis fones e comecei a assistir aos filmes. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o título de alguns vídeos: “Que direito é esse?” Fui vendo e aplaudindo silenciosamente. Tratavam de assédio moral e sexual, acidentes do trabalho etc. Educativos e disso precisamos.
Hoje, diante da reforma trabalhista aprovada na Câmara dos Deputados, pergunto, aflita: Que direito é esse?
Acabo de assistir ao “Bom dia” da TV Gazeta e vejo dois juristas falando sobre as reformas. Claro, o que está a favor, diz, ao explicar a prevalência do negociado sobre o legislado: O empregado agora tem voz. Tem sim, doutor, para apenas dizer SIM. Como já disse o saudoso Millôr Fernandes, “Livre pensar é só pensar”, da mesma forma, a voz do empregado é apenas para dizer SIM. Qual o empregado, numa conjuntura perversa como a nossa, vai dizer não a uma proposta de redução do salário, de aumento de jornada ou qualquer outra proposta do empregador?
E, mais, disse ele que a reforma põe fim ao ativismo judicial. Desculpe, esse doutor deturpou o sentido do termo. Ativismo judicial é interpretação da lei de acordo com o seu espírito e não criação de lei pelo juiz, como declarou. Essa reforma vai amordaçar o juiz e a Justiça do Trabalho, isso, sim. Aliás, o que temos escutado são ataques cadenciados contra essa Justiça que trata dos Direitos Sociais. A propósito, a ministra aposentada Eliana Calmon, sentindo cheiro de desgraça, como o corvo de George Orwell, reapareceu para desferir seus ataques, seguindo, infelizmente, a cartilha de outros membros do Poder Judiciário. Mas ela ressurge das cinzas, também de olho nas eleições de 2018.
Por outro lado, o ex-ministro Ciro Gomes disse hoje, e nesse ponto concordo com ele, que estamos fabricando uma involução do Direito do Trabalho. Quando a China estaria tentando melhorar suas relações de trabalho, o Brasil está indo na contramão da história. E eu digo: quem precisar colocar sua força de trabalho a favor de outrem, daqui a pouco, retornará à senzala, porque a lei áurea é antiga e precisa ser reformada também, como a CLT que teimam em dizer que é de 1943, quando já passou por tantas reformas que nem é mais a mesma há muito tempo.
Sei que vão me dizer: o que adianta você escrever sobre isso, se não tem força alguma para mudar nada?
Lembro uma pequena metáfora que li faz tempo: Um homem circulava num tribunal, onde se desenrolava um julgamento que poderia levar o réu à cadeira elétrica, com uma placa que dizia: “Pena de morte é crime”. Disseram-lhe: Você acha que mudará alguma coisa com isso? E ele, tranquilamente: Eu sei que não mudarei esse estado de coisas, mas o que pretendo é que esse estado de coisas não me mude…
Então, continuo a perguntar: Que direito é esse?
Maria Francisca – 27 de abril de 2107.