Quando conheci Brasília, a par da beleza da cidade, senti-me um pouco decepcionada. Talvez por ter idealizado demais a tão festejada BELACAP do Juscelino, do Niemayer e do Lúcio Costa. A construção foi uma polêmica, a vida dos moradores de periferia, outra polêmica, a corrupção, mais outra, até a inauguração, uma festa. E, depois, continuou uma festa. Para poucos, claro.
Demorei a conhecer a cidade. Talvez por inércia ou inépcia, mesmo. Eu sempre falava: conheço tantos lugares e não conheço Brasília. Até que criei “coragem” e fui conhecer a Capital da República. Isso em 1995, ou seja, 34 anos após a inauguração.
Que beleza! Tudo falava de grandeza. Largas avenidas, edifícios maravilhosos, igrejas lindíssimas, pura arte. Tudo chamava atenção. A Igreja Dom Bosco, então! Entrei lá e não tinha mais vontade de sair. Um ambiente de paz maravilhoso.
Mas, a decepção: Junto ao poder e à beleza, muita sujeira de camelôs, pedintes, moradores de rua dormindo ao relento. A contradição à mostra. E fiquei a imaginar se os poderosos de Brasília não pensam, ou, se pensam, fecham os olhos e os ouvidos, ao passarem por aquelas largas e belas avenidas. Talvez a película bem escura de seus possantes veículos oficiais já tenha este objetivo: tapar a pobreza. Se não vejo, não me preocupo.
E essa contradição está por todos os lados que se olhe. No início da semana, caminhando na Praia da Costa, vejo uma propaganda de construção: “Luxuoso apartamento de quatro quartos, três suítes. Visite decorado”. Em frente, na praia, muitas pessoas dormindo ao relento. Chamou-me a atenção uma família inteira na areia, enrolada em trapos, com sacos de outros trapos ao lado. Dois adultos e duas crianças. Parei, olhei, olhei para os prédios e segui meu caminho, como todos fazem. Olhei, mas não vi nada, porque, se visse, teria que fazer alguma coisa. E o que vou fazer? Levar para minha casa? Só se for, porque denunciar ao poder público, que é quem tem o poder, já cansei. Não fazem nada. Fico a esbravejar nos meus escritos, num arremedo de discurso em praça pública, talvez para espantar esses fantasmas, ou, mesmo, para não mudar de ideia sobre esses absurdos deste nosso mundo. Pra não me acostumar e passar a achar que está certo.
Elio Gaspari, no texto “O rolezinho pode acabar em rolão”, diz o seguinte: “Enquanto rolavam rolés, um grupo de trabalhadores foi barrado num centro comercial da Barra da Tijuca porque traziam poluição visual e mau cheiro. Isso na cidade onde o révellion da praia teve tenda VIP para convidados e, uma passeata, cercadinho para celebridades”. Aí está, mais uma vez, a segregação a olho nu.
Veríssimo, com sua verve crítica, afiança que a invasão planejada de xópis pela turma da periferia, que tem acontecido nos grandes centros, tem algo de dessacralização: a rua se infiltrando no falso primeiro mundo e, perigosamente, estragando a ilusão. Ancelmo Gois noticia que no Jockey Club o clima fechou porque duas babás entraram na piscina com as crianças de que cuidavam. Uma madame arranjou uma grande encrenca com o diretor.
Já a revista AG de 26.01.2014 trouxe uma reportagem sobre um beach club na Praia de Peracanga, Guarapari, onde se gastam cerca de dez mil reais por tarde, em champanhes e outras delícias. Uma das meninas que frequentam o clube, diz o seguinte: Eu prefiro aqui a estar na areia da praia. O público é selecionado e o ambiente é divertido. Aí, penso: Então tá: a praia não é mais um lugar democrático. Nem na praia querem mais se misturar com a plebe ignara.
Mas como disse Lúcio Manga no “errei na Mosca” de A Gazeta, a miséria está também no facebook. E diz mais: Tudo começou no orkut, mas como havia ficado popular, muitos jovens abastados migraram para o condomínio fechado do facebook, lembram? Completa o autor.
Pois é, então, está na hora de os jovens abastados saírem do facebook e irem para outro condomínio fechado. E isso já está acontecendo. No “A Gazeta” (03.02.2014), com o título Facebookcídio, uma psicóloga afirma que a popularização está afastando algumas pessoas que se sentem diferenciadas e que as redes sociais terão preferência, na medida em que forem exclusivas, ou seja, um condomínio fechado, na expressão de Lúcio Manga.
Daqui a pouco, vão arranjar um meio de isolar parte dos hoje denominados shoppings, que já são à prova de pedintes e vão passar a ser à prova de pobre. Espaço para cada qual. Já não fizeram isso com parte de algumas praias? Isso funciona com a moda e até com decoração de casas e apartamentos: quando fica popular, muda, porque ninguém quer ficar perto de pobres ter algo com eles.
Por fim, quando penso nessas contradições, relembro Gilberto Freire, com “Casa grande e senzala”. O que são a casa grande, senão os edifícios e casas luxuosas de Brasília, ou a moda para os ricos, os cercadinhos para os chamados Vips, os beat clubs, os shoppings fechados contra os tais rolezinhos? O que são as senzalas, senão os barrados nos shoppings, senão a rua como moradia, os farrapos, a fome e a miséria em geral?
Escrevi este texto faz tempo. Mas hoje, verifico que tudo está pior.
Em Brasília e no Brasil todo. A corrupção é endêmica, os números da roubalheira espantam e o desemprego assombra. Gente e mais gente dormindo ao relento. E os belos cachorrinhos peludos agasalhados em carrinhos de luxo nesses dias frios. A fome? A fome do povo? O que é a fome? Não posso ver, não quero ver.
Diz Drummond: “As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação”.
Maria Francisca – julho de 2017.
HELIO MARIO DE ARRUDA
9 de julho de 2017 às 08:24
Ótima análise das agressivas diferenças dos estratos sociais e da indiferença que domina quem pode minorar o sofrimento e a miséria de tantos.Triste e amarga realidade!
mariafrancisca
30 de julho de 2017 às 20:34
Obrigada, meu amigo Hélio. Um abraço.
Janice Emaculada Moraes Moreira
10 de julho de 2017 às 10:36
Infelizmente é a essa nossa realidade : brasileira desde o tempo do descobrimento e porque não dizer do mundo . A maioria das vezes acabo fechando olhos e ouvidos para fugir da realidade . O que se vê e ouve é de lastimar . Estamos num barco sem saída . Quem sabe, o jeito é fazer como aquele personagem da Cecília Meireles , cuja obra não me lembro : ¨ da janela vejo aquele homem molhando as plantas com gotículas d’água pingando dos dedos” fazendo a parte dele . Vamos tentar fazer a nossa parte na esperança de dias melhores .
Abraços e obrigada por compartilhar comigo seus sentimentos.
mariafrancisca
30 de julho de 2017 às 20:33
Continuamos na mesma. Infelizmente. E nossa geração, que tanto lutou, está aí, perplexa.
Um abraço, querida comadre.
Lorenza
12 de julho de 2017 às 11:35
Cronica de Brasilia, Vitória, qualquer lugar do Brasil… e que carga desesperança!
mariafrancisca
30 de julho de 2017 às 20:32
Pois é, minha amiga. Triste realidade. Um abraço.
- Attilius
20 de julho de 2017 às 09:03
… Será que ainda somos de uma geração que tem lentes para enxergar essas coisas… ou o mundo ficou tão insensível a ponto de deletarmos qualquer imagem instantaneamente como fazemos com nossos equipamentos eletrônicos… a um simples toque de um dedo, ao simples piscar de olhos? A realidade fica empilhada para trás, sem culpa.
mariafrancisca
30 de julho de 2017 às 20:30
Será, será? Muitas questões, meu amigo. Muitas questões… E nossa geração está aí, perplexa.
Um abraço.