UM MINUTO DE FAMA - Maria Francisca

 2 de novembro de 2016 

 

no-trem-da-vale

Moça, onde consigo trocar o  Voucher?

Plataforma 4.

É pra pegar a passagem.

Plataforma 4.

Plataforma 4 não é pra embarcar?

Plataforma 4.

Quase perguntei: Você é um robô?

Desisti  e saí à procura da tal de plataforma 4. Uma fila enorme, todos confusos, pergunta vai, pergunta vem, e nada de resposta.  Cada hora alguém se enxertava ali. De repente, percebi que a tal fila para troca do voucher era outra, paralela.  Pulei dali, entrando na frente de uma senhora que deu o grito: Opa, eu já estava na fila.  Foi o jeito deixar a mulher passar. Nem tinha visto de onde veio, mas, naquela confusão, fazer o quê?

Recebi a passagem e fui arrastando aquela mala enorme, com uma bolsa em cima, mais uma sacola e uma bolsa de mão, procurando minha plataforma que estava bem distante. A mala tombava, a bolsa caia no chão e lá ia eu, como uma imigrante tonta, que nem sabia em que cidade estava, tanta gente, cada um correndo mais do que o outro.

Aleluia! Eis-me sentada, após conseguir enfiar a grande mala naquele espaço gradeado, rezando pra ninguém colocar uma mala maior ainda em cima, como já aconteceu outras vezes.

Tão logo entrei no vagão, aticei o ouvido e prestei atenção à conversa de um senhor, ao telefone: “Zé, aqui  é tudo fofim. As cadera toda bunita, larga, tem lugar pra guardar os trem, tem até aquele home que passa com carrim, pra toma  o dinheirim  dagente.  Num tem aquelas cadera dura mais não, moço. E é friim, friim. Aquel solão lá de fora, meu fio, nem parece que tem. Quase que perciso visti casaco”. E continuou naquele mesmo tom, descrevendo os aposentos do trem, numa alegria que dava gosto ouvir.

Fiquei alguns minutos atenta àquela singeleza bonita, na simplicidade de gente do interior, que há tempos não via.

Depois, abri um livro e comecei a ler, de Humberto Eco, “Cemitério de Praga”, que ganhei faz tempo. Já no início, achei interessante.  A personagem narradora que, segundo a resenha, é a única imaginada pelo autor, fala mal de todos os povos.  Dos alemães, diz, entre outros defeitos, que abusaram de dois grandes narcóticos europeus: o álcool e o cristianismo. Dos franceses, que são exibicionistas, que pensam que todos falam francês, que são preguiçosos, trapaceiros etc. O italiano não é confiável, é trapaceiro, traidor etc. E foi falando sempre mal de todos, de forma engraçada. Dos padres, diz que o sujeito se faz padre ou frade para viver no ócio e que os piores são os jesuítas que são irmãos carnais dos maçons.

E aí, começa a falar das mulheres: ” Odeio as mulheres, pelo pouco que sei delas. Nas brasseries à femmes reúnem-se malfeitores de toda espécie. Pior do que as casas de tolerância. Fazem mal até de longe. Mulheres não sabem nada”.

O trem em movimento, interrompo a leitura porque percebo uma mensagem de um amigo que, entre outras coisas, pergunta se a paisagem é bonita. Só aí olhei pra fora. Percebi que preciso de outro olhar, mais imaginativo, menos analítico.  Não consegui enxergar beleza alguma.  Rio seco e sujo. Ainda mais depois dessa lama no Rio Doce.

Retomo a leitura.

O trem para numa estação, saem pessoas, entram outras. Acomodam-se, atrás de mim, uma senhora idosa, mais um casal e uma menina, que, como se dizia há tempos, parecia ter engolido agulha de vitrola. Falava tudo muito alto e rápido, como a maioria das crianças.

Por fim, deixei o livro de lado, para escutar.

Conversavam sobre quadrinhos. De uma personagem passavam para outra: Pateta,  Miquey Mouse, turma da Mônica e começaram a enumerar as personagens do desenho.  Mônica, Cebolinha etc e avó que estava ao lado dela na poltrona falou da Minie. A criança, então, disse, brava:  “Vó, tá errado. Minie não é da turma da Mônica. Deus me livre! Vovó parece homem, não sabe de nada!”

Achei engraçado, porque acabara de ler que mulheres não sabem de nada. Em suma, ninguém sabe de nada.

Escuto outro grupo de conversas. Estados Unidos é um país maravilhoso. Só que não, digo pra implicar.  O rapazinho que passou a me chamar de tia e  falava dos Estados Unidos, riu e disse: Não estou mentindo. Claro, você não está mentindo, você só está exagerando. Todos riram e a conversa descambou para os defeitos dos Estados Unidos, com Trump, a mulher de Trump que plagiou Michele Obama etc, etc.

E lá se vai o trem sacolejando pelo caminho afora. Quando chego ao destino, ufa! Peguei tudo e saí às pressas, para cumprir meu destino.

Dias depois, retorno. Na estação, avisam que o embarque será pela linha do meio. Já fico preocupada com aquelas pedras no meio do caminho. Não a pedra do Drummond, mas muitas, miúdas, prontas para dar o bote e jogar o incauto ao chão, de preferência todo arranhado.

Pois não foi o que aconteceu comigo? Tropecei, tentei um malabarismo de yoga para não me machucar e cai de pernas para o ar. Foi um Deus nos acuda. Todos em volta, machucou? Está bem? Sim, estou bem, aliás estou ótima (e com muita vontade de rir, quase falei). Muitos vieram ajudar a carregar os trastes, sempre com palpites. Uns diziam: Um livramento. Outros que eu era muito forte etc. Empregados da Vale, avisando: Olhe, uma senhora caiu, uma senhora caiu, uma senhora caiu…parecia um eco.

Viralizou, pensei, rindo sozinha.

E, assim, obtive meu minuto de fama, que degustei até o fim da viagem, enquanto cantarolava baixinho a música do Milton:  Todos os dias é um vai-e-vem, a vida se repete na estação. Tem gente que chega pra ficar…e assim chegar e partir…

 

Maria Franciscainício de novembro de 2016.

 

COMENTE:

35 comentários

  1. Mais uma bela história. Não falei que daria uma. E ainda diz: “Só aí olhei pra fora. Percebi que preciso de outro olhar, mais imaginativo, menos analítico. Não consegui enxergar beleza alguma. Rio seco e sujo. Ainda mais depois dessa lama no Rio Doce.” Kkkkk. Fico imaginando se tivesse.Abraços.

  2. Eu já ia dizer que vc não teve só um minuto de fama, mas anos e anos e ainda os tem. Mas veja como a mente trai a gente (ia escrever “como a mente nos trai”, mas não resisti a esse “mente trai a gente” rsrs): Quem disse que era você no trem? Bem podia ser a Valentina…

    Beijos!!

  3. Texto delicioso! Queria mais…
    Parabéns, Dra. Francisca!!

  4. Lindo texto. Faço está viagem com frequência, indo para a casa da sogra. Realmente é muito divertido ouvir os diversos prozeados e causos. Parabéns por retratar está experiência.

  5. FRancisca,

    Você me fez lembrar aquelas viagens, que fiz muitas vezes entre 1970 e 1973, para trabalhar na construção da Usina Hidrelétrica de Mascarenhas – Baixo Guandú, pela Escelsa. Naquela época a vazão do Rio Doce era bastante volumosa.

    Abs

    Arildo

  6. Parabéns, minha escritora!

    • Grata, meu amigo. Aproveito para dizer-lhe que fui convidada para a Academia de Letras de Teófilo Otoni-membro correspondente. Devo tomar posse em fevereiro. Vamos lá? Um abraço.

  7. Você me levou a viajar com você, desde a troca do Voucher, até o desembarque -, arrastando mala, sacola, bolsa, caindo, levantando .

  8. Parabéns querida!
    Saboreei o texto com uma gula de dar dó…
    Belos e apetitosos dizeres.

    Beijo.


  9. Regina Lúcia Pinto Rangel
    3 de novembro de 2016 às 12:11

    Amiga Querida
    Que viagem! Não foi pior porque se transformou num belo texto!
    Um esforço literário e tanto…
    Beijos

  10. Li, ouvindo a senhora contar a história, palavra por palavra, com pausas, sorrisos curtos e maiores e olhares inadagadores da alma alheia rssss. Por outro lado, esta belíssima crônica, mais uma, reafirma o olhar analítico e ao mesmo tempo generoso para com as pessoas e a natureza. Um texto delicioso… Queremos mais, por favor!

    • Oi, Emiliano. Fico muito feliz de ter você aqui no meu blog. Tenho muitas saudades de nossos papos. Você, como diz a música do Chico, sumiu no mundo sem me avisar…rsrs. Obrigada. Um abraço.

  11. Parabéns, Dra. Francisca !Esta singela crônica me transportou de Vitória à Colatina, num passeio inesquecível pelas linhas do trem, quando criança.
    Só faltou falar do medo de passar no túnel ( tenho até hoje!), continue a publicar aqui.

    • Você esqueceu de dizer que, quando chegou de volta na estação Pedro Nolasco, ainda teve que me acordar, pois estava dormindo na estação desde o dia anterior esperando por você, e morrendo de saudade. RSRSRSRS.

    • Pois é, Denise. Eu fiz essa viagem de Minas a Colatina muitas vezes, tempos atrás, quando o trem era antigo. Chegava-se ao destino preto de poeira. Mas tudo era festa. Juventude é isso…rsrs. Grata. Beijos.

    • Pois é, Denise. Eu fiz essa viagem de Minas a Colatina muitas vezes, tempos atrás, quando o trem era antigo. Chegava-se ao destino preto de poeira. Mas tudo era festa. Juventude é isso…rsrs. Grata. Beijos.

  12. Comadre, você é ótima ! Cada dia te admiro mais ! Faz da viada uma poesia , leveza, alegria ,reflexões profundas , deixa bem claro o sue lado humanista. Parabéns !

    Quero deixar aqui também registrado porque no meu corre- corre e o fica pra depois , não comentei o texto da CLT : EXCELENTE. AMEI.

  13. CORRIGINDO … FAZ DA VIDA

  14. Lembrou-me as viagens de trem Entre Belzonte e Bom Despacho, nos trens da hoje extinta Rede Mineira de Viação! Delícia, cara Francisca!

  15. Oi, Maria Wilma. Fiquei feliz com sua visita. Que bom que gostou e que minha crônica tenha despertado suas lembranças. Beijos.

  16. Francisca: são dessas viagens que fazemos através das palavras de outros..são dessas que alimentam-se o leitor…que voa livremente nas asas da imaginação de quem escreveu…grata pela maravilhosa viagem!!!abraços bem carinhosos meus.

Responder para to Ney


Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


Receba nossas novidades:

Arquivos por mês: