Maria Francisca - Blog da Maria Francisca Lacerda, escritora e poeta. - page 8

 18 de setembro de 2020 

Eu leio muito rápido.
Entretanto, há três motivos que fazem lenta minha leitura. O primeiro é quando o livro demanda calma para ser entendido, ou melhor, assimilado. O segundo é quando é enfadonho, mas, mesmo assim, vale a pena a leitura. O terceiro: o livro é muito grande. Reparto em partes e vou lendo pouco a pouco, senão, fico só nele, privando-me dos demais por algum tempo. Assim foi com Gabriel Garcia Marquez, em “Viver para Contar”.
Agora, a minha leitura de “Normose” atende ao primeiro requisito. Preciso ler com vagar, para melhor entender o que dizem os autores Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e Roberto Crema. Belo livro, belos ensinamentos.
E essa leitura levou-me à releitura do conto “Espelho” de Machado de Assis.
Ouço, de vez em quando, colegas aposentados reclamarem que estão invisíveis, ou seja, não são mais convidados para festas, não recebem telefonemas dos colegas em atividade, de outras pessoas etc.
Já escrevi sobre o palco iluminado (A luz, a ponte e o palco, do livro “Caminhos”) onde estamos inseridos por algum tempo, dá-nos visibilidade e no faz parecer maiores. As pessoas veem-nos apenas quando estamos no palco. Isso ocorre, mesmo, e não temos como nos livrar disso. Às vezes, até gostamos.
Nesta semana, li uma reportagem sobre um Juiz que concedeu habeas corpus a um jovem que estava preso. Esse caso deu o que falar, conforme registra a notícia. Um dos motivos, ambos negros, segundo se disse. O Juiz falou (UOL de 13.09.2020) que ainda era discriminado. Quando estava na rua, sem a pompa do cargo, era apenas um negro. Ele sentia isso. Com a toga, ele era o juiz e livrava-se da discriminação. Sim, há discriminação. Não temos dúvida.
Pior é quando nós mesmos só nos vemos quando estamos investidos de algo que consideramos importante.
Jacobina, personagem de Machado de Assis (O Espelho), disse que o homem tem duas almas. Uma, exterior, e uma interior. A exterior pode até mudar com o tempo, e costuma obliterar a interior, se se tornar muito forte. Ele conta a sua própria história de quando se tornou Alferes. Só se via como Alferes. Todos o tratavam com tanta distinção, que começou s sentir-se “O Alferes”. E nem se via mais como antes, um ser humano comum. Alguns fatos ocorreram na família, entretanto, e ele ficou sozinho, solitário, mesmo, durante muito tempo. Sem usar a farda e sem nenhum rapapé, sua imagem no espelho desaparecera de tal sorte, que virou apenas uma sombra. Horrorizado com o fato, ia e vinha em frente ao espelho e só sombras. Até que resolveu vestir a farda e olhar-se novamente no espelho. Aí, sim, era, de novo, o Alferes.
A moral dessa história assemelha-se ao versículo do Evangelho de Mateus (6:21) que diz: “Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração”.
Esse apego ao cargo e ao poder, segundo Pierre Weil, é sintoma de normose. É sentimento de superioridade de si mesmo em relação aos demais à sua volta. Daí nascem o orgulho e a vaidade.
Se nós mesmos nos vemos apenas como juízes, se não desvestimos a toga quando estamos em casa, na rua, como disse o juiz da notícia, estaremos sempre querendo ser tratados como juiz, esquecendo-nos da nossa condição de pessoas. Não podemos deixar o cargo obliterar a pessoa comum que há em nós. Senão, quando estivermos aposentados, seremos como Jacobina, nosso espelho só terá sombras, e não nos veremos mais.
É claro que juízes são tratados de forma reverente. A reverência é do cargo. Mas o cargo não sou eu. Estou no cargo. Passageiro no cargo, como passageiro na vida.
Por isso, é importante separarmos o amigo do cargo, do amigo de verdade. Plutarco já disse que é preciso distinguir o amigo do bajulador.
Fiz uma brincadeira com o Alferes. Resolvi vestir a toga que tenho guardada de lembrança e ir ao espelho.
Que nada… Estava lá eu, euzinha…

Maria Francisca – setembro de 2020.

 21 de agosto de 2020 

 

Esses dias, vi num jornal uma foto de um bonito jovem, com uma legenda mais ou menos assim:

“André (nome fictício) aproveitando o belo sunset na praia”

Fiquei a imaginar o que leva uma pessoa a usar uma palavrinha em inglês para algo que, falando no nosso português, seria muito mais bonito. Falo só por mim, mas acho a expressão “pôr do sol” tão linda que eu jamais iria substitui-la por sunset.

Sei que até as palavras caem de moda. Queima, de um tempo mais distante, passou a liquidação, depois, inglesou, virou off. Farmácia é drugstore, entrega em domicílio é delivery, ao vivo é live e assim, por diante.

Então, resolvi entrar na onda, trazendo o título em inglês.

Brincadeiras à parte, quero, mesmo, é falar de egoísmo. O dicionário Caldas Aulete traz o seguinte:  amor-próprio; exclusivismo, solipsismo, filáucia, orgulho.

Solipsismo e filáucia ficarão para outra oportunidade, antes que me perguntem: Filosofia numa hora destas?

Falemos de orgulho, amor-próprio, exclusivismo.

Orgulho é um dos pecados capitais. Entretanto, há orgulho e orgulho.  Você pode se sentir orgulhoso, feliz, por algo belo que conseguiu realizar.  Você sabe quem você é, tem amor-próprio, autoestima, sem achar-se melhor do que qualquer outra pessoa. Essa atitude jamais poderia ser condenada. E, no meu entender, não pode ser confundida com egoísmo, apesar de constar em dicionário.

Orgulho, pecado, é entender-se melhor do que os outros, é desdenhar das pessoas que o orgulhoso julga menor. Já escrevi um texto que, no linguajar moderno, viralizou – Juizite – foi objeto de publicação de muitas revistas e jornais, neologismo para designar o juiz pedante, ego soberbo, que se vê melhor do que os outros, e consta do meu livro “Caminhos”. Da mesma forma, um senhor que, tentando furar a fila em aeroporto, gritou: Sou diamante, minha filha! É o narcisista.

E já que falamos em inglês, o Oxford Learners’s Dictionary registra selfish em tradução livre, como “preocupando-se apenas consigo mesmo e não com outras pessoas” (caring only about yourself rather than about other people).

O egoísta, mesmo, é o exclusivista, só pensa em si, sem se importar com ninguém mais. Se é exclusivista e pensa só nele próprio, é, também, mesquinho, sovina, avarento.

São pessoas que não conseguem dividir nada. Pão-duro, canguinha, unha de fome, mão de finado, Tio Patinhas – são alguns dos apelidos para os sovinas.

Fica-se pensando o que faria a pessoa ser assim. Por que muitos gastam até o que não têm, outros são generosos, mas prudentes e, outros, ainda não conseguem dividir nada?

Li o seguinte na Revista Super Interessante que “A ciência segue em busca dos motivos para esse comportamento antinatural. O que se pretende saber é se existem áreas do cérebro capazes de desencadear a cobiça e, consequentemente, o desejo de ter mais e mais.”

O biólogo Michael Soulé lembra, no mesmo artigo, que “pelo menos dez diferentes centros no cérebro são ativados quando a pessoa tem impulsos para praticar inveja, orgulho, ódio, gula, preguiça, luxúria e avareza, a maior parte deles localizada no sistema límbico, responsável pelas emoções.”

Mas a avareza, segundo a psicologia, pode ser desencadeada por um medo, nem sempre real. Se a pessoa passou fome quando criança, rico, quer sempre guardar, com medo de lhe faltar comida no futuro.  Será?

Mas vejo ricos avarentos, pobres avarentos, e isso pode ir passando de pai para filho. Não de forma genética, mas pelo exemplo, penso.

Claro que precisamos de dinheiro para nossa sobrevivência e ter dinheiro não é pecado. Ter uma poupança para os momentos de aperto é louvável. O pecado é o apego excessivo aos bens materiais, e viver, muitas vezes, de forma precária, com pena de gastar o dinheiro, simplesmente pelo apego. E ajudar algum necessitado? Nada. Isso, sim, é triste.

E há, ainda, aqueles que só querem receber elogios, mas não dão atenção ao que os outros fazem.  Hoje, então, com o mundo digital…Muitos só querem like, mas não dão a mínima atenção para o que os outros postam, mesmo amigos.  Isso, também, é egoísmo.

“A Humanidade está precisando de colo”. Assim começa uma entrevista do cantor e compositor Renato Teixeira, no caderno 2 da Tribuna de 18.08.2020.

Disse que a solução para resolver o problema do mundo é maternal. Deve-se ter compreensão, afeto e carinho, porque o formato do mundo que conhecemos acabou.

Complemento com meu pensar: quem espera só receber colo, nunca o terá. Pode receber por um tempo, depois…Minha praga? Não! Vivência.  Como em para-choque de caminhão: “Os egoístas morrem sozinhos…”

Queremos colo, sim, mas vamos também dar colo, sorriso, a mão, ajuda financeira, quando pudermos, que o mundo ficará melhor.

Maria Francisca – agosto de 2020.

 

 2 de agosto de 2020 

O jornal “A Gazeta”, do Espírito Santo, numa de suas últimas edições impressas, traz uma matéria em que o entrevistado fala de algo “que não vende, não troca nem doa”, pelo apreço que tem por aquele objeto, que, nem sempre, é algo de valor material ou comercial. É uma lembrança, de valor, digamos, espiritual.

Leonardo Boff explica muito bem esse valor, que denominei espiritual. Diz ele (in ‘Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos’): “Toda vez que uma realidade do mundo, sem deixar o mundo, evoca uma outra realidade diferente dela, ela assume uma função sacramental. Deixa de ser coisa, para se tornar um sinal ou um símbolo. Todo sinal é sinal de alguma coisa ou de algum valor para alguém. Como coisa, pode ser absolutamente irrelevante. Como sinal, pode ganhar uma valoração inestimável e preciosa.”

Por isso, quando um filho ou neto faz um desenho para nós, guardamos com um carinho que não se pode medir. Pode ser um desenho tosco, mas feito para nós. Ali não está um desenho apenas, está o amor do filho ou do neto.

É o sinal do amor, do carinho.

Quando ganhamos flores de alguma pessoa especial, sentimos um bem-estar muito grande, porque as flores não são apenas flores, são a amizade, o amor e o carinho da pessoa que nos presenteou.  E ficamos com pena quando murcham. Eu, por exemplo, tiro aquelas florezinhas e guardo numa caixinha. De vez em quando, olho. É uma coisa, mas é um sinal. Por isso, vira sacramento e rememora a gentileza daquela pessoa que nos ofertou.

Só não se pode fazer como meu marido. Comprou as flores e, para fazer-me surpresa, colocou o ramalhete debaixo da cama. Murcharam todas, que pena… Mas eu gostei, assim mesmo. Guardei as flores, mesmo murchas.

Um livro com dedicatória de um amigo, mais um exemplo, é pérola a ser guardada debaixo de sete chaves.

Há pouco tempo, um amigo viu um livro, autografado, num sebo. Ele me perguntou: Você já viu alguém mandar para o sebo um livro dedicado a ele? Eu, na maior tranquilidade, respondi: Já vi até um meu… Ele riu e nada disse.

As pessoas não pensam da mesma forma. Talvez, foram ao lançamento por gentileza, apenas, talvez não tenham gostado do livro, não gostam de ler. Precisavam do espaço etc. Aconteceu até com Reinaldo Polito, conforme contou na sua coluna uol , de 07.07.2020. Deu seu primeiro livro, o primeiro exemplar, com autógrafo, para Martha Rocha, a bela Miss Brasil, recém falecida. Depois de um tempo, encontrou-o num sebo.

Eu guardo meus presentes, com muito carinho, seja o que for.

Ano passado, entretanto, doei todos os meus livros de Direito para a UFES.   Para não voltar atrás na doação, apegada que era a eles, fui tirando todos da estante, sem olhar, colocando numa caixa, fechando e levando para a biblioteca. Só depois lembrei-me dos livros de afeição que estavam juntos. Alguns eram absolutamente impossível não guardar, tamanho o amor por eles. Deu-me uma tristeza enorme, vontade de correr lá, abrir todas aquelas caixas e retirar os livros-sacramentos. Mas como fazer isso, sem passar vexame?

Pensei: E, agora, José? Doei e arrependi-me.

Resta-me olhar para a estante, sentir saudades deles e pedir perdão aos meus queridos amigos que me fizeram o presente.

 

Maria Francisca – julho de 2020.

 5 de julho de 2020 

Cansada de olhar pela varanda, resolvi sair de casa hoje.  Queria vencer o marasmo e a inquietude. Pensei, assim, retomar a compostura habitual. Andei devagar, subi 16 degraus, mais devagar ainda, e cheguei. Ao terraço.

De lá, olhei pra longe. Só se via prédio, porque uma grade de proteção impedia a visão do mar, das ruas, dos carros, apenas navios pequenininhos ao longe.

Mas via o céu. Não tinha uma nuvem. Limpo e azul este céu de Vila Velha.  O sol, aproveitando-se da liberdade, brilhava o quanto podia. E podia muito, porque daí a pouco eu já sentia calor.

Fiquei um tempão olhando pra cima. Cansei. Resolvi caminhar ali mesmo. Dei voltas e mais voltas. Cantei baixinho, rezei dois terços, recitei poemas, inventei versos (que esqueci um minuto depois).

Então, comecei a dar corda à imaginação. Respirei fundo, inspirei, expirei diversas vezes, tentando entrar no clima. Nada.

Cantei, ora esganiçada, ora rouca, tentando vozes e vozes distintas. Nada. Nada adiantava.

Retornei do meu “grande” passeio e abri o whatsapp. Comecei a rir, da primeira coisa que vi. Uma mensagem de um colega, em que uma pessoa dizia que estava com uma mancha amarela no corpo (já fiquei atenta) e, depois de exames e mais exames, descobriu-se a doença da inércia: mofo.

Então, lembrei-me de um fato acontecido nos idos anos 80. Morávamos em Salvador. Uma senhora de outro Estado estava na casa do filho que morava naquela cidade.  Um dia, ela foi visitar-nos, agradável surpresa, e, quando ia embora, fui levá-la até a portaria do prédio. Ao entrar no elevador, cuja luz era bem forte e clara, ela olhou-se no espelho e disse:  Puxa! Como envelheci nesta Cidade. Olhe como estou cheia de rugas. Nossa! Estou horrível.  Eu disse: Não, a senhora está ótima. Ela apenas riu.

Em verdade, eu precisava ter dito é que ela estava tal qual havia chegado à cidade, porque estava ali há menos de uma semana. Mas seria grosseiro de minha parte.

Ontem, aconteceu comigo algo parecido. Tive que ir à portaria receber um objeto que uma amiga comprara para mim, e vi que ela me olhou com estranheza. Na hora, não entendi, mas não dava tempo de perguntar, porque estava parada na rua e teria que ser rápida. Em casa, olhei-me no espelho e vi. Estava péssima. Com uma roupa velha, horrível, o cabelo preso com um grampão e com a tintura vencida, um corte mais do que tosco (feito por mim), de chinelo velho, enfim, da pior forma. Depois, ri. Minha amiga deve ter pensado que eu estava muito velha e mofada.

Pois é. Fiquei muito velha, feia e mofada nesse isolamento.

Culpa do bicho-corona.

 

Maria Francisca – Final de Junho de 2020.

 

 

 

 14 de junho de 2020 

Tenho uma palavra na ponta da língua.

Herança de minha mãe, último tom, numa casa sempre cheia. Ora crianças, ora compadres, comadres, afilhados, parentes, todos juntos, e mais quem viesse. E a palavra se fazia ouvir de cada canto da casa. O barulho do mundo estava lá.

A palavra dava-se em brados, como se fora um profeta a alertar o povo para o fim do mundo. Poeta algum naquele meio, tampouco orador ou juiz. Mas a palavra era a arma de todos naquele ambiente alegre e ruidoso.

Se um pequeno silêncio se fazia, quem estava fora do grupo acorria, como se um acidente ocorrera. Palavra, palavra, palavra, tudo era palavra. Cantada, falada, discursada, armada ou desarmada.

Palavras escritas iam e vinham em cartas e mais cartas.

Meu pai, ao contrário, era a pausa, o intervalo de silêncio naquele vozerio sem fim. Sua palavra silenciosa era o olhar. Olhar calmo, bondoso, ou zangado, que obedecíamos como se fora um grito.

Eu amava o silêncio do meu pai. Eu queria seu silêncio, eu precisava do silêncio de meu pai, para mim. Só não conseguia alcançar seu horizonte, porque eu sentia e via tudo à altura dos meus olhos.  Por isso, herdei a palavra de minha mãe, seu tom e sua destreza no dizer. Às vezes, quero silenciar, mas a palavra sai. Não é minha, não a conduzo, ela simplesmente é a palavra.

A família tornou-se ruidosa por essa herança. Quando se juntam, é sempre festa, alegria, risadas, palavras, palavras… Tudo vira piada, sempre lembrada e relembrada por todos, passando de geração em geração.  As mesmas. Usadas, usadas, sem perder a substância.

Um conclave? Poderia pensar alguém que chegasse na hora.

Não, apenas reunião de família. Família de palavras. Nada de açoites.  Palavras leves. Carinho, apenas carinhos ruidosos.

Carinho em palavras.

 

Maria Francisca – maio de 2020.

 23 de maio de 2020 

Olha isso aqui tá muito bom

Isso aqui tá bom demais

Olha, quem tá fora quer entrar

Mas quem tá dentro não sai. Pois é…

(Dominguinhos)

 

De repente, máscaras, álcool em gel, sabões e desinfetantes transformaram-se em bens de primeira necessidade.

Ordens dos novos tempos: Fique em casa! Use máscara! Lave as mãos! Mantenha distância!

Se você, idoso, resolve ir à esquina, porque precisa de um analgésico, há sempre alguém que lhe diz: Vai pra casa! Ou, desaforadamente: Vai pra casa, velho! Cuidado, implicância, ou medo?

Todos com medo de todos? Gente com medo de gente?

Na letra da música de Dominguinhos ninguém quer sair e todos querem entrar, porque está tudo muito bom. Só que não. Hoje, ninguém sai por medo e ninguém entra por medo. Está tudo muito ruim. Só a quietude do lar nos conforta.

Há algum tempo, escrevi uma crônica, que ainda não publiquei, sobre o uso de redes sociais, minha mais nova implicância, por considerar que todos vivem numa bolha e nem vêm o que se passa ao seu redor. Cada um por si. Por isso, apelidei a rede social de repelente de gente. “Estou conectado, não me incomode”, parece dizer.

Neste momento de pandemia, entretanto, as redes sociais, ao invés de bolha, ou repelente, ganharam status de ponte, por onde nos conectamos com o mundo ao redor, por absoluta impossibilidade do “olho no olho”.

As festas, as reuniões, as compras e muito tipo de trabalho estão sendo realizados dessa forma. Como fazer compra de mantimentos, como viajar, como reunir as pessoas?

As redes sociais fazem ponte, ainda, com a solidariedade. Pessoas arrecadam bens, materiais, alimentos e dinheiro para os necessitados. Ah se não fosse esse repelente elevado a ponte… Ponte sobre o caos…

Como realista esperançosa que sou (no dizer de Suassuna), espero um mundo em que não necessitemos de pontes movediças. Mas que os humanos sejam suas próprias pontes, para ir ao encontro do outro.

Na crônica “Recado ao Sr. 903”, Rubem Braga fala da reclamação do vizinho do 903 sobre barulho do 1003 (ele) e diz que tem razão. Não se conhecem e, portanto, estão reduzidos a números, ninguém procura ninguém e a vida só é tolerável, em ambiente assim, quando ninguém incomoda ninguém.

E arremata lindamente:

“Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou. E o outro respondesse: Entra vizinho, e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela.

“(…) e os dois ficassem entre os amigos (…), entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.”

 

Maria Francisca – 29 de abril de 2020.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 22 de abril de 2020 

Há algum tempo, num evento de juízes aposentados, um palestrante, também juiz, explicava a tramitação de uma Proposta de Emenda Constitucional. Quando ele começou a falar, pensei: Será que ele pensa que nós, por sermos aposentamos, ficamos imbecis? Quem não conhece a tramitação da chamada PEC?

Na hora do debate, uma colega soltou o verbo. Por que as pessoas gostam de infantilizar o idoso? Se vamos fazer um exame de sangue, a técnica diz: Cadê o bracinho? Se vou comprar sapato, levante o pezinho…Agora, esse colega a ensinar-nos coisas que aprendemos antes do nascimento dele. Será que não estamos apenas velhos? Não lemos nada? Estamos todos bobos e infantis?

Gerou um clima constrangedor. Uns riam diante do estresse, outros concordavam com ela… Outros achavam que ela fora mal-educada.

Talvez o jeito de dizer não tenha sido o mais adequado, mas ela estava coberta de razão, eu disse na época.

Quando encontramos uma criança, normalmente, dizemos: Que gracinha! Com os velhos, a mesma coisa! Ninguém fala com uma jovem senhora dessa forma. No máximo: Você está muito bonita! Por quê? O velho é infantilizado, sim. Eu disse isso para uma médica, quando ela me pegou a mão, dizendo: Dê-me a mãozinha. A resposta: Você tem razão. Vou pensar sobre isso. Acostumamo-nos tanto a falar assim que nem percebemos.

Muitos dizem que é uma forma de carinho. Ser carinhoso com o idoso é respeitá-lo, falar uma linguagem adulta, de forma que ele entenda. Atentando para a idade, meio social, saúde etc.

É muito comum, também, perguntar a idade do idoso. Após a resposta, diz-se: Que gracinha! Ou, você está ótima, corpo de menina! Que gracinha o quê? Que corpo de menina, o quê? No máximo, bem arrumada e magra! Outro dia, na Farmácia (outra coisa: estão sempre oferecendo ao idoso: ômega 3, cálcio…), após a moça me oferecer um monte de coisas e eu recusar, ela perguntou: Quantos anos você tem? Eu disse: Não vou falar, porque já sei que vai dizer: Nossa! Está ótima, ou que gracinha... Ela riu muito…

Em recente artigo (https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao), Rodrigo Moraes faz o seguinte comentário: “Imagine-se em um encontro com o maestro João Carlos Martins e perguntando se ele vai tocar seu “pianinho” esta noite. Faz sentido? Que tal sugerir ao ex-atleta Edson Arantes do Nascimento, sim, ele mesmo, o Pelé, a brincar de “bolinha” com ele. Parece normal?”

Outras atitudes que demonstram falta de respeito ao idoso, citadas no mesmo artigo, podemos ver sempre. Por exemplo, se o idoso está acompanhado, seja na rua, em lojas, ou hospitais, pessoas dirigem-se ao acompanhante, como se o idoso não estivesse presente, ou seja, ignora-se o idoso; desconsiderar os seus conhecimentos, como ocorreu no Evento mencionado no início; fazer um convite à família e excluir o idoso.

A psicanalista Eloah Mestieri, citada no artigo acima, disse o seguinte: “A infantilização do idoso é um mal que pode fazer com que os idosos se sintam diminuídos e tenham sua autoestima severamente afetada. Na medida em que minimizamos sua autoconfiança e sua autoestima, o idoso é levado a ter um olhar sobre si mesmo como alguém frágil e incapaz”.

E isso, com certeza, pode levar ao adoecimento ou agravamento de alguma doença.

Então, minha gente. Eu tenho pé e não pezinho, tenho mão e não mãozinha, tenho braço e não bracinho e, graças a Deus, ainda penso, leio e escrevo. E não vou mais dizer a minha idade, pode crer.

Quando eu não puder, não puder, mesmo, fazer nada disso, podem me infantilizar à vontade.

Por ora, não, por favor.

Maria Francisca – fevereiro de 2020.

 14 de fevereiro de 2020 

Você quer ir para o céu?
Ninguém quer morrer, isso é certo.
Medo de morrer? Muitos têm. Por que esse medo? Será pela incerteza do que será depois? E quem crê na Vida Eterna? Tem medo?
Rubem Alves publicou diversas crônicas sobre a morte. Numa delas, ele diz que morte súbita é ruim. Precisava de tempo para escrever seu haikai. Noutra: Já teve medo de morrer; não tinha mais, só pena. E outras e outras.
Steve Jobs teria dito que a morte era a melhor coisa da vida, porque faz as pessoas cuidarem mais de si, pensarem mais nos objetivos a realizar, antes que seja tarde. E que todos querem ir para o céu, mas ninguém quer morrer.
Clarice Pierre (A arte de viver e morrer) afirma que à medida que nos conscientizamos de nossa mortalidade, fragilidade, poderemos mais intensamente valorizar a vida e viver sem desperdício de um só minuto de nossa existência. Diz, ainda, que diversos filósofos já teriam se dedicado ao assunto, como Platão e Sartre, pois vida e morte fazem parte de um mesmo enigma e de um mesmo resultado: a finitude.
Eu leio e penso bastante sobre a vida e a morte, mas sei disto: a finitude incomoda-nos a todos. Mistério insondável, constrangedor.
Nossa cultura trouxe-nos a repulsa ao tempo como limitador e à impotência diante desse fato. Por isso, silenciamos. Não estamos preparados para falar de tema tão intrigante. Quando alguém fala, os que estão em volta logo pedem para mudar de assunto.
Já tive medo de morrer. Pensava nos filhos pequenos. Hoje, não mais. Vão sentir minha falta? Talvez, saudades por um tempo, depois, a vida segue seu rumo, cada um cuidando de seus afazeres e, como disse Drummond sobre Itabira, se restar alguma coisa, é apenas um retrato na parede.
Penso que a preocupação com a ideia da morte é também a dúvida de como será esse final. Com dores, sofrimento, humilhação? Nesse caso, a tristeza é maior, tanto para quem está partindo, como para os que cuidam do doente terminal.
Em “Sobre a morte e o morrer”, Rubem Alves conta a seguinte história: “Dona Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. ‘Minha filha, sei que minha hora está chegando… Mas, que pena! A vida é tão boa…’”
Pois bem, minha mãe tem 99 anos. Sempre foi uma pessoa forte, lutadora, de uma religiosidade à toda prova, solidária com todos, daquele tipo que costura para quem precisa, vai ao asilo dar banho nos idosos, coloca na sua mesa qualquer pedinte e acolhe qualquer pessoa em sua casa.
Hoje, acamada. Sofre há dois anos. E, como a personagem do Rubem, não enxerga mais nada. Mas tem uma sede de vida incrível. Vive pedindo a Deus para tirá-la da cama. Quando está sofrendo muito, fala que morrer é muito difícil. Se melhora, levanta as mãos para os céus pedindo para recuperar a saúde. E, às vezes, questiona: será que vou morrer hoje?
Ninguém sabe o dia, nem a hora do fim.
Na crônica “Ficar pra semente?”, eu disse: “E é bom que eu não saiba o dia, nem a hora, porque não teria a sabedoria e a aceitação da Clara, de Isabel Allende.”
Por que não sabemos? Há quem saiba? Há quem vislumbre o momento, como a velhinha do Rubem, mas saber, mesmo, ninguém sabe.
Esses dias, reli a notícia dos radares nas estradas, aquela discussão inócua, e pensei: Ainda bem que ninguém sabe o dia da morte. Se soubéssemos, faríamos as maiores loucuras e só nos preocuparia com o bem, quando o momento estivesse chegando. Seríamos como o motorista que corre desenfreadamente na estrada, ultrapassando todos os limites e reduz a velocidade somente quando vê a placa anunciando o radar, ou o aplicativo dá o alerta. Só por medo da multa – o castigo eterno.
E só queremos o céu!

Maria Francisca – fevereiro de 2020.

 1 de dezembro de 2019 

Quando vim para o Espírito Santo, escolhi trabalhar em Linhares, porque estava cansada de trabalhar em capital. Mas muitos espantaram-se. Em Linhares? Lá é perigoso. Matam por qualquer motivo.
E, claro, notícias de assassinato de juízes já tivemos muitas. De ameaças, nem se fala. Tantas… No Espírito Santo, por exemplo, tivemos o caso do Juiz Alexandre Martins, assassinado no meio da rua. Esses dias, um colega de São Leopoldo noticiou o assassinato de um reclamante de 27 (vinte e sete) anos.
Em Linhares, naquela época, então, havia muitos casos de assassinatos. De vez em quando, uma notícia de alguém morto, estatelado num canavial. Crimes impunes, em verdade, insolúveis. Não sei se fato ou boato, ou, como se diria hoje, se eram fake News.
Tão logo cheguei àquela cidade, penso que era praxe naquela região, foram escalados dois policiais para as audiências. Ficava mais tranquila, porque ali, sentia-me protegida, como via que as pessoas também assim o sentiam.
Mas nem tanto. Certa vez, acabei de interrogar uma testemunha e recebi a notícia: fora metralhada no meio da rua. Fiquei um pouco assustada: seria pelo testemunho? Mas não. Tratava-se de “queima de arquivo” de um antigo e rumoroso caso do Estado.
Um dia, comecei uma audiência e vi dois homens sentados no fundo da sala. Perguntei ao servidor se não seriam testemunhas. Se fossem, claro, não poderiam ficar ali, antes de serem ouvidas. Não. Eram, segundo souberam, pistoleiros, filhos do reclamante, empregado de uma fazenda. Mas estavam desarmados, garantiram-me os policiais presentes.
Não aceitas as condições para acordo, a instrução foi realizada, ouvidas partes, testemunhas, como era meu costume, em que pese a defesa pífia apresentada pelo empregador.
Deixei para decidir depois, para não atrasar as demais audiências do dia. Mal cheguei ao gabinete, Sr. Ilson Pessoa, classista dos empregadores (ou meu anjo da guarda naquela cidade) disse-me: Doutora, aquele fazendeiro da audiência de hoje, mandou pedir que a senhora o condene bem depressa. Por quê? Ele está com medo de morrer. Ele foi ameaçado de morte, por aqueles rapazes, filhos do reclamante, presentes à audiência, caso o pai perca a ação. E por que ele não fez o acordo? Não seria mais fácil? Por puro medo. Medo de ser menor o valor que o pai espera receber, respondeu o Sr. Ilson.
Achei esquisito. Pedir para ser condenado, nunca vi. Além disso, ouço é notícia de ameaça ao juiz, se a pessoa perde a ação, mas, naquele caso, era muito mais fácil. Já ia ser condenado mesmo…
Sentenciei em seguida, a decisão foi publicada, o empregador realizou o depósito e o dinheiro foi liberado, tudo no mesmo dia.
Depois dizem que a Justiça é lenta (e é a pura verdade…), mas rapidez como essa, só essa.
O que não faz o medo…

Maria Francisca – julho de 2019.

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 31 de outubro de 2019 

Vestiu-se de coragem e foi
Estava nas nuvens…
Chegou, bateu à porta, tímida.

Uma voz sonora em resposta:
Entre, a porta está aberta,
Pé ante pé, foi entrando.
Ninguém…

Por fim, outra voz: Elza!
Assustou-se: sabe meu nome…

Vim aqui, porque, porque, por…
Oferecer meus serviços.

Sou professora!
E sei fazer bolo, salpicão, carne,
Ah! E bombons finos.
Calma Elza, você já serviu muito.

Sente-se ali e descanse
Chegou o tempo de PAZ.

Sentou-se num cantinho florido.
Pouco a pouco, as estrelas
Acenderam-se, uma a uma.
Elza viu que, no céu,
Nunca é noite.

Maria Francisca  – outubro de 2019




Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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