A NORMOSE E O ESPELHO - Maria Francisca

 18 de setembro de 2020 

Eu leio muito rápido.
Entretanto, há três motivos que fazem lenta minha leitura. O primeiro é quando o livro demanda calma para ser entendido, ou melhor, assimilado. O segundo é quando é enfadonho, mas, mesmo assim, vale a pena a leitura. O terceiro: o livro é muito grande. Reparto em partes e vou lendo pouco a pouco, senão, fico só nele, privando-me dos demais por algum tempo. Assim foi com Gabriel Garcia Marquez, em “Viver para Contar”.
Agora, a minha leitura de “Normose” atende ao primeiro requisito. Preciso ler com vagar, para melhor entender o que dizem os autores Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e Roberto Crema. Belo livro, belos ensinamentos.
E essa leitura levou-me à releitura do conto “Espelho” de Machado de Assis.
Ouço, de vez em quando, colegas aposentados reclamarem que estão invisíveis, ou seja, não são mais convidados para festas, não recebem telefonemas dos colegas em atividade, de outras pessoas etc.
Já escrevi sobre o palco iluminado (A luz, a ponte e o palco, do livro “Caminhos”) onde estamos inseridos por algum tempo, dá-nos visibilidade e no faz parecer maiores. As pessoas veem-nos apenas quando estamos no palco. Isso ocorre, mesmo, e não temos como nos livrar disso. Às vezes, até gostamos.
Nesta semana, li uma reportagem sobre um Juiz que concedeu habeas corpus a um jovem que estava preso. Esse caso deu o que falar, conforme registra a notícia. Um dos motivos, ambos negros, segundo se disse. O Juiz falou (UOL de 13.09.2020) que ainda era discriminado. Quando estava na rua, sem a pompa do cargo, era apenas um negro. Ele sentia isso. Com a toga, ele era o juiz e livrava-se da discriminação. Sim, há discriminação. Não temos dúvida.
Pior é quando nós mesmos só nos vemos quando estamos investidos de algo que consideramos importante.
Jacobina, personagem de Machado de Assis (O Espelho), disse que o homem tem duas almas. Uma, exterior, e uma interior. A exterior pode até mudar com o tempo, e costuma obliterar a interior, se se tornar muito forte. Ele conta a sua própria história de quando se tornou Alferes. Só se via como Alferes. Todos o tratavam com tanta distinção, que começou s sentir-se “O Alferes”. E nem se via mais como antes, um ser humano comum. Alguns fatos ocorreram na família, entretanto, e ele ficou sozinho, solitário, mesmo, durante muito tempo. Sem usar a farda e sem nenhum rapapé, sua imagem no espelho desaparecera de tal sorte, que virou apenas uma sombra. Horrorizado com o fato, ia e vinha em frente ao espelho e só sombras. Até que resolveu vestir a farda e olhar-se novamente no espelho. Aí, sim, era, de novo, o Alferes.
A moral dessa história assemelha-se ao versículo do Evangelho de Mateus (6:21) que diz: “Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração”.
Esse apego ao cargo e ao poder, segundo Pierre Weil, é sintoma de normose. É sentimento de superioridade de si mesmo em relação aos demais à sua volta. Daí nascem o orgulho e a vaidade.
Se nós mesmos nos vemos apenas como juízes, se não desvestimos a toga quando estamos em casa, na rua, como disse o juiz da notícia, estaremos sempre querendo ser tratados como juiz, esquecendo-nos da nossa condição de pessoas. Não podemos deixar o cargo obliterar a pessoa comum que há em nós. Senão, quando estivermos aposentados, seremos como Jacobina, nosso espelho só terá sombras, e não nos veremos mais.
É claro que juízes são tratados de forma reverente. A reverência é do cargo. Mas o cargo não sou eu. Estou no cargo. Passageiro no cargo, como passageiro na vida.
Por isso, é importante separarmos o amigo do cargo, do amigo de verdade. Plutarco já disse que é preciso distinguir o amigo do bajulador.
Fiz uma brincadeira com o Alferes. Resolvi vestir a toga que tenho guardada de lembrança e ir ao espelho.
Que nada… Estava lá eu, euzinha…

Maria Francisca – setembro de 2020.

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12 comentários


  1. Vera lucia de sousa marchezini
    20 de setembro de 2020 às 20:42

    Maravilhosa! Amo suas crônica. Bjus

  2. Você é linda, foi o que disse o espelho. Lutou contra si, o único inimigo que não somos capazes de derrotar. Resultado: Passou no seu próprio teste.

    • Não sei se ele disse que sou linda, não… Ele só disse que sou eu…Rsrs. Mas nuna coisa você tem razão: temos que lutar contra nós mesmos todos os dias. Grata pela leitura e comentário, meu amigo João Roberto.
      Grande abraço.

  3. Grato por mais essa excelente reflexão sobre a vida

  4. Bom dia, Francisca. Excelente crônica.O espelho sempre nos assusta ainda mais de máscara. Parabéns! Bom dia sem Pandemia!

  5. Belo texto: enxuto, claro objetivo, emocionante. As palavras possuem vida própria. São vibrantes e contidas ao mesmo tempo. Sempre considerei Dra. Maria Francisca umas das melhores magistradas que conheci. E disso não fazia segredo. Proclamava para que ela servisse de modelo. Agora encontro a cronista, a escritora.Ambas me fazem bem. Não gostaria que este texto terminasse.Minha permanente admiração.❤

    • Dr.Wilson, peço-lhe desculpas. Só hoje vi que seu gentil comentário não tem o registro da minha resposta. Não sei o que aconteceu. Eu até fiquei emocionada com sua belas palavras. Gratíssima pela gentileza e saiba que sempre lhe tive grande respeito, como pessoa e como advogado.
      Grande e fraterno abraço.

  6. Bem reflexivo…faz pensarmos nos verdadeiros valores que precisamos destacar em nossas vidas!!!
    abraçoscarinhosos meus.

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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