Maria Francisca - Blog da Maria Francisca Lacerda, escritora e poeta. - page 7

 8 de maio de 2021 

 

Numa cidade no fim do mundo, imagino do tipo de Sucupira, da novela de Dias Gomes, vivia Jonas, um político falastrão.

Falava tanta bobagem que era motivo de brincadeiras. Se fosse hoje, surgiriam as charges, memes etc. Contador de vantagem, sabia tudo, dizia palavrão, falava mal das pessoas. Depois de um tempo, não era mais levado a sério.

Ora, Jonas é um bobo! Um papudo!

Mesmo assim, ele, adorado por muitos, continuava com suas “habilidades”. Parafraseando Umberto Eco (Número Zero), no seu gênero, ele era um gênio.

Pois bem. Naquela cidade, no alto de um morro, havia uma enorme gameleira de cerca de 20 metros de altura, centenária. Suas raízes eram tão grandes que formavam uma espécie de caverna entre elas. Segundo o folclore, gameleira sempre foi lugar de esconderijo de malfeitores. E, naquela cidade minúscula, todos acreditavam nisso. Ninguém tinha coragem de chegar perto da tal gameleira.

Depois de um tempo, o local passou a ser a morada de diabos. Segundo a crença, muitos diabos que ficavam pelas ruas fustigando as pessoas, à noite, iam descansar ali, nas cavernas das raízes.

O papudo falava que já tinha visto esses diabos e conversava com eles, de vez em quando. Tanto falou que as pessoas começaram a provocá-lo, instigando-o a contar como eram essas criaturas e o que diziam.

Cobraram, cobraram. Ele, acuado, certo dia foi para a montanha e subiu na gameleira. E seus apoiadores foram junto, claro. Eram a sua claque. Mas todos com medo dos diabos, ficaram em silêncio, aguardando no meio do mato.

Jonas ficou ali, esperando. De repente, ouviu barulho de muitos passos, escondeu-se entre as ramagens e ficou quieto, o coração saindo pela boca. Era verdade…pensou. Os capetas estavam ali, dançando… e falavam algo que ele não conseguia identificar. Apurou mais o ouvido e viu que cantavam, num ritmo rápido, como se fosse um rap: oi segunda, oi terça, oi quarta, oi quinta, oi sexta e paz. Repetiam, repetiam muitas vezes, a mesma cantoria.

O papudo, claro, tudo sabia e a vaidade deu-lhe coragem, resolveu consertar o que os diabos estavam dizendo: quando eles disseram oi sexta, antes que falassem paz, ele disse: Oi sábado e Oi domingo também.

Os diabos calaram-se e foram procurar quem havia falado. O papudo, cheio de si, se achando, como dizem os meninos, apareceu todo serelepe e sua claque correu para ver.

O diabo que parecia ser o chefe disse: Ah! Bem que já ouvi falar de você. É o Papudo! Para fazer jus ao seu nome, dou-lhe um presente.

E colou um imenso papo no papudo.

Maria Francisca – maio de 2021. (História recontada por Gê, minha irmã mais nova.)

 

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 28 de março de 2021 

Quem lhe disse isso?

Radio-corredor.

Ouvi essa expressão muitas vezes, significando dizer:  o fato foi ouvido, mas não confirmado. Ou seja:   uma fofoca. Como hoje não temos corredor, temos instagram, facebook, BBB etc. A fofoca virou Fake News. E haja Fake News.

Mas eu tenho, ainda, minha radio-corredor, ou melhor, minha radio-calçadão. Escuto ali cada coisa… Desde receita médica de quem não é médico, até decisões judiciais de quem não é juiz.

Esses dias, dois senhores iam caminhando, e seguiam com o seguinte diálogo, certamente iniciado antes:

­ – Ah! E velho pode morrer?

– Pode!

– Caramba!

–  Os jovens precisam trabalhar. Os velhos podem ficar em casa.

De início, achei engraçada a conversa, pelo tom leve de ambos. Percebi, depois, que falavam sobre a vacinação.  Mas eles foram para outro lado e perdi o restante do papo.

Lembrei-me de Albert Camus e seu livro “A peste”, escrito em 1947. Uma epidemia assola uma cidade, como a ocupação nazista assolara a França. A Cidade fechada, pessoas solidárias ajudavam, outras burlavam as leis, contrabandeavam bebidas e outros bens, enriqueciam à custa dos altos preços, pagavam propinas para fugir e assim a vida seguia, com sofrimentos e lágrimas.

Comecei a meditar sobre nosso tempo, as vacinas e os idosos, como escutava há pouco.  Sim, a vacina poderia ser aplicada em quem precisa trabalhar, não pode ficar em recolhimento. Seria uma questão apenas política? Distraí-me, meditando sobre aquilo, mas, vendo tanta gente sem máscara no calçadão, não pensando nos outros, como na obra de Camus, resolvi ir pela calçada do lado oposto. Afe! Tive que dar meia volta. Um senhor estava urinando num poste logo à frente.

Segui a caminhada e eis que, chegando na passarela de Itapoã, na colônia de pescadores, três senhores discutiam. Fiquei em dúvida: passo ou não passo? De repente, dois jovens saíram correndo.

Radio-calçadão? Antes fosse. Dois rapazes assaltaram um senhor,  pularam aquela cerca da passarela, na maior desenvoltura, atravessaram a avenida movimentada e fugiram pela rua lateral para o início da avenida Hugo Musso.

O homem, embasbacado, olhava para todos os lados…Polícia…Nenhum policial, dizia desconsolado.

Desanimei e retornei para casa, mais pensativa, ainda. Não chegam as doenças, a pandemia, a falta de leitos em UTI, a falta de vacinas, o roubo de vacinas, a pobreza, a fome… Não se pode mais nem caminhar no calçadão impunemente. Será que “Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela”, como no título do romance distópico de Ignácio de Loyola Brandão?

Vou fazer as minhas orações…

 

Maria Francisca – março de 2021.

 

 

 6 de março de 2021 

Manoel de Barros escreveu um livro que chamou “Livro sobre nada” e, na apresentação, disse que Flaubert queria escrever um livro sobre o nada metafísico, “mas o nada do meu livro é nada mesmo (…) um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo etc.”, disse.

Só de escrever assim, já se vê que não é um livro sobre nada. Ele apenas brinca com as palavras, dando-lhes conotação própria.

Já Sartre escreveu seu famoso livro “O ser e o nada” que causou muita polêmica, espanto e admiração na época, por ter contestado algumas verdades consolidadas. E, afinal, é um livro denso.

Falando bem, o “nada” de ambos é tudo.

O que é “nada”?  Segundo Houaiss, o que não existe, não-existência, o vazio, coisa nula, sem valor, bagatela, ninharia, inutilidade, categoria filosófica que representa o não-ser, a ausência de existência. Continuando a ler, há uma coluna inteira para dizer sobre a palavra “nada”. Palavra importante, então.

E não ser nada? Já que a palavra ganha tanto destaque…

De vez em quando me pego pensando que sou um nada.  Quando sou invisível. Ou quando me fazem de invisível. Fingem que não me veem.  A minha roupa, a minha bolsa e meu sapato mostram quem sou. Se não forem da moda ou de marcas famosas, sou um nada.

Imagine um gari. Passa o dia por ali, varrendo, limpando… Faz um serviço útil, utilíssimo, mas nós não lhe damos o devido valor. Para muitos, gari é nada: insignificante.  Porque nossa sociedade vê importância em ter, consumir. Mostrar-se. Aparecer, mesmo que seja de total inutilidade, um nada, esse “aparecer”.

Por outro lado, “A utilidade do inútil”, livro de Nuccio Ordine, vem mostrar-nos que o nada, o inútil, muitas vezes, “É necessário para expressar com sua própria existência um valor alternativo à supremacia das leis do mercado e do lucro.” Dessa forma, escrever um poema, por exemplo, seria inútil e, portanto, nada.

As vogais existem. As consoantes só existem em função das vogais. Sem vogais, portanto, as consoantes não teriam som, diz Ordine.

Então, pergunto, as consoantes são um nada?  São inúteis?  Ninharia? Coisa nula?

E se as vogais não tivessem a consoante? Que palavras formariam? Nada?

Essa história sobre “nada” só mostra que precisamos uns dos outros. Sem o outro não sou nada. Quando “há lacuna de gente”, no dizer de Manoel de Barros, a vida fica triste.

Por fim, de tanto pensar sobre “nada”, não sei mais NADA.

 

Maria Francisca – 02.08.2020

 7 de fevereiro de 2021 

Esses dias, assistimos na tv, recebemos inúmeros vídeos de whatsapp, e lemos nos jornais a notícia da bala que caiu aos pés de um padre, durante a celebração de uma missa transmitida ao vivo, em Maruípe (Vitória).

O Padre, tranquilamente, abaixou-se, recolheu a bala, entregou-a ao coordenador da comunidade, e continuou a celebração.

Segundo consta nos meios de comunicação, a região é prejudicada pelo tráfico. Tiroteios são ali comuns e os moradores já estão cansados dessa história macabra.  Mas o Padre, com uma tranquilidade invejável, apanha a bala e continua a missa. Era o que lhe cabia, naquele momento.

A pedra no caminho de Drummond todos conhecemos.  Deveu-se a um sofrimento por que passou. E saiu um poema, criticado, declamado, e estudado. Analisado até hoje, por especialistas.

Todos nós temos ou já tivemos pedras no nosso caminho.

A bala na hora da missa era real, infelizmente, como tantas que já ceifaram muitas vidas. Uma pedra imensa, sem dúvida, na vida das pessoas que moram ali ou transitam por aquelas ruas. Ainda bem que, dessa vez, a “pedra” perdida que o padre recebeu aos pés não machucou ninguém, e está entregue às autoridades.

Outras pedras, reais, chamaram nossa atenção, recentemente.  Trata-se daquelas que foram colocadas debaixo de dois viadutos em São Paulo, para impedir a ocupação do espaço por pessoas em situação de rua.

Todos nós sabemos que a pandemia tirou muitos empregos, a droga está cada vez mais alastrada, e moradores de rua só aumentam, em todos os lugares.  Vimos, semana passada, vereador de Vila Velha tentando levar alguns para abrigos, fazendo bastante propaganda, como é de praxe entre os políticos.  Pelo menos, fazia algo de bom.

Pois bem, imaginemos São Paulo e voltemos às pedras de lá.

Segundo Claudia Costin, na “Folha” de hoje, pedras debaixo desses viadutos, impediriam o confronto dos tecnocratas com cenas tristes de pessoas sofrendo nas ruas, “morando” debaixo de pontes, viadutos, mesmo sabendo que essa atitude prejudicaria quem já perdeu tudo.

Entra mais um padre na história. Desta vez foi o conhecido Padre Júlio Lancellotti, Coordenador da Pastoral do Povo de Rua.

Vendo aquela triste realidade, duplicada com a pandemia, segundo a própria Claudia Costin, e as pedras no caminho daquele povo, não se fez de rogado: “Com uma marreta na mão, começou a derrubar as pedras fincadas debaixo do viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida. A prefeitura posteriormente retirou as outras.” E o viaduto ficou livre para voltar a ser morada.

Padre doido… Já foi preso algumas vezes, perseguido, caluniado…Diríamos. Doido, sim, mas consciente de que não pode ficar de braços cruzados diante de tanta tristeza.  Ele tirou as pedras da vida dessas pessoas, como vem tirando outras pedras que impedem outras pessoas de seguir seu caminho, ao longo do tempo. Arranja muitas pedras e pedradas para si, mas resiste.

E nós, de braços cruzados. Vemos pedras perdidas, pedras com rumo certo, e ficamos banzando. Escondemo-nos. Acostumamo-nos com essa realidade horrível. Somos frágeis demais. Eles, os moradores de rua, são as pedras em nosso caminho, pensamos.

Quem dera eu tivesse a metade da coragem que tem o doido do Padre Julio Lancellotti.

Maria Francisca – fevereiro de 2021.

 13 de janeiro de 2021 

Tenho lido e ouvido sobre uma polêmica que se instalou após o aplicativo Whatsapp avisar aos usuários que passará, a partir de 08 de fevereiro de 2021, a compartilhar seus dados com o Facebook. Muitos já migraram para outros aplicativos. Mesmo porque na mensagem citada não há oportunidade de escolha. Se concordar, tudo bem. Se não, rua…Procure seu rumo.

Em verdade, acredito que eu até já tenha concordado com essa exigência, sem prestar atenção, porque, se todos estão recebendo essa tal mensagem e eu não estou, o que posso deduzir? Ou eles já estão com meus dados todos lá bonitinhos, distribuindo aqui e acolá ou não me querem com eles.

É interessante essa discussão, mas nós já não estamos na boca do “grande irmão”, a mídia?  Nós não recebemos diariamente propaganda de livros, revistas e outras coisas, simplesmente pelo fato de termos pesquisado na internet alguns desses itens? Basta abrir um site qualquer e “pulam” inúmeras propagandas à nossa frente.

Eles já não controlam sua cabeça, para saber o que pensa?  Estamos no FB, no Google, no Curriculum Lattes, nas associações de classe. Nos “Jus Brasil” da vida, quem participou de alguma forma de um processo, seja como parte, advogado ou juiz lá está, para quem quiser ver. Até o inofensivo PicPay não é tão inofensivo, se você não tiver cuidado de “esconder” os pagamentos que fizer.

Uns querem vender, outros querem saber a sua linha política, outros, para pesquisa seja lá de que for… Então, já estamos “fritos” faz tempo.

Ruy Castro, numa crônica no Uol, há exatamente um ano, comentou sobre a mídia, as redes, a influência delas sobre as religiões, a política etc:

“Mesmo as suas postagens mais bobas, como a foto do cheeseburguer que você está a ponto de comer no quiosque, contêm informação a ser processada e usada para fins outros. E que fins são esses? Sociais, econômicos, comerciais, estratégicos, políticos, até eleitorais.

Por meio delas, sabe-se quem é mais suscetível a mensagens liberais ou nacionalistas, de esquerda ou de direita ou a favor da Terra redonda ou chata, e manipulá-las de acordo. Você próprio já deve ter recebido mensagens que dizem exatamente o que você “queria dizer” e só não sabia como.”

Por fim, disse que estaria imune a isso, porque não tinha aplicativos, tampouco celular, e comentou com um amigo. “Ele perguntou se eu consultava o Google. Respondi que sim. E ele: “Então, bem-vindo ao clube”.”

Óbvio que não gostamos que ninguém  “tome conta” de nós, mas a internet e as ditas redes sociais fazem-nos grandes favores, como já disse noutra crônica. Ajuda-nos a encontrar algum amigo há muito perdido no mundo, na pandemia foi uma ajuda memorável, para contatos com as pessoas, para os encontros virtuais, para as compras, para as lives…

E já que o mundo gira e não podemos ficar inertes, aliás, ninguém fica livre de expor-se, mesmo se o quiser (a menos que more numa caverna, longe da civilização), vamos, então, tentar descobrir um meio de expor-nos menos.

Enquanto isso, fique quietinho no seu canto e nem uma pesquisa no google tente fazer, porque, senão, vale repetir o que disse Ruy Castro:

Bem-vindo à exposição!

Maria Francisca – janeiro de 2021.

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 10 de janeiro de 2021 

 

 

Nesse início de ano, minha Dama da noite resolveu presentear-me. Brotaram 8 botões, mas foram desabrochando pouco a pouco, talvez para que o presente durasse mais, pensando que eu seria como crianças, que roem aqui e acolá um doce muito gostoso para perdurar o prazer. Mas ontem, saíram do sério e, para minha alegria, desabrocharam 4 flores de uma vez.

Triste é a efemeridade dessas lindas criaturas. Duram uma noite. Estão lá, murchas, penduradas, tristes. Vão ficando assim, até caírem de vez.

Vejo-as belas e, de repente, vejo-as feias, caídas.

Assim somos nós. Jovens, exuberantes, depois velhos, murchos, até a extinção total. Somos efêmeros, finitos.

Não há, pois, como não pensar na vida, principalmente com tanta doença e, agora, com essa peste que assolou o mundo. Penso que nunca se falou em velhice, doença, morte, como agora. A imprensa não para com reportagens, faladas, escritas, virtuais ou não, noite e dia, inclusive com o número diário de mortes nos estados, uma novidade desses tempos esquisitos e tristes.

Quando alguém anuncia o falecimento de um familiar ou amigo, a primeira pergunta: qual a idade? 80 anos: Ah! Se menos de sessenta: Nossa! Tão novo!

E sai mensagem de todos os lados. A competição tomou conta das vidas. Muitos ditam procedimento e sabem tudo e, pelo visto, ninguém sabe nada.  E cada um faz do seu jeito e sente-se no direito de dar receitas. Sem falar nos tais “influenciadores”.  E, agora, com a discussão sobre as vacinas? Vai tomar? Eu vou, eu não vou, e por aí segue…

Como diria Brás Cubas, de Machado de Assis, a sandice tomou conta, criou amor às casas alheias e ri da razão, como se soubesse o mistério da vida e da morte. Seria necessário que a razão lhe tomasse a casa à força, expulsando-a porta afora, mas a razão está dormente, uma pena.

Ou, então, nas palavras de Xavier De Maistre (em “Viagem ao redor do meu quarto”), o homem, esse ser composto de corpo e alma, não deve voltar-se contra o corpo (que não sente, nem pensa), mas contra o animal que o habita, um “ser sensível, perfeitamente distinto da alma, verdadeiro indivíduo que tem existência à parte, tem gostos, inclinações, vontade e que só está acima dos outros animais porque foi mais adestrado”.

Tanto a obediência ao animal (de Maistre), quanto à sandice (de Cubas de Machado de Assis) podem conduzir o homem a catástrofes.

Importante que a razão vença a sandice e a alma (leve) vença o animal, para que tenhamos sempre vida, mesmo efêmera, cheia de mistérios insondáveis e, talvez, por isso, tão bela e importante para nós.

Se o céu começa aqui na terra, cabe a nós tornar esse tempo melhor, inundado de amor e ternura…Auxiliados pelas flores, por que não? Como disse Castro Alves,

“Deus ao mundo deu a guerra,
A doença, a morte, as dores;
mas, para alegrar a terra,
Basta haver-lhe dado as flores.”

 

Maria Francisca, janeiro de2021.

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 10 de dezembro de 2020 

Uma noite dessas, sonhei que era professora de uma turma enorme de criancinhas. Lembrei-me, então, da minha juventude, início de carreira, quando era professora do “Infantil” e das historinhas repetidas a mais não poder, a pedido das crianças. E, se eu errava de propósito, em uníssono, gritavam: Não é assim!

Uma das preferidas, era de um desenho de uma boneca chamada Pituchinha.  Pompom, sua parceira, perguntava: Você tem medo do escuro, Pituchinha? Não! Eu tenho medo da espada do soldado!

Logo depois, umas iam perguntando às outras, se tinham medo. Cada criança contava sobre um medo. Imaginem um debate com crianças de 4 a 5 anos de idade… E todas queria falar ao mesmo tempo.  Tivemos que estabelecer um mediador em cada historinha.

Bem. Isso faz tanto tempo… Mas fez-me meditar sobre nossos medos.

Era domingo. Aproveitei a manhã ensolarada e saí para caminhar. Segui pelas ruas vazias, desertas, até o convento da Penha.  Comecei a ficar com medo daquela rua sem ninguém.  Que será? Que silêncio é esse?  O perigo mora em qualquer esquina, sabemos disso. Então, se algo acontecer, quem me socorrerá? Seria esse o medo da solidão?  Ou de ladrão? Nos jornais, e mesmo a olho nu, vemos assaltos para todos os lados. Seria a confirmação da distopia? De vivermos fechados nos prédios, com medo da violência?

O pior é que não fui para o calçadão, devido à quantidade de pessoas circulando por ali, sem qualquer cuidado. Formando “bolinhos” na calçada, sem máscaras, ou seja, o medo fez-me optar por outro espaço. Medo de gente? Medo de doença? Medo de contágio da terrível covid que tem matado centenas, velhos e novos?

Deixei a emoção e busquei a razão: não caminho na beira da praia com medo da covid. Não caminho na rua, ora com medo da solidão, ora com medo de gente (assalto).  Então, vou ficar encerrada em minha própria masmorra?

Por incrível que pareça (há sempre uma coincidência?), recebi de uma vizinha um livreto do Pastor Hernandes Dias Lopes sob o título: “Natal: a vitória sobre o medo”. Trata dos nossos diversos possíveis medos, dentre eles, o da COVID-19 e da violência.

Sobre a violência, ele diz: “A violência está nas ruas, nos corredores do poder e dentro das famílias. (…) Há violência do forte sobre o fraco, do rico sobre o pobre, dos governantes sobre os governados. (…)Muitos têm medo da violência. Medo de sequestro, medo de bala perdida. Há violência física e violência verbal. Muitas pessoas são massacradas com palavras que ferem mais do que espada.”

Quanto ao medo da Covi-19, diz o Escritor: “Um pequeno vírus parou o mundo. (…) Precisamos de prevenção e cautela. A nossa fé não nos imuniza. (…) Aprendemos, de igual forma, que ricos e pobres estão sob os mesmos riscos. Nenhum palácio pode proteger os poderosos.”

Aqui, faço a minha reflexão. Apesar de pobres e ricos estarem vulneráveis, os pobres, sempre, estão muito mais. Pelo trabalho, pelas necessidades, pelo tipo de moradia etc.  E, além disso, o acesso ao tratamento não é igualitário.

Então, como vencer o medo? Vamos aos conselhos do Digno Pastor. “Precisamos administrar os temores que assaltam nosso coração. (…) O medo atormenta e oprime. Tira nossos olhos de Deus para colocá-los nas circunstâncias. O medo apequena a fé, enfraquece o amor e escurece a esperança. (…)”.

A confiança em Deus ajuda-nos, pois, a vencer o medo, a enfrentar os perigos, as adversidades, a doença, a velhice e tudo que nos ronda, tira-nos o sossego, e nos afasta da espiritualidade. “Porque Deus não nos tem dado espírito de covardia, mas de poder, de amor, e de moderação” (2 Timóteo, 1.7).

Vamos, pois, ter cautela, obedecer à orientação da ciência,  cuidar de nós, respeitar e cuidar do outro, e permanecer na fé.

Por fim, pensemos num Natal abençoado, amoroso, compassivo, e, como consta do livreto: Que tenhamos um Natal com a vitória sobre o medo.

E que 2021 venha com mais esperança e alegria.

Maia Francisca – dezembro de 2020.

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 23 de novembro de 2020 

O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplice entre os próprios oprimidos. (Simone de Beauvoir)

Reabri “Um Mundo Feliz” de Aldous Haxley e deparei-me com esta análise na introdução, na pena de Rafael Riva, em tradução livre: “Haxley descreve-nos o caminho que vamos percorrendo neste mundo de consumismo voraz. Transitamos numa ditadura com aparência democrática, com um cárcere sem muros, de onde ninguém pensa em fugir, condicionados que estão e até agradecidos com a situação de servos. Tudo graças a um sistema generalizado de consumo”.
O livro foi escrito em 1932. Há 87 anos, pois. Vidente? Muito do que ele escreveu, acontece hoje. Os livros do Haxley são assim, como 1984 de Orwell.
Efetivamente, vivemos numa escravidão. O consumismo escraviza-nos e nem sentimos. Estamos bem. A mídia, os produtos maravilhosos anunciados, a última geração de celular…E, assim, vamos nos afastando uns dos outros, com medo do “olho no olho”, isolando-nos em nosso mundinho de whatsapp, instagram, twitter etc. E tome depressão.
Orwell (in 1984) fala do controle pelo grande irmão que tudo vê, impondo sua moral. O Big Brother, programa de tv, ao contrário do grande irmão do Orwell, prega o liberalismo pessoal, mostra tudo e todos que ali estão se expondo para os telespectadores, por dinheiro, escravizante, da mesma forma, como bem salienta Veríssimo, na crônica ‘O Grande Irmão”. “A câmera indiscreta a serviço da ideia obsessiva de organização social, deu lugar a uma obsessão maior, a vontade universal de saber o que se passa na casa do vizinho”, diz Veríssimo.
A ideia da câmera bisbilhoteira pegou e virou ditadura, da mesma forma. A bisbilhotice passou a ser normal e as conversas cara a cara ficaram de fora.
Temos, então, diversos cárceres modernos, em que nos enfiamos por querer, sem querer, levados pela mídia, pelo consumo, pelo modismo.
Frei Betto (no lançamento do livro; “A felicidade foi-se embora?”) disse que a televisão optou pelo entretenimento. E para obter ganho, a publicidade, feita exatamente para manipular-nos e excitar nossos desejos. Quem não consegue obter um bem que ali está anunciado, sente-se humilhado, “na janela da mídia, como quem folheia uma revista de variedade, para admirar famosos e ricos… No dizer de Fernando Sabino, como quem masca chicletes. Acaba o sabor, mas ficamos ali, mascando, mascando.
Em algumas famílias, quando cada um não está no celular, está à frente da tv, do computador, até no horário das refeições.
Uma amiga disse-me, outro dia, que eu estava sumida. Eu disse: Vi você na academia de ginástica. Não quis abordá-la porque você usava repelente. Ela assustou-se: repelente? Sim, repelente de gente: celular e fone de ouvido.
Em qualquer ambiente, seja restaurante, consultório médico, aeroportos, lanchonetes, as pessoas não se falam mais. Ficam ali, firmes no celular, digitando, bisbilhotando, lendo ou sei lá o quê.
Há algum tempo, você poderia até fazer amigos nesses lugares. Hoje, esqueça! Todos ocupados com suas redes sociais (nem tão sociais assim). Ou seja, estão usando repelente. De gente.
Se chegamos e puxamos conversa, uma conversa boba do tipo “calor, não?”. A pessoa responde automaticamente: é. Sem sequer olhar quem falou. Pode até estar fazendo um frio danado.
No calçadão, não ouvem o cumprimento, concentrados que estão no repelente. Uns até nos esbarram. Alguns, de bicicleta, na ciclovia, com criança na cadeirinha, olhando celular. Nem veem o perigo que correm.
Como disse Wilhelm Reich ao “Zé Ninguém (1948)”: Eu gostaria apenas que fosses tu próprio, em vez de jornal que lês ou da balofa opinião do vizinho”.
Vivemos, ou não, numa escravidão consentida?
Maria Francisca – outubro de 2020.

 27 de outubro de 2020 

Acordei cedo. Raios do novo dia inundavam o quarto.
Na varanda, surpresa agradável: o pé de Bouganville, que chamo carinhosamente de buganvília, uma semana antes totalmente desfolhado, murcho e triste, agora carregado de flores. Fiquei ali um tempão admirando os lindos brotos, e bendizendo a natureza.
Daí a pouco, abri meu celular e encontrei um link enviado por um amigo.
Obra da tecnologia que, de vez em quando, xingo de Procusto, ou “Grande Inquisidor”, por me escravizar, e eu cada vez mais ligada a ela, ou mais escrava, trata-se de uma biblioteca virtual. Basta clicar no link para baixar gibis e livros. E, doente por livros, lá fui eu olhar.
Coincidência ou não, o primeiro era “Leilão de jardim”, de Cecília Meireles.
“Quem me compra um jardim com flores, borboletas de muitas cores, lavadeiras e passarinhos, ovos verdes e azuis nos ninhos, quem me compra este caracol? Quem me compra um raio de sol? Um lagarto entre o muro e a hera, uma estátua de primavera? Quem me compra este formigueiro? E este sapo que é jardineiro? E a cigarra e sua canção? E o grilinho dentro do chão? Este é o meu leilão”.
Eu não tenho um jardim assim. Não tem sapo, grilinho… tem raio de sol.
No meu jardim, vicejam plantas e mais plantas, orquídeas comuns, orquídeas de bambu, jasmins, antúrios, damas da noite… E todas resolveram florir.
A dama da noite é maravilhosa, mas dura apenas uma noite, como o nome diz. A flor brota na folha da planta. Eu, ali, em vigília, todas as noites, para assistir ao seu desabrochar, demorado… Depois, fico por perto, tirando fotos, guardando a lembrança… Sim, dia seguinte, murcha, pendurada, como se estivesse cansada da beleza da noite, e do meu assédio.
No meu jardim, tem aves e sua cantoria. Pena: As aves pousam e fazem sua apresentação, às vezes solo, às vezes em bando, só na tela de proteção. Não conseguem entrar para termos os ninhos, os ovinhos, contemplarmos a renovação dessa vida.
Sim. Renovação da vida. A Primavera. Por isso, o florescer da buganvília, símbolo dessa bela estação do ano.
Saímos do inverno, este ano mais triste, com a pandemia, e entramos nessa fase de clima ameno, sol que aquece os corações, sem tisnar a mente, e tudo se renova.
Até o mar parece mais calmo e mais azul.
Que venham o sol, as flores, a paz na alma e que a vida se renove sempre.

Maria Francisca – outubro de 2020.

 12 de outubro de 2020 

Passarinhos inocentes,
Em bando, mal nasce o dia,
Dançam, cantam, alvoroçados
Na algaravia articulados.

Findo trinado, alçam voo
Ora grupo, ora solo,
De vento em vento,
Vêm e vão, a todo tempo.

Eu, passarinho inocente,
Cantava em bandos, em brados.
Poesia à espera de mim
Exalava nos sonhos, sonhados.

Hoje, pensante, aqui pasma.
Num canto, sozinha, nas redes,
Nas roças, nos cantos, quieta…
Procuro, em vão, da poesia,
A receita.

Que a roubou de mim?
Os sonhos escureceram
Sobram arrulhos, orgulhos
E, da rua, bandos em brados.

Quando o sol chegar…
Ah! Quando o sol chegar!

Maria Francisca – outubro de 2020




Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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