Esses dias, assistimos na tv, recebemos inúmeros vídeos de whatsapp, e lemos nos jornais a notícia da bala que caiu aos pés de um padre, durante a celebração de uma missa transmitida ao vivo, em Maruípe (Vitória).
O Padre, tranquilamente, abaixou-se, recolheu a bala, entregou-a ao coordenador da comunidade, e continuou a celebração.
Segundo consta nos meios de comunicação, a região é prejudicada pelo tráfico. Tiroteios são ali comuns e os moradores já estão cansados dessa história macabra. Mas o Padre, com uma tranquilidade invejável, apanha a bala e continua a missa. Era o que lhe cabia, naquele momento.
A pedra no caminho de Drummond todos conhecemos. Deveu-se a um sofrimento por que passou. E saiu um poema, criticado, declamado, e estudado. Analisado até hoje, por especialistas.
Todos nós temos ou já tivemos pedras no nosso caminho.
A bala na hora da missa era real, infelizmente, como tantas que já ceifaram muitas vidas. Uma pedra imensa, sem dúvida, na vida das pessoas que moram ali ou transitam por aquelas ruas. Ainda bem que, dessa vez, a “pedra” perdida que o padre recebeu aos pés não machucou ninguém, e está entregue às autoridades.
Outras pedras, reais, chamaram nossa atenção, recentemente. Trata-se daquelas que foram colocadas debaixo de dois viadutos em São Paulo, para impedir a ocupação do espaço por pessoas em situação de rua.
Todos nós sabemos que a pandemia tirou muitos empregos, a droga está cada vez mais alastrada, e moradores de rua só aumentam, em todos os lugares. Vimos, semana passada, vereador de Vila Velha tentando levar alguns para abrigos, fazendo bastante propaganda, como é de praxe entre os políticos. Pelo menos, fazia algo de bom.
Pois bem, imaginemos São Paulo e voltemos às pedras de lá.
Segundo Claudia Costin, na “Folha” de hoje, pedras debaixo desses viadutos, impediriam o confronto dos tecnocratas com cenas tristes de pessoas sofrendo nas ruas, “morando” debaixo de pontes, viadutos, mesmo sabendo que essa atitude prejudicaria quem já perdeu tudo.
Entra mais um padre na história. Desta vez foi o conhecido Padre Júlio Lancellotti, Coordenador da Pastoral do Povo de Rua.
Vendo aquela triste realidade, duplicada com a pandemia, segundo a própria Claudia Costin, e as pedras no caminho daquele povo, não se fez de rogado: “Com uma marreta na mão, começou a derrubar as pedras fincadas debaixo do viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida. A prefeitura posteriormente retirou as outras.” E o viaduto ficou livre para voltar a ser morada.
Padre doido… Já foi preso algumas vezes, perseguido, caluniado…Diríamos. Doido, sim, mas consciente de que não pode ficar de braços cruzados diante de tanta tristeza. Ele tirou as pedras da vida dessas pessoas, como vem tirando outras pedras que impedem outras pessoas de seguir seu caminho, ao longo do tempo. Arranja muitas pedras e pedradas para si, mas resiste.
E nós, de braços cruzados. Vemos pedras perdidas, pedras com rumo certo, e ficamos banzando. Escondemo-nos. Acostumamo-nos com essa realidade horrível. Somos frágeis demais. Eles, os moradores de rua, são as pedras em nosso caminho, pensamos.
Quem dera eu tivesse a metade da coragem que tem o doido do Padre Julio Lancellotti.
Maria Francisca – fevereiro de 2021.
Tenho lido e ouvido sobre uma polêmica que se instalou após o aplicativo Whatsapp avisar aos usuários que passará, a partir de 08 de fevereiro de 2021, a compartilhar seus dados com o Facebook. Muitos já migraram para outros aplicativos. Mesmo porque na mensagem citada não há oportunidade de escolha. Se concordar, tudo bem. Se não, rua…Procure seu rumo.
Em verdade, acredito que eu até já tenha concordado com essa exigência, sem prestar atenção, porque, se todos estão recebendo essa tal mensagem e eu não estou, o que posso deduzir? Ou eles já estão com meus dados todos lá bonitinhos, distribuindo aqui e acolá ou não me querem com eles.
É interessante essa discussão, mas nós já não estamos na boca do “grande irmão”, a mídia? Nós não recebemos diariamente propaganda de livros, revistas e outras coisas, simplesmente pelo fato de termos pesquisado na internet alguns desses itens? Basta abrir um site qualquer e “pulam” inúmeras propagandas à nossa frente.
Eles já não controlam sua cabeça, para saber o que pensa? Estamos no FB, no Google, no Curriculum Lattes, nas associações de classe. Nos “Jus Brasil” da vida, quem participou de alguma forma de um processo, seja como parte, advogado ou juiz lá está, para quem quiser ver. Até o inofensivo PicPay não é tão inofensivo, se você não tiver cuidado de “esconder” os pagamentos que fizer.
Uns querem vender, outros querem saber a sua linha política, outros, para pesquisa seja lá de que for… Então, já estamos “fritos” faz tempo.
Ruy Castro, numa crônica no Uol, há exatamente um ano, comentou sobre a mídia, as redes, a influência delas sobre as religiões, a política etc:
“Mesmo as suas postagens mais bobas, como a foto do cheeseburguer que você está a ponto de comer no quiosque, contêm informação a ser processada e usada para fins outros. E que fins são esses? Sociais, econômicos, comerciais, estratégicos, políticos, até eleitorais.
Por meio delas, sabe-se quem é mais suscetível a mensagens liberais ou nacionalistas, de esquerda ou de direita ou a favor da Terra redonda ou chata, e manipulá-las de acordo. Você próprio já deve ter recebido mensagens que dizem exatamente o que você “queria dizer” e só não sabia como.”
Por fim, disse que estaria imune a isso, porque não tinha aplicativos, tampouco celular, e comentou com um amigo. “Ele perguntou se eu consultava o Google. Respondi que sim. E ele: “Então, bem-vindo ao clube”.”
Óbvio que não gostamos que ninguém “tome conta” de nós, mas a internet e as ditas redes sociais fazem-nos grandes favores, como já disse noutra crônica. Ajuda-nos a encontrar algum amigo há muito perdido no mundo, na pandemia foi uma ajuda memorável, para contatos com as pessoas, para os encontros virtuais, para as compras, para as lives…
E já que o mundo gira e não podemos ficar inertes, aliás, ninguém fica livre de expor-se, mesmo se o quiser (a menos que more numa caverna, longe da civilização), vamos, então, tentar descobrir um meio de expor-nos menos.
Enquanto isso, fique quietinho no seu canto e nem uma pesquisa no google tente fazer, porque, senão, vale repetir o que disse Ruy Castro:
Bem-vindo à exposição!
Maria Francisca – janeiro de 2021.
Mariafrancisca.blog.br
Nesse início de ano, minha Dama da noite resolveu presentear-me. Brotaram 8 botões, mas foram desabrochando pouco a pouco, talvez para que o presente durasse mais, pensando que eu seria como crianças, que roem aqui e acolá um doce muito gostoso para perdurar o prazer. Mas ontem, saíram do sério e, para minha alegria, desabrocharam 4 flores de uma vez.
Triste é a efemeridade dessas lindas criaturas. Duram uma noite. Estão lá, murchas, penduradas, tristes. Vão ficando assim, até caírem de vez.
Vejo-as belas e, de repente, vejo-as feias, caídas.
Assim somos nós. Jovens, exuberantes, depois velhos, murchos, até a extinção total. Somos efêmeros, finitos.
Não há, pois, como não pensar na vida, principalmente com tanta doença e, agora, com essa peste que assolou o mundo. Penso que nunca se falou em velhice, doença, morte, como agora. A imprensa não para com reportagens, faladas, escritas, virtuais ou não, noite e dia, inclusive com o número diário de mortes nos estados, uma novidade desses tempos esquisitos e tristes.
Quando alguém anuncia o falecimento de um familiar ou amigo, a primeira pergunta: qual a idade? 80 anos: Ah! Se menos de sessenta: Nossa! Tão novo!
E sai mensagem de todos os lados. A competição tomou conta das vidas. Muitos ditam procedimento e sabem tudo e, pelo visto, ninguém sabe nada. E cada um faz do seu jeito e sente-se no direito de dar receitas. Sem falar nos tais “influenciadores”. E, agora, com a discussão sobre as vacinas? Vai tomar? Eu vou, eu não vou, e por aí segue…
Como diria Brás Cubas, de Machado de Assis, a sandice tomou conta, criou amor às casas alheias e ri da razão, como se soubesse o mistério da vida e da morte. Seria necessário que a razão lhe tomasse a casa à força, expulsando-a porta afora, mas a razão está dormente, uma pena.
Ou, então, nas palavras de Xavier De Maistre (em “Viagem ao redor do meu quarto”), o homem, esse ser composto de corpo e alma, não deve voltar-se contra o corpo (que não sente, nem pensa), mas contra o animal que o habita, um “ser sensível, perfeitamente distinto da alma, verdadeiro indivíduo que tem existência à parte, tem gostos, inclinações, vontade e que só está acima dos outros animais porque foi mais adestrado”.
Tanto a obediência ao animal (de Maistre), quanto à sandice (de Cubas de Machado de Assis) podem conduzir o homem a catástrofes.
Importante que a razão vença a sandice e a alma (leve) vença o animal, para que tenhamos sempre vida, mesmo efêmera, cheia de mistérios insondáveis e, talvez, por isso, tão bela e importante para nós.
Se o céu começa aqui na terra, cabe a nós tornar esse tempo melhor, inundado de amor e ternura…Auxiliados pelas flores, por que não? Como disse Castro Alves,
“Deus ao mundo deu a guerra,
A doença, a morte, as dores;
mas, para alegrar a terra,
Basta haver-lhe dado as flores.”
Maria Francisca, janeiro de2021.
Mariafrancisca.blog.br
Uma noite dessas, sonhei que era professora de uma turma enorme de criancinhas. Lembrei-me, então, da minha juventude, início de carreira, quando era professora do “Infantil” e das historinhas repetidas a mais não poder, a pedido das crianças. E, se eu errava de propósito, em uníssono, gritavam: Não é assim!
Uma das preferidas, era de um desenho de uma boneca chamada Pituchinha. Pompom, sua parceira, perguntava: Você tem medo do escuro, Pituchinha? Não! Eu tenho medo da espada do soldado!
Logo depois, umas iam perguntando às outras, se tinham medo. Cada criança contava sobre um medo. Imaginem um debate com crianças de 4 a 5 anos de idade… E todas queria falar ao mesmo tempo. Tivemos que estabelecer um mediador em cada historinha.
Bem. Isso faz tanto tempo… Mas fez-me meditar sobre nossos medos.
Era domingo. Aproveitei a manhã ensolarada e saí para caminhar. Segui pelas ruas vazias, desertas, até o convento da Penha. Comecei a ficar com medo daquela rua sem ninguém. Que será? Que silêncio é esse? O perigo mora em qualquer esquina, sabemos disso. Então, se algo acontecer, quem me socorrerá? Seria esse o medo da solidão? Ou de ladrão? Nos jornais, e mesmo a olho nu, vemos assaltos para todos os lados. Seria a confirmação da distopia? De vivermos fechados nos prédios, com medo da violência?
O pior é que não fui para o calçadão, devido à quantidade de pessoas circulando por ali, sem qualquer cuidado. Formando “bolinhos” na calçada, sem máscaras, ou seja, o medo fez-me optar por outro espaço. Medo de gente? Medo de doença? Medo de contágio da terrível covid que tem matado centenas, velhos e novos?
Deixei a emoção e busquei a razão: não caminho na beira da praia com medo da covid. Não caminho na rua, ora com medo da solidão, ora com medo de gente (assalto). Então, vou ficar encerrada em minha própria masmorra?
Por incrível que pareça (há sempre uma coincidência?), recebi de uma vizinha um livreto do Pastor Hernandes Dias Lopes sob o título: “Natal: a vitória sobre o medo”. Trata dos nossos diversos possíveis medos, dentre eles, o da COVID-19 e da violência.
Sobre a violência, ele diz: “A violência está nas ruas, nos corredores do poder e dentro das famílias. (…) Há violência do forte sobre o fraco, do rico sobre o pobre, dos governantes sobre os governados. (…)Muitos têm medo da violência. Medo de sequestro, medo de bala perdida. Há violência física e violência verbal. Muitas pessoas são massacradas com palavras que ferem mais do que espada.”
Quanto ao medo da Covi-19, diz o Escritor: “Um pequeno vírus parou o mundo. (…) Precisamos de prevenção e cautela. A nossa fé não nos imuniza. (…) Aprendemos, de igual forma, que ricos e pobres estão sob os mesmos riscos. Nenhum palácio pode proteger os poderosos.”
Aqui, faço a minha reflexão. Apesar de pobres e ricos estarem vulneráveis, os pobres, sempre, estão muito mais. Pelo trabalho, pelas necessidades, pelo tipo de moradia etc. E, além disso, o acesso ao tratamento não é igualitário.
Então, como vencer o medo? Vamos aos conselhos do Digno Pastor. “Precisamos administrar os temores que assaltam nosso coração. (…) O medo atormenta e oprime. Tira nossos olhos de Deus para colocá-los nas circunstâncias. O medo apequena a fé, enfraquece o amor e escurece a esperança. (…)”.
A confiança em Deus ajuda-nos, pois, a vencer o medo, a enfrentar os perigos, as adversidades, a doença, a velhice e tudo que nos ronda, tira-nos o sossego, e nos afasta da espiritualidade. “Porque Deus não nos tem dado espírito de covardia, mas de poder, de amor, e de moderação” (2 Timóteo, 1.7).
Vamos, pois, ter cautela, obedecer à orientação da ciência, cuidar de nós, respeitar e cuidar do outro, e permanecer na fé.
Por fim, pensemos num Natal abençoado, amoroso, compassivo, e, como consta do livreto: Que tenhamos um Natal com a vitória sobre o medo.
E que 2021 venha com mais esperança e alegria.
Maia Francisca – dezembro de 2020.
O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplice entre os próprios oprimidos. (Simone de Beauvoir)
Reabri “Um Mundo Feliz” de Aldous Haxley e deparei-me com esta análise na introdução, na pena de Rafael Riva, em tradução livre: “Haxley descreve-nos o caminho que vamos percorrendo neste mundo de consumismo voraz. Transitamos numa ditadura com aparência democrática, com um cárcere sem muros, de onde ninguém pensa em fugir, condicionados que estão e até agradecidos com a situação de servos. Tudo graças a um sistema generalizado de consumo”.
O livro foi escrito em 1932. Há 87 anos, pois. Vidente? Muito do que ele escreveu, acontece hoje. Os livros do Haxley são assim, como 1984 de Orwell.
Efetivamente, vivemos numa escravidão. O consumismo escraviza-nos e nem sentimos. Estamos bem. A mídia, os produtos maravilhosos anunciados, a última geração de celular…E, assim, vamos nos afastando uns dos outros, com medo do “olho no olho”, isolando-nos em nosso mundinho de whatsapp, instagram, twitter etc. E tome depressão.
Orwell (in 1984) fala do controle pelo grande irmão que tudo vê, impondo sua moral. O Big Brother, programa de tv, ao contrário do grande irmão do Orwell, prega o liberalismo pessoal, mostra tudo e todos que ali estão se expondo para os telespectadores, por dinheiro, escravizante, da mesma forma, como bem salienta Veríssimo, na crônica ‘O Grande Irmão”. “A câmera indiscreta a serviço da ideia obsessiva de organização social, deu lugar a uma obsessão maior, a vontade universal de saber o que se passa na casa do vizinho”, diz Veríssimo.
A ideia da câmera bisbilhoteira pegou e virou ditadura, da mesma forma. A bisbilhotice passou a ser normal e as conversas cara a cara ficaram de fora.
Temos, então, diversos cárceres modernos, em que nos enfiamos por querer, sem querer, levados pela mídia, pelo consumo, pelo modismo.
Frei Betto (no lançamento do livro; “A felicidade foi-se embora?”) disse que a televisão optou pelo entretenimento. E para obter ganho, a publicidade, feita exatamente para manipular-nos e excitar nossos desejos. Quem não consegue obter um bem que ali está anunciado, sente-se humilhado, “na janela da mídia, como quem folheia uma revista de variedade, para admirar famosos e ricos… No dizer de Fernando Sabino, como quem masca chicletes. Acaba o sabor, mas ficamos ali, mascando, mascando.
Em algumas famílias, quando cada um não está no celular, está à frente da tv, do computador, até no horário das refeições.
Uma amiga disse-me, outro dia, que eu estava sumida. Eu disse: Vi você na academia de ginástica. Não quis abordá-la porque você usava repelente. Ela assustou-se: repelente? Sim, repelente de gente: celular e fone de ouvido.
Em qualquer ambiente, seja restaurante, consultório médico, aeroportos, lanchonetes, as pessoas não se falam mais. Ficam ali, firmes no celular, digitando, bisbilhotando, lendo ou sei lá o quê.
Há algum tempo, você poderia até fazer amigos nesses lugares. Hoje, esqueça! Todos ocupados com suas redes sociais (nem tão sociais assim). Ou seja, estão usando repelente. De gente.
Se chegamos e puxamos conversa, uma conversa boba do tipo “calor, não?”. A pessoa responde automaticamente: é. Sem sequer olhar quem falou. Pode até estar fazendo um frio danado.
No calçadão, não ouvem o cumprimento, concentrados que estão no repelente. Uns até nos esbarram. Alguns, de bicicleta, na ciclovia, com criança na cadeirinha, olhando celular. Nem veem o perigo que correm.
Como disse Wilhelm Reich ao “Zé Ninguém (1948)”: Eu gostaria apenas que fosses tu próprio, em vez de jornal que lês ou da balofa opinião do vizinho”.
Vivemos, ou não, numa escravidão consentida?
Maria Francisca – outubro de 2020.
Acordei cedo. Raios do novo dia inundavam o quarto.
Na varanda, surpresa agradável: o pé de Bouganville, que chamo carinhosamente de buganvília, uma semana antes totalmente desfolhado, murcho e triste, agora carregado de flores. Fiquei ali um tempão admirando os lindos brotos, e bendizendo a natureza.
Daí a pouco, abri meu celular e encontrei um link enviado por um amigo.
Obra da tecnologia que, de vez em quando, xingo de Procusto, ou “Grande Inquisidor”, por me escravizar, e eu cada vez mais ligada a ela, ou mais escrava, trata-se de uma biblioteca virtual. Basta clicar no link para baixar gibis e livros. E, doente por livros, lá fui eu olhar.
Coincidência ou não, o primeiro era “Leilão de jardim”, de Cecília Meireles.
“Quem me compra um jardim com flores, borboletas de muitas cores, lavadeiras e passarinhos, ovos verdes e azuis nos ninhos, quem me compra este caracol? Quem me compra um raio de sol? Um lagarto entre o muro e a hera, uma estátua de primavera? Quem me compra este formigueiro? E este sapo que é jardineiro? E a cigarra e sua canção? E o grilinho dentro do chão? Este é o meu leilão”.
Eu não tenho um jardim assim. Não tem sapo, grilinho… tem raio de sol.
No meu jardim, vicejam plantas e mais plantas, orquídeas comuns, orquídeas de bambu, jasmins, antúrios, damas da noite… E todas resolveram florir.
A dama da noite é maravilhosa, mas dura apenas uma noite, como o nome diz. A flor brota na folha da planta. Eu, ali, em vigília, todas as noites, para assistir ao seu desabrochar, demorado… Depois, fico por perto, tirando fotos, guardando a lembrança… Sim, dia seguinte, murcha, pendurada, como se estivesse cansada da beleza da noite, e do meu assédio.
No meu jardim, tem aves e sua cantoria. Pena: As aves pousam e fazem sua apresentação, às vezes solo, às vezes em bando, só na tela de proteção. Não conseguem entrar para termos os ninhos, os ovinhos, contemplarmos a renovação dessa vida.
Sim. Renovação da vida. A Primavera. Por isso, o florescer da buganvília, símbolo dessa bela estação do ano.
Saímos do inverno, este ano mais triste, com a pandemia, e entramos nessa fase de clima ameno, sol que aquece os corações, sem tisnar a mente, e tudo se renova.
Até o mar parece mais calmo e mais azul.
Que venham o sol, as flores, a paz na alma e que a vida se renove sempre.
Maria Francisca – outubro de 2020.
Passarinhos inocentes,
Em bando, mal nasce o dia,
Dançam, cantam, alvoroçados
Na algaravia articulados.
Findo trinado, alçam voo
Ora grupo, ora solo,
De vento em vento,
Vêm e vão, a todo tempo.
Eu, passarinho inocente,
Cantava em bandos, em brados.
Poesia à espera de mim
Exalava nos sonhos, sonhados.
Hoje, pensante, aqui pasma.
Num canto, sozinha, nas redes,
Nas roças, nos cantos, quieta…
Procuro, em vão, da poesia,
A receita.
Que a roubou de mim?
Os sonhos escureceram
Sobram arrulhos, orgulhos
E, da rua, bandos em brados.
Quando o sol chegar…
Ah! Quando o sol chegar!
Maria Francisca – outubro de 2020
Eu leio muito rápido.
Entretanto, há três motivos que fazem lenta minha leitura. O primeiro é quando o livro demanda calma para ser entendido, ou melhor, assimilado. O segundo é quando é enfadonho, mas, mesmo assim, vale a pena a leitura. O terceiro: o livro é muito grande. Reparto em partes e vou lendo pouco a pouco, senão, fico só nele, privando-me dos demais por algum tempo. Assim foi com Gabriel Garcia Marquez, em “Viver para Contar”.
Agora, a minha leitura de “Normose” atende ao primeiro requisito. Preciso ler com vagar, para melhor entender o que dizem os autores Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e Roberto Crema. Belo livro, belos ensinamentos.
E essa leitura levou-me à releitura do conto “Espelho” de Machado de Assis.
Ouço, de vez em quando, colegas aposentados reclamarem que estão invisíveis, ou seja, não são mais convidados para festas, não recebem telefonemas dos colegas em atividade, de outras pessoas etc.
Já escrevi sobre o palco iluminado (A luz, a ponte e o palco, do livro “Caminhos”) onde estamos inseridos por algum tempo, dá-nos visibilidade e no faz parecer maiores. As pessoas veem-nos apenas quando estamos no palco. Isso ocorre, mesmo, e não temos como nos livrar disso. Às vezes, até gostamos.
Nesta semana, li uma reportagem sobre um Juiz que concedeu habeas corpus a um jovem que estava preso. Esse caso deu o que falar, conforme registra a notícia. Um dos motivos, ambos negros, segundo se disse. O Juiz falou (UOL de 13.09.2020) que ainda era discriminado. Quando estava na rua, sem a pompa do cargo, era apenas um negro. Ele sentia isso. Com a toga, ele era o juiz e livrava-se da discriminação. Sim, há discriminação. Não temos dúvida.
Pior é quando nós mesmos só nos vemos quando estamos investidos de algo que consideramos importante.
Jacobina, personagem de Machado de Assis (O Espelho), disse que o homem tem duas almas. Uma, exterior, e uma interior. A exterior pode até mudar com o tempo, e costuma obliterar a interior, se se tornar muito forte. Ele conta a sua própria história de quando se tornou Alferes. Só se via como Alferes. Todos o tratavam com tanta distinção, que começou s sentir-se “O Alferes”. E nem se via mais como antes, um ser humano comum. Alguns fatos ocorreram na família, entretanto, e ele ficou sozinho, solitário, mesmo, durante muito tempo. Sem usar a farda e sem nenhum rapapé, sua imagem no espelho desaparecera de tal sorte, que virou apenas uma sombra. Horrorizado com o fato, ia e vinha em frente ao espelho e só sombras. Até que resolveu vestir a farda e olhar-se novamente no espelho. Aí, sim, era, de novo, o Alferes.
A moral dessa história assemelha-se ao versículo do Evangelho de Mateus (6:21) que diz: “Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração”.
Esse apego ao cargo e ao poder, segundo Pierre Weil, é sintoma de normose. É sentimento de superioridade de si mesmo em relação aos demais à sua volta. Daí nascem o orgulho e a vaidade.
Se nós mesmos nos vemos apenas como juízes, se não desvestimos a toga quando estamos em casa, na rua, como disse o juiz da notícia, estaremos sempre querendo ser tratados como juiz, esquecendo-nos da nossa condição de pessoas. Não podemos deixar o cargo obliterar a pessoa comum que há em nós. Senão, quando estivermos aposentados, seremos como Jacobina, nosso espelho só terá sombras, e não nos veremos mais.
É claro que juízes são tratados de forma reverente. A reverência é do cargo. Mas o cargo não sou eu. Estou no cargo. Passageiro no cargo, como passageiro na vida.
Por isso, é importante separarmos o amigo do cargo, do amigo de verdade. Plutarco já disse que é preciso distinguir o amigo do bajulador.
Fiz uma brincadeira com o Alferes. Resolvi vestir a toga que tenho guardada de lembrança e ir ao espelho.
Que nada… Estava lá eu, euzinha…
Maria Francisca – setembro de 2020.
Esses dias, vi num jornal uma foto de um bonito jovem, com uma legenda mais ou menos assim:
“André (nome fictício) aproveitando o belo sunset na praia”
Fiquei a imaginar o que leva uma pessoa a usar uma palavrinha em inglês para algo que, falando no nosso português, seria muito mais bonito. Falo só por mim, mas acho a expressão “pôr do sol” tão linda que eu jamais iria substitui-la por sunset.
Sei que até as palavras caem de moda. Queima, de um tempo mais distante, passou a liquidação, depois, inglesou, virou off. Farmácia é drugstore, entrega em domicílio é delivery, ao vivo é live e assim, por diante.
Então, resolvi entrar na onda, trazendo o título em inglês.
Brincadeiras à parte, quero, mesmo, é falar de egoísmo. O dicionário Caldas Aulete traz o seguinte: amor-próprio; exclusivismo, solipsismo, filáucia, orgulho.
Solipsismo e filáucia ficarão para outra oportunidade, antes que me perguntem: Filosofia numa hora destas?
Falemos de orgulho, amor-próprio, exclusivismo.
Orgulho é um dos pecados capitais. Entretanto, há orgulho e orgulho. Você pode se sentir orgulhoso, feliz, por algo belo que conseguiu realizar. Você sabe quem você é, tem amor-próprio, autoestima, sem achar-se melhor do que qualquer outra pessoa. Essa atitude jamais poderia ser condenada. E, no meu entender, não pode ser confundida com egoísmo, apesar de constar em dicionário.
Orgulho, pecado, é entender-se melhor do que os outros, é desdenhar das pessoas que o orgulhoso julga menor. Já escrevi um texto que, no linguajar moderno, viralizou – Juizite – foi objeto de publicação de muitas revistas e jornais, neologismo para designar o juiz pedante, ego soberbo, que se vê melhor do que os outros, e consta do meu livro “Caminhos”. Da mesma forma, um senhor que, tentando furar a fila em aeroporto, gritou: Sou diamante, minha filha! É o narcisista.
E já que falamos em inglês, o Oxford Learners’s Dictionary registra selfish em tradução livre, como “preocupando-se apenas consigo mesmo e não com outras pessoas” (caring only about yourself rather than about other people).
O egoísta, mesmo, é o exclusivista, só pensa em si, sem se importar com ninguém mais. Se é exclusivista e pensa só nele próprio, é, também, mesquinho, sovina, avarento.
São pessoas que não conseguem dividir nada. Pão-duro, canguinha, unha de fome, mão de finado, Tio Patinhas – são alguns dos apelidos para os sovinas.
Fica-se pensando o que faria a pessoa ser assim. Por que muitos gastam até o que não têm, outros são generosos, mas prudentes e, outros, ainda não conseguem dividir nada?
Li o seguinte na Revista Super Interessante que “A ciência segue em busca dos motivos para esse comportamento antinatural. O que se pretende saber é se existem áreas do cérebro capazes de desencadear a cobiça e, consequentemente, o desejo de ter mais e mais.”
O biólogo Michael Soulé lembra, no mesmo artigo, que “pelo menos dez diferentes centros no cérebro são ativados quando a pessoa tem impulsos para praticar inveja, orgulho, ódio, gula, preguiça, luxúria e avareza, a maior parte deles localizada no sistema límbico, responsável pelas emoções.”
Mas a avareza, segundo a psicologia, pode ser desencadeada por um medo, nem sempre real. Se a pessoa passou fome quando criança, rico, quer sempre guardar, com medo de lhe faltar comida no futuro. Será?
Mas vejo ricos avarentos, pobres avarentos, e isso pode ir passando de pai para filho. Não de forma genética, mas pelo exemplo, penso.
Claro que precisamos de dinheiro para nossa sobrevivência e ter dinheiro não é pecado. Ter uma poupança para os momentos de aperto é louvável. O pecado é o apego excessivo aos bens materiais, e viver, muitas vezes, de forma precária, com pena de gastar o dinheiro, simplesmente pelo apego. E ajudar algum necessitado? Nada. Isso, sim, é triste.
E há, ainda, aqueles que só querem receber elogios, mas não dão atenção ao que os outros fazem. Hoje, então, com o mundo digital…Muitos só querem like, mas não dão a mínima atenção para o que os outros postam, mesmo amigos. Isso, também, é egoísmo.
“A Humanidade está precisando de colo”. Assim começa uma entrevista do cantor e compositor Renato Teixeira, no caderno 2 da Tribuna de 18.08.2020.
Disse que a solução para resolver o problema do mundo é maternal. Deve-se ter compreensão, afeto e carinho, porque o formato do mundo que conhecemos acabou.
Complemento com meu pensar: quem espera só receber colo, nunca o terá. Pode receber por um tempo, depois…Minha praga? Não! Vivência. Como em para-choque de caminhão: “Os egoístas morrem sozinhos…”
Queremos colo, sim, mas vamos também dar colo, sorriso, a mão, ajuda financeira, quando pudermos, que o mundo ficará melhor.
Maria Francisca – agosto de 2020.
O jornal “A Gazeta”, do Espírito Santo, numa de suas últimas edições impressas, traz uma matéria em que o entrevistado fala de algo “que não vende, não troca nem doa”, pelo apreço que tem por aquele objeto, que, nem sempre, é algo de valor material ou comercial. É uma lembrança, de valor, digamos, espiritual.
Leonardo Boff explica muito bem esse valor, que denominei espiritual. Diz ele (in ‘Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos’): “Toda vez que uma realidade do mundo, sem deixar o mundo, evoca uma outra realidade diferente dela, ela assume uma função sacramental. Deixa de ser coisa, para se tornar um sinal ou um símbolo. Todo sinal é sinal de alguma coisa ou de algum valor para alguém. Como coisa, pode ser absolutamente irrelevante. Como sinal, pode ganhar uma valoração inestimável e preciosa.”
Por isso, quando um filho ou neto faz um desenho para nós, guardamos com um carinho que não se pode medir. Pode ser um desenho tosco, mas feito para nós. Ali não está um desenho apenas, está o amor do filho ou do neto.
É o sinal do amor, do carinho.
Quando ganhamos flores de alguma pessoa especial, sentimos um bem-estar muito grande, porque as flores não são apenas flores, são a amizade, o amor e o carinho da pessoa que nos presenteou. E ficamos com pena quando murcham. Eu, por exemplo, tiro aquelas florezinhas e guardo numa caixinha. De vez em quando, olho. É uma coisa, mas é um sinal. Por isso, vira sacramento e rememora a gentileza daquela pessoa que nos ofertou.
Só não se pode fazer como meu marido. Comprou as flores e, para fazer-me surpresa, colocou o ramalhete debaixo da cama. Murcharam todas, que pena… Mas eu gostei, assim mesmo. Guardei as flores, mesmo murchas.
Um livro com dedicatória de um amigo, mais um exemplo, é pérola a ser guardada debaixo de sete chaves.
Há pouco tempo, um amigo viu um livro, autografado, num sebo. Ele me perguntou: Você já viu alguém mandar para o sebo um livro dedicado a ele? Eu, na maior tranquilidade, respondi: Já vi até um meu… Ele riu e nada disse.
As pessoas não pensam da mesma forma. Talvez, foram ao lançamento por gentileza, apenas, talvez não tenham gostado do livro, não gostam de ler. Precisavam do espaço etc. Aconteceu até com Reinaldo Polito, conforme contou na sua coluna uol , de 07.07.2020. Deu seu primeiro livro, o primeiro exemplar, com autógrafo, para Martha Rocha, a bela Miss Brasil, recém falecida. Depois de um tempo, encontrou-o num sebo.
Eu guardo meus presentes, com muito carinho, seja o que for.
Ano passado, entretanto, doei todos os meus livros de Direito para a UFES. Para não voltar atrás na doação, apegada que era a eles, fui tirando todos da estante, sem olhar, colocando numa caixa, fechando e levando para a biblioteca. Só depois lembrei-me dos livros de afeição que estavam juntos. Alguns eram absolutamente impossível não guardar, tamanho o amor por eles. Deu-me uma tristeza enorme, vontade de correr lá, abrir todas aquelas caixas e retirar os livros-sacramentos. Mas como fazer isso, sem passar vexame?
Pensei: E, agora, José? Doei e arrependi-me.
Resta-me olhar para a estante, sentir saudades deles e pedir perdão aos meus queridos amigos que me fizeram o presente.
Maria Francisca – julho de 2020.