No meio do caminho tinha uma pedra
Não era a pedra do Drummond…
Era uma chuva, mas não era Maria que chovia
Daquele caso, daquele pluvioso…
Ou seria Maria (Francisca)?
Mas essa pedra, essa chuva
Cai aqui devagar, uma pedrinha de nada
Mas cai em cada lugar…
Alaga, destrói e chega a matar.
A chuva que senti era uma
As que vi por outras lentes
Eram outras, torrentes.
E uma moça, vestia, carinhosamente,
No meio da chuva que vi,
O casaco de frio numa velhinha triste.
Maria Francisca – julho de 2021.
Hoje realizei uma das minhas proezas infantis prediletas. Tomei uma enorme chuva. Sem premeditar, só que não, porque as nuvens escuras anunciavam algo além de um solzinho tímido que teimava em aparecer.
Antes que alguém pergunte se não derreti, digo, como sempre: Sou de sal grosso, inteira. Moída, ainda sobram partículas de mim. Derreter? Só com muito esforço.
Pois bem. Voltava pra casa, naquela chuva grossa, já toda ensopada, andava pela calçada em frente para me livrar das poças do calçadão, quando, ao passar perto de um prédio, vi uma senhora com um pacote às mãos e reclamando ao interfone: Moço, depressa, por favor, está molhando o bolo!
Parei para tentar ajudar e vi que se tratava de portaria remota. O porteiro, lá das calendas, dizia à senhora que não estava conseguindo acessar o apartamento chamado. Enfim, a portadora do tal bolo resolveu ir embora com seu pacote, se era bolo, já tinha virado outro bolo.
Continuei minha caminhada, pensando nessa profissão de porteiro, uma classe quase em extinção. Sim, porque esse da portaria remota parece mais um profissional da antiga telefonia do que porteiro. É um ser invisível… Nada mais chato do que chegar a um prédio, à noite e ficar ali, plantado, esperando. Coisas da modernidade. Só edifícios enormes, aqueles com diversas torres, ainda têm porteiros do sistema antigo. Os prédios menores, como o meu, têm um interfone e pronto. Redução de custos é a palavra de ordem.
Eu sempre tive uma ‘birra” com porteiros. Aliás, eles é que sempre tiveram birra comigo. Uns me mandam pela porta de serviço, outros me prendem no prédio, com raiva porque “burlei” as suas normas de pobre (já disse que tenho cara de pobre) ter que entrar pelo elevador de serviço em prédio chique e, outros, ainda, me vigiando o horário de sair e chegar, como se fosse um juiz dos meus atos.
Eu trabalhava em Ubá, a 120 Km de distância. Era Auditora Fiscal do Trabalho. Normalmente retornava por volta de 20 horas. Ia e voltava de ônibus. Morta de cansada, com minha pesada pasta às mãos, o porteiro respondia ao meu cumprimento e acrescentava: Ainda trabalhando, Doutora? Sim, Seu Olímpio. O Ministério está aberto até essa hora? Sim, Seu Olímpio. Eu rapidamente entrava no elevador, ele atrás, com sua bisbilhotice, tanta, que quase prendia o pescoço na porta.
Era só ele estar em serviço e a história se repetia.
Um dia, acabou a festa. Tinha ido fazer um desses trabalhos difíceis, com uma equipe, acompanhada da Polícia Federal. Quando cheguei ao prédio, um policial todo equipado, saiu do carro da polícia para abrir a porta para mim. Seu Olímpio ficou tão assustado, que mal respondia ao meu cumprimento quando eu chegava. Eu me livrei, sem querer, da bisbilhotice dele.
Quando me lembrei dessa história, até comecei a rir, sozinha, na rua. Ainda bem que, de máscara, ninguém percebeu minha doidice. E toda molhada daquele jeito…
Hoje, alguns desavisados, chegam aos prédios sem porteiro, como no meu, e ficam, por ali, tocando o interfone sem parar. E, às vezes, resmungando: Cadê o porteiro?
Maria Francisca – 05.06.2021.
Acordei cedo.
Animada, olhei o céu. Nuvens grossas, escuras, cobriam tudo. Prestes a chover, pensei. De repente, estava chovendo. Aquela chuva fininha, suave, que mal se vê, parece uma nuvem baixa.
Fui à varanda, a memória afetiva tomou a frente, e vi meu pai, em pé, na porta da cozinha da casa de minha infância, dizendo, pensativo: Invernou…
Agricultor de profissão e por natureza, meu pai sempre cuidou de plantação. No início, cultivava café. Na época da floração, aquela beleza extasiava meus olhos e o cheiro das flores trazia as abelhas para a colheita do pólen. Era perigoso ficar por ali. Menina, cuidado, você pode ser picada por essas abelhas… Mas eu ficava lá assim mesmo. Sentindo aquele cheiro de natureza. E quando os frutos estavam madurinhos…
Depois, na época da colheita, ficávamos por ali “catando” os que caiam no chão e, assim, ganhávamos um pouco de dinheiro (algumas moedas) com aquelas sobras. Alguns de nós, claro, e só nas férias.
Quando o governo resolveu mandar arrancar pés de café, foi uma tragédia. Se não arrancasse, corria o risco de ficar na miséria, porque o preço caiu tanto que nem valia a pena vender. Com muito desgosto, meu pai entrou na negociação, arrancou tantos pés quanto exigiram, recebeu aquele dinheiro que mal deu para as despesas, e fim do cafezal.
Depois, milho, mandioca, arroz, até ficar mais velho, e passar o sítio para os primeiros filhos que já trabalhavam com a terra. Mas não deixou suas plantações ao léu. Na Cidade, sempre arranjava um espaço aberto, vazio, para ir ao encalço do dono e fazer uma “meia” para plantar seus sonhos.
Ah! Sem esquecer o amor pela música. Tinha a música no peito. Adorava a sua sanfoninha e nos divertia tocando. Sempre começava seus saraus com uma musiquinha, com uma letra muito engraçada: Papai tem, mamãe tem, bundinha arrebitada, eu também tenho. Cantávamos essa bobagem e ríamos… Ele ficava feliz.
Queria tocar violão, mas, segundo ele, não sabia cantar, então, preferia a sanfoninha.
Certo dia, cheguei à casa dele e ouvi a música “Asa Branca” sendo executada numa flauta. Pelo som, vi que era uma flautinha de nada, daquelas de criança, bem simples, sem qualquer recurso. Pensei: Essa criança tem pendores musicais. Fui ao encalço da música e encontrei meu pai no quintal, debaixo de uma árvore, concentrado, tocando a flautinha.
Era de uma simplicidade linda.
Gostava de uma prosa, mas se o interlocutor falasse algo e ele não acreditasse, dizia, tranquilamente: Bestage, moço!
Mais velho, reclamava, às vezes, de comprar certas coisas, porque a vida inteira ele plantou e doou: bananas, mangas etc. Chegou a dizer: Daqui a pouco estamos comprando água pra beber.
Hoje, ele desfruta de Bela Morada que o Pai reserva às pessoas que fizeram da terra um Céu.
Com essa saudade gostosa, porém dorida, voltei à varanda de onde apreciava a chuva fininha, suave, que mal se via… parece nuvem baixa…
Maria Francisca – julho de 2021.
Rubem Braga, na crônica “Meu ideal seria escrever”, disse que queria escrever uma história muito engraçada, para alegrar uma moça triste, doente e sozinha que vivia numa casa cinzenta do Bairro.
Eu também, Rubem, gostaria de escrever uma história que nem precisava ser engraçada, mas que trouxesse esperança e amenizasse as dores que amargam a vida de muitos: a dor da fome e dor da doença. Sim, além da peste, temos o desemprego, a miséria e a fome.
Não sou uma pessimista chata, como diria Suassuna, para escrever uma ode ao desânimo, mas não posso ser uma otimista tola e sair por aí, dançando: “Canta, canta, minha gente, deixa a tristeza pra lá”, porque a vida está mesmo difícil. Seria insensato e até ridículo. Como disse Souto Maior, “(…) a alegria e o humor não devem nunca servir para mascarar a realidade” (…).
Saio à varanda e vejo diversos navios aguardando a entrada no porto. Estão quietos, à minha visão. De vez em quando, um sai de minha vista, sinal de que estão navegando. E o que fazem aqueles navegadores, enquanto esperam a entrada no porto? Estão alegres? Estão tristes? E a família, como ficou? Há quantos dias estão no mar, apenas vendo aquela imensidão de água? E os que ficam doentes e nem podem sair do navio? São perguntas que não sei responder.
Xavier De Maistre, condenado à prisão (domiciliar), escreveu um belo livro: “Viagem ao redor do meu quarto”. Aproveitou-se do calvário para escrever sobre tudo que via e sentia ali dentro. A fome não era ameaça, mas, a escrita livrou-o do tédio e da solidão. Saberia ele o que se passava fora dali? Não sei.
Estamos numa guerra, como disse Camus (“A peste”). Quem poderá dizer se todos vamos morrer desta “peste” ou quando retomaremos a vida normal, a de antes? Andar sem máscara, abraçar-nos, reunirmo-nos para um bate-papo, uma tarde com amigos, muitos amigos.
A realidade é nossa inimiga, sim, e a esperança está impedida de entrar. Não podemos cantar e dançar. Além de ridículo, seria falta de empatia com os sofredores, mas devemos ter fé. Como está em Hebreus, 11, 1: “A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê”.
Lembro, a propósito, o final do texto de Alessandro Frezza (O Capitão e o moço): “(…) naquele ano me privaram da primavera, e de muitas coisas mais, mas eu, mesmo assim, floresci, levei a primavera dentro de mim, e ninguém nunca mais pode tirá-la de mim.”
Resta-nos, pois, cuidar-nos e cuidar dos que nos cercam. Enquanto aguardamos a vacina para todos, tentar matar a fome dos tantos que andam por aí, desamparados.
E, com fé, tentar trazer a primavera para dentro de nós, enquanto esperamos dizer, como Chico Buarque e Toquinho, no Samba de Orly:
ACABOU A GUERRA! Vamos comemorar!
Maria Francisca – junho de 2021.
Foto : Nascer do Sol em Itapoã. Mario Nazan.
O sino dos Anjos
O sino tocava o réquiem.
O povo alvoroçou-se…
Quem? Quem?
Não é nada, seu moço.
É só uma arenga
De antiga pendenga.
Um pobre coitado
Que vivia na rua
Por teto céu e lua
E sonhava acordado
Queria tocar o sino
Desde menino.
Hoje, invadiu a igreja
E com muita peleja
Conseguiu chegar à torre.
E nem te falo:
Agarrou-se ao badalo
Lá está
Pendurado às alturas.
Mas não há criatura
Que o faça parar.
E o sino continua a tocar…
A tocar…
Do livro: Nossas Cidades – Corpo e Alma.
Elevo meus olhos ao alto e vejo-te. Elegante, altivo, quase petulante. Imagino-te longe, bem longe, distante dos mortais, tamanha a tua beleza e imponência.
Crio coragem e resolvo visitar-te.
Subo aquela ladeira de pedra, a famosa Ladeira da Penitência, passo a passo, chego cansada ao alto, mas extasiada pela beleza do lugar. Olho ao redor, vejo o Exército, a Marinha, a Ponte, sigo o olhar para Vitória, seu belo mar, retorno o olhar para o Morro do Moreno. Só beleza.
Subo a escadaria, olho para o outro lado e vejo Vila Velha, seu mar, suas praias.
Fico ali pasma, banzando!
Entro na igreja. Sem sentir, ajoelho-me diante do altar. Tudo é silêncio, convite à oração. O coração aquieta-se, e penso em Maria: Nossa Senhora da Penha. Nossa Senhora das Alegrias está na Igrejinha de São Francisco, no Campinho.
A curiosidade, junto à religiosidade adquirida desde a infância, instiga o desejo de conhecer a tua história, Convento da Penha! Pois já não estás tão distante. Pareces amigo.
Na Prainha, onde o Espírito Santo começou, morava Frei Pedro Palácios, numa gruta.
Nasceste de um sonho desse frade franciscano, pela sua devoção à Nossa Senhora das Alegrias, cujo quadro trouxe da Europa e foi colocado na Igrejinha de São Francisco, lugar onde escolheu ficar, segundo a lenda. Diz-se que o quadro sumiu algumas vezes e sempre aparecia no alto do morro, entre duas palmeiras. Frei Pedro decidiu, então, que ali deveria construir uma capela, onde foi pendurada a pintura.
Depois, foste construído, sobre este penhasco, e uma grande imagem de Maria, trazida de Portugal pelo mesmo Frei, fora colocada, com o nome de Nossa Senhora da Penha.
O escritor e historiador Francisco Aurélio afirmou que o nome foi dado pelo povo, uma vez que a igreja ficava sobre um rochedo, ou seja, na penha. Quem ia ao Convento dizia, segundo ele: Vou à igreja que fica na penha. E Maria recebeu o nome de Nossa Senhora da Penha, e tu ficaste com este belo nome: Convento da Penha, guardado, desde sempre, pelos Franciscanos, devotos, como São Francisco, de Nossa Senhora das Alegrias.
Ficaste tão famoso com Nossa Senhora da Penha que todos os anos há uma festa que atrai centenas de milhares de pessoas, de todos os cantos do Estado e do País, para louvar Maria e, dizem, é a terceira festa religiosa mais importante do Brasil.
Hoje, moro em Vila Velha e vejo-te como amigo. Belo como sempre, mas perto, bem perto de mim, para admirar-te quando olho para o alto, ou quando te visito, subindo, arfando, tuas ladeiras, sempre em oração, aproveitando os momentos de paz e alegria, e daquela bela floresta que te rodeia, sempre sob os auspícios de Nossa Senhora das Alegrias.
Vejo as cidades e admiro os prédios, as ruas, os mares… Faço minhas orações, contemplo o mundo, penso na vida, nos humanos e seus mistérios.
E sinto-me no céu.
Maria Francisca – Do livro: Nossas Cidades: Corpo e Alma (2020).
Foto de Mario Vanzan
Ontem, conversava com um amigo e lembramo-nos de diversos episódios que vivenciamos de provocações de pessoas, cujo proceder era apenas para ver a nossa reação.
Lendo “Cartas de um diabo a seu jovem aprendiz” de C.S. Lewis, vejo, logo nas primeiras páginas, as seguintes citações:
A primeira é de Martinho Lutero: “A melhor forma de expulsar o diabo, se ele não se render aos textos das Escrituras, é zombar dele e ridicularizá-lo, pois ele não suporta desdém”. A segunda é de Thomas More: “O diabo…esse espírito orgulhoso…não suporta ser alvo de chacota”.
Então, fiquei a imaginar a similitude dessas frases com as atitudes de determinadas pessoas. Não sou tão categórica, para dizer que são atitudes diabólicas, mas segundo Leonardo Boff as dimensões simbólicas (que unem) e diabólicas (que separam) são naturais do ser. Então, podemos aplicar os ensinamentos tanto de Lutero, como de Thomas More, quando encontramos alguém que nos dizem algo, apenas para nos provocar. As provocações só servem para separar as pessoas.
Realmente, há quem goste de implicar com tudo e adora quando a consegue o efeito desejado, ou seja, o provocado responda, brigue… O importante é deixar o bobo falando sozinho. A menos que você dê uma resposta tão intensa que o provocador se desequilibre, ou fique sem graça.Use de zombaria.
Dependendo do ambiente, do momento, melhor mesmo, é o desprezo. É fazer de conta que nem é com você. Nem o diabo resiste a um desprezo.
O que faria uma pessoa ser assim, provocadora? Seria com todas as pessoas ou somente com algumas?
Imagino que seja resultado de inveja. Digo, apenas, pelas minhas observações.
Leandro Karnal disse que, dos Sete Pecados Capitais, o pior é o orgulho. Eu digo que é a inveja. Ninguém assume nem para si mesmo que tem inveja. É um mal secreto, no dizer de Zuenir Ventura. Mas qual o motivo de classificá-lo como o pior dos pecados capitais?
O Rabino Nilton Bonder (A Cabala da Inveja) diz que o invejoso é uma alma penada, um vampiro que se alimenta não de vitalidade própria, mas alheia. O invejoso dispende energia na expectativa de que o “outro” não seja bem-sucedido. Ele fica feliz com o fracasso do outro, simplesmente isso. Então, o invejoso, sofrendo, provoca o outro, persegue-o.
A fábula da cobra e do vagalume, mostra bem como funciona a inveja. Diz-se que uma cobra começou a perseguir um vagalume. Ele pulava pra lá, a cobra vinha, pulava pra cá, de novo a cobra. No terceiro dia, já sem forças, o vagalume parou e disse à cobra: Não pertenço à tua cadeia alimentar. Nunca te fiz nada. Então, por que queres me comer? E a cobra: Brilhas demais. Não suporto te ver brilhar.
A inveja é um dos sete pecados capitais. Daí podem derivar outros males, ou pecados.
Sabe-se que a pessoa forte ignora o diabo ou o ridiculariza. Vence-o.
Da mesma forma, uma pessoa forte, ignora o invejoso, a provocação, desdenha o provocador ou o ridiculariza, com uma resposta zombeteira.
Se alguém, com segundas intenções, disser: Que roupa feia é essa? Eu respondo: Minha!
Por fim, como diz a música de Jards Macalé:
“Quem fala de mim tem paixão”.
Maria Francisca – maio de 2021.
Numa cidade no fim do mundo, imagino do tipo de Sucupira, da novela de Dias Gomes, vivia Jonas, um político falastrão.
Falava tanta bobagem que era motivo de brincadeiras. Se fosse hoje, surgiriam as charges, memes etc. Contador de vantagem, sabia tudo, dizia palavrão, falava mal das pessoas. Depois de um tempo, não era mais levado a sério.
Ora, Jonas é um bobo! Um papudo!
Mesmo assim, ele, adorado por muitos, continuava com suas “habilidades”. Parafraseando Umberto Eco (Número Zero), no seu gênero, ele era um gênio.
Pois bem. Naquela cidade, no alto de um morro, havia uma enorme gameleira de cerca de 20 metros de altura, centenária. Suas raízes eram tão grandes que formavam uma espécie de caverna entre elas. Segundo o folclore, gameleira sempre foi lugar de esconderijo de malfeitores. E, naquela cidade minúscula, todos acreditavam nisso. Ninguém tinha coragem de chegar perto da tal gameleira.
Depois de um tempo, o local passou a ser a morada de diabos. Segundo a crença, muitos diabos que ficavam pelas ruas fustigando as pessoas, à noite, iam descansar ali, nas cavernas das raízes.
O papudo falava que já tinha visto esses diabos e conversava com eles, de vez em quando. Tanto falou que as pessoas começaram a provocá-lo, instigando-o a contar como eram essas criaturas e o que diziam.
Cobraram, cobraram. Ele, acuado, certo dia foi para a montanha e subiu na gameleira. E seus apoiadores foram junto, claro. Eram a sua claque. Mas todos com medo dos diabos, ficaram em silêncio, aguardando no meio do mato.
Jonas ficou ali, esperando. De repente, ouviu barulho de muitos passos, escondeu-se entre as ramagens e ficou quieto, o coração saindo pela boca. Era verdade…pensou. Os capetas estavam ali, dançando… e falavam algo que ele não conseguia identificar. Apurou mais o ouvido e viu que cantavam, num ritmo rápido, como se fosse um rap: oi segunda, oi terça, oi quarta, oi quinta, oi sexta e paz. Repetiam, repetiam muitas vezes, a mesma cantoria.
O papudo, claro, tudo sabia e a vaidade deu-lhe coragem, resolveu consertar o que os diabos estavam dizendo: quando eles disseram oi sexta, antes que falassem paz, ele disse: Oi sábado e Oi domingo também.
Os diabos calaram-se e foram procurar quem havia falado. O papudo, cheio de si, se achando, como dizem os meninos, apareceu todo serelepe e sua claque correu para ver.
O diabo que parecia ser o chefe disse: Ah! Bem que já ouvi falar de você. É o Papudo! Para fazer jus ao seu nome, dou-lhe um presente.
E colou um imenso papo no papudo.
Maria Francisca – maio de 2021. (História recontada por Gê, minha irmã mais nova.)
Mariafrancisca.blog.br
Quem lhe disse isso?
Radio-corredor.
Ouvi essa expressão muitas vezes, significando dizer: o fato foi ouvido, mas não confirmado. Ou seja: uma fofoca. Como hoje não temos corredor, temos instagram, facebook, BBB etc. A fofoca virou Fake News. E haja Fake News.
Mas eu tenho, ainda, minha radio-corredor, ou melhor, minha radio-calçadão. Escuto ali cada coisa… Desde receita médica de quem não é médico, até decisões judiciais de quem não é juiz.
Esses dias, dois senhores iam caminhando, e seguiam com o seguinte diálogo, certamente iniciado antes:
– Ah! E velho pode morrer?
– Pode!
– Caramba!
– Os jovens precisam trabalhar. Os velhos podem ficar em casa.
De início, achei engraçada a conversa, pelo tom leve de ambos. Percebi, depois, que falavam sobre a vacinação. Mas eles foram para outro lado e perdi o restante do papo.
Lembrei-me de Albert Camus e seu livro “A peste”, escrito em 1947. Uma epidemia assola uma cidade, como a ocupação nazista assolara a França. A Cidade fechada, pessoas solidárias ajudavam, outras burlavam as leis, contrabandeavam bebidas e outros bens, enriqueciam à custa dos altos preços, pagavam propinas para fugir e assim a vida seguia, com sofrimentos e lágrimas.
Comecei a meditar sobre nosso tempo, as vacinas e os idosos, como escutava há pouco. Sim, a vacina poderia ser aplicada em quem precisa trabalhar, não pode ficar em recolhimento. Seria uma questão apenas política? Distraí-me, meditando sobre aquilo, mas, vendo tanta gente sem máscara no calçadão, não pensando nos outros, como na obra de Camus, resolvi ir pela calçada do lado oposto. Afe! Tive que dar meia volta. Um senhor estava urinando num poste logo à frente.
Segui a caminhada e eis que, chegando na passarela de Itapoã, na colônia de pescadores, três senhores discutiam. Fiquei em dúvida: passo ou não passo? De repente, dois jovens saíram correndo.
Radio-calçadão? Antes fosse. Dois rapazes assaltaram um senhor, pularam aquela cerca da passarela, na maior desenvoltura, atravessaram a avenida movimentada e fugiram pela rua lateral para o início da avenida Hugo Musso.
O homem, embasbacado, olhava para todos os lados…Polícia…Nenhum policial, dizia desconsolado.
Desanimei e retornei para casa, mais pensativa, ainda. Não chegam as doenças, a pandemia, a falta de leitos em UTI, a falta de vacinas, o roubo de vacinas, a pobreza, a fome… Não se pode mais nem caminhar no calçadão impunemente. Será que “Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela”, como no título do romance distópico de Ignácio de Loyola Brandão?
Vou fazer as minhas orações…
Maria Francisca – março de 2021.
Manoel de Barros escreveu um livro que chamou “Livro sobre nada” e, na apresentação, disse que Flaubert queria escrever um livro sobre o nada metafísico, “mas o nada do meu livro é nada mesmo (…) um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo etc.”, disse.
Só de escrever assim, já se vê que não é um livro sobre nada. Ele apenas brinca com as palavras, dando-lhes conotação própria.
Já Sartre escreveu seu famoso livro “O ser e o nada” que causou muita polêmica, espanto e admiração na época, por ter contestado algumas verdades consolidadas. E, afinal, é um livro denso.
Falando bem, o “nada” de ambos é tudo.
O que é “nada”? Segundo Houaiss, o que não existe, não-existência, o vazio, coisa nula, sem valor, bagatela, ninharia, inutilidade, categoria filosófica que representa o não-ser, a ausência de existência. Continuando a ler, há uma coluna inteira para dizer sobre a palavra “nada”. Palavra importante, então.
E não ser nada? Já que a palavra ganha tanto destaque…
De vez em quando me pego pensando que sou um nada. Quando sou invisível. Ou quando me fazem de invisível. Fingem que não me veem. A minha roupa, a minha bolsa e meu sapato mostram quem sou. Se não forem da moda ou de marcas famosas, sou um nada.
Imagine um gari. Passa o dia por ali, varrendo, limpando… Faz um serviço útil, utilíssimo, mas nós não lhe damos o devido valor. Para muitos, gari é nada: insignificante. Porque nossa sociedade vê importância em ter, consumir. Mostrar-se. Aparecer, mesmo que seja de total inutilidade, um nada, esse “aparecer”.
Por outro lado, “A utilidade do inútil”, livro de Nuccio Ordine, vem mostrar-nos que o nada, o inútil, muitas vezes, “É necessário para expressar com sua própria existência um valor alternativo à supremacia das leis do mercado e do lucro.” Dessa forma, escrever um poema, por exemplo, seria inútil e, portanto, nada.
As vogais existem. As consoantes só existem em função das vogais. Sem vogais, portanto, as consoantes não teriam som, diz Ordine.
Então, pergunto, as consoantes são um nada? São inúteis? Ninharia? Coisa nula?
E se as vogais não tivessem a consoante? Que palavras formariam? Nada?
Essa história sobre “nada” só mostra que precisamos uns dos outros. Sem o outro não sou nada. Quando “há lacuna de gente”, no dizer de Manoel de Barros, a vida fica triste.
Por fim, de tanto pensar sobre “nada”, não sei mais NADA.
Maria Francisca – 02.08.2020