Maria Francisca - Blog da Maria Francisca Lacerda, escritora e poeta. - page 6

 23 de outubro de 2021 

Você veio para ser servido?

Assistindo à Série “Crown”, fiquei a imaginar a vida daquela família. Um mundo à parte, em que tudo lhes chega com facilidade, sem qualquer esforço. Um batalhão de empregados servindo às majestades e elas recebendo reverências por onde andam ou mesmo em casa, pelos empregados e visitantes.

É o que transparece daquelas cenas.

Muita gente acha bonito ser servido. Esperar sempre alguém para  atendê-lo, até  em  atividades corriqueiras, como abrir uma porta.  Talvez por pensar que servir significa ser servil, inferior. Não. Quem serve é uma pessoa solidária, educada e gentil.

Alguns dias antes do início da pandemia, eu estava na Academia de ginástica, lá com meus pesos e minha preguiça de sempre, quando vi uma senhora caminhando com dois enormes pesos à perna.

Perguntei: Precisa de ajuda?  Ela, em tom aborrecido: Chamo, chamo, a professora não aparece.  Preciso tirar esses pesos. Eu abaixei e tirei os pesos da perda dela. Ela nem olhou pra mim e foi saindo. Livre, leve e solta, sentou-se numa bicicleta ergométrica, começou a pedalar na maior desenvoltura.

No primeiro momento, imaginei que ela não pudesse abaixar-se.  Depois, foi servida como queria, e nem um agradecimento dirigiu a mim.

Eu fiquei pensando o que espera da vida uma pessoa desse tipo.

E isso começa cedo, com a educação. Se os pais são sempre servidos, claro, os filhos vão seguindo o exemplo. E nem agradecem como se tivessem nascido com uma estrela na testa.

Há homens, por exemplo, que se sentam em frente à televisão e vão pedindo tudo à esposa. Traga um café, traga um copo etc. Às vezes, depois de um dia de trabalho, ambos chegam em casa. O homem está cansado. A mulher nunca está?  Machismo? Pode ser.

No trabalho, tem sempre algum folgado. Espera que o colega, a colega, faça o que esse folgado deveria fazer. As menores coisas, como lavar uma xícara para tomar café, um copo de água etc.

A vida exige serviço a outrem. O próprio poder do Juiz é para servir. É um poder-dever. Seu poder é apenas para servir à comunidade onde atua. Sem o poder, ele não pode exercer sua função. Ele não é o Poder. Está apenas investido dele, enquanto exerce o múnus.

Em questão de servir, vale lembrar o exemplo de Jesus: “O próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir (…)” (Marcos 10.45). É o serviço do Cristão. Promover a vida, auxiliar na construção de um mundo melhor.

Ser útil, entretanto, prescinde de religião, espiritualidade, crença, mas educação, gentileza. Viver é conviver. A vida fica melhor quando todos são gentis.

Mas se não quiser servir, pelo menos não faça de outra pessoa seu servidor.  Você não veio para ser servido, foi?

 

Maria Francisca – fevereiro de 2021.

 

 

 

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 10 de outubro de 2021 

“Quando me caía nas mãos uma obra ordinária, ficava contentíssimo:  – Ora, muito bem. Isto é tão ruim que eu, com trabalho, poderia fazer coisa igual.

Os livros idiotas animam a gente. Se não fossem eles, nem sei quem se atreveria a começar”, dizia o personagem Luís da Silva, de Graciliano Ramos, em “Angústia”, livro que, segundo consta, escrevera na prisão, em 1936.

Luís escrevia e escrevia. Vendia contos e poemas, como um ghost writer, para sobreviver, já que, funcionário público, ganhava muito pouco. Lia, lia muito, e se vangloriava. Quando alguém perguntava sobre um livro que não lera, dizia: muito ruim.

Li esse trecho e ri sozinha, porque foi assim que comecei a publicar os meus escritos.

Eu escrevia há muito tempo, mas não tinha coragem de publicar e, muitas vezes, jogava fora.  Um dia, andando pelas ruas de Belo Horizonte, entrei, por acaso, em uma livraria e dei de cara com um livro de poemas e crônicas de um famoso apresentador de TV.  Em casa, fui ler o tal livro. Ruim, a mais não poder.

Então, pensei: Eu também posso!

Mas após meditar sobre esse trecho de Angústia, pensei: quem sabe estou incentivando outros escritores, com minha pobreza literária e minha coragem (ou temeridade) de publicar meus poemas e crônicas?

Pode ser isto: leem meus escritos e, da mesma forma que aconteceu comigo e registrado pelo personagem de Graciliano Ramos, a pessoa pense: também posso, e passe a publicar seus trabalhos.

De vez em quando, alguém me pede para ler algo que escrevera. Se eu elogio, tudo bem, mas se faço alguma consideração do tipo: você pode escrever assim e assado, ou, seria melhor se colocasse desse jeito, essa pessoa nunca mais me traz nada para ler. Todos só queremos elogios. É da nossa natureza.

Alguns escritores principiantes seguiram minhas sugestões e até publicaram livros excelentes. Muito, mas muito melhores do que os meus. E eu fiquei muito orgulhosa do trabalho deles.

Eu também caí nessa armadilha de querer só elogio. Seguindo o exemplo de um colega escritor, arranjei um leitor-beta. A questão foi que ele nunca gostava de nada que lia. Então, deduzi que não valia a pena. Será que era tão ruim assim, tudo? Desanimei e fiquei um tempão sem escrever nada.

E quando participo de concursos literários e meu trabalho nunca é escolhido?  Já aconteceu muitas vezes.  E não era nenhum prêmio Jabuti. Aí, sim, o desânimo bate. Não participo de mais nenhum, prometo, e penso não escrever mais nada… Pura vaidade!

Entretanto, depois do episódio da aula de pintura que abandonei por causa de uma crítica áspera, que já virou crônica, não quis repetir a decisão de desistir do que gostava de fazer, mesmo sabendo das dificuldades. E prometi a mim mesma nunca mais fazê-lo. Labirintos são, mesmo, para desanimar.

Passado algum tempo, recomecei. Aprendi que teria que conviver com todo tipo de leitor, se eu quisesse sobreviver. Uns gostam, outros não, uns muitos, outros quase nada, outros sentem-se ofendidos…Segui, entretanto, escrevendo minhas historinhas e meus poemetos. E, de vez em quando, tomando uma pancada nos concursos literários.

Li, há pouco tempo, uma entrevista do Vinícius de Morais (In “Escritores do Brasil, n.10). Ele disse que ficou muito vaidoso quando publicou o primeiro livro, foi muito elogiado e premiado, mas alguns críticos o colocaram direitinho em seu lugar. Disse mais: não gostava de nada do que lia ultimamente. Tudo estava muito ruim.

Então, vejamos, mesmo de escritores famosos lemos coisas boas e não tão boas, segundo nossa visão, às vezes até no mesmo livro, como num caso de um superpremiado, cujos contos são, na maioria, ruins para meu gosto.

Vargas Llosa disse, na apresentação do livro A linguagem da paixão: “Não festejo nem lamento essas críticas aos meus artigos: eu as considero como provas da independência e da liberdade com que os escrevo.” Só que, mesmo dizendo-se independente, fez questão de desclassificar os opositores, numa clara demonstração do ensinamento de Shopenhauer, de “Como vencer um debate sem ter razão”.

Além disso, muitas vezes, nós mesmos achamos péssimo o que escrevemos e temos vontade de deletar tudo, mas nem sempre é possível. E se vem a crítica severa, somos obrigados a aceitar.

 

Afinal, se nem Vargas Llosa se livra de críticas. Eu que vou me livrar?

Então, vou costurando minhas palavras. Se elogiam, alegro-me. Se criticam, entristeço-me, para, em seguida, enfrentar o labirinto…

Maria Francisca – setembro de 2021.

 

 19 de setembro de 2021 

Esses dias, lavava um casaco de frio do meu marido (sim, eu também tenho meus momentos de prendas domésticas), cujas listras brancas das mangas estavam encardidas.  Esfreguei, esfreguei, e nada de sair. Fiquei ali batalhando com aquelas manchas até conseguir, porque sou persistente e teimosa a mais não poder.

Enquanto esfregava, comecei a pensar na dureza da vida de muitas mulheres.  De um tempo ou de cidade sem energia elétrica, sem máquina de lavar roupa, ferro elétrico ou qualquer outro equipamento para ajudar nas tarefas domésticas, que cabiam a elas, só a elas.

A vida moderna trouxe algumas facilidades, apesar de trazer muitas dificuldades de outra ordem, mas isso é outra história. Hoje, ninguém se priva de uma máquina de lavar roupa ou, ao menos de um tanquinho. Quem não tem um ferro elétrico? E muitos têm até robô para limpar a casa. Claro, é tudo muito caro. Então, é sempre a vez dos mais iguais.

A tecnologia, a internet, trouxeram muita coisa boa. E coisa ruim, também. Umberto Eco teria dito que, embora valioso instrumento, a internet teria dado voz a muitos imbecis. Nada é perfeito, claro. Um celular, ai, ai, ai. Todos são “obrigados” a ter. Quem não tem sofre, porque não pode postar fotos no instagran, no story do facebook, no whatsapp, e por aí vai.

Imagine esse tempo de pandemia sem a rede social!  As aulas virtuais, alunos e professores nessa lida pela internet. No período de lockdown foi o que salvou a todos para os contatos, os vídeos… Ninguém podia ver ninguém. Tudo virtual. E ainda estamos aguardando esse tormento passar.

E se houvesse um apagão?  Como ficaríamos? Sem luz elétrica, sem tv, sem internet, sem celular… Foi do que tratou Don Delillo no livro “O silêncio”.  As pessoas que, antes, até esbarravam nas outras, porque nem olhavam para frente na rua, distraídas com os celulares, agora, andavam a esmo, perdidas, sem rumo, mergulhadas na correnteza de gente.

Imaginemos esse silêncio de que fala Dom Delillo neste tempo de pandemia. Lá, como aqui, aliás, no mundo inteiro, o desenvolvimento humano não acompanhou o da tecnologia que está anos luz da nossa vã filosofia. Não saberíamos lidar com isso. O caos se instalaria. Restaria um vazio total e, por que não, o fim do mundo!

Sempre amei silêncios, pausas, como na música. Gosto de lugares tranquilos, praias, montanhas. Nada melhor para repor as energias, retornar para casa com o coração leve, como se a vida recomeçasse daquele ponto. Um silêncio que conduz à paz na alma e no coração. Não esse silêncio vazio, de andar a esmo, solto pela rua, e, ainda, por ser obrigado, já que nada é mais possível.

Seria como a catástrofe narrada por Saramago em “Ensaio sobre a Cegueira”?

Felizmente, estamos em paz. A guerra da pandemia está passando e, breve, poderemos respirar, aliviados. E o silêncio, o silêncio suave, da pausa, poderá ser comemorado à altura do bem que faz a todos os corações.

Maria Francisca – Setembro de 2021.

 

 5 de setembro de 2021 

No meio do caminho tinha uma pedra

Não era a pedra do Drummond…

Era uma chuva, mas não era Maria que chovia

Daquele caso, daquele pluvioso…

Ou seria Maria (Francisca)?

 

Mas essa pedra, essa chuva

Cai aqui devagar, uma pedrinha de nada

Mas cai em cada lugar…

Alaga, destrói e chega a matar.

 

A chuva que senti era uma

As que vi por outras lentes

Eram outras, torrentes.

 

E uma moça, vestia, carinhosamente,

No meio da chuva que vi,

O casaco de frio numa velhinha triste.

 

Maria Francisca – julho de 2021.

 

 

 

 

 1 de agosto de 2021 

 

Hoje realizei uma das minhas proezas infantis prediletas. Tomei uma enorme chuva. Sem premeditar, só que não, porque as nuvens escuras anunciavam algo além de um solzinho tímido que teimava em aparecer.

Antes que alguém pergunte se não derreti, digo, como sempre: Sou de sal grosso, inteira. Moída, ainda sobram partículas de mim. Derreter? Só com muito esforço.

Pois bem. Voltava pra casa, naquela chuva grossa, já toda ensopada, andava pela calçada em frente para me livrar das poças do calçadão, quando, ao passar perto de um prédio, vi uma senhora com um pacote às mãos e reclamando ao interfone:  Moço, depressa, por favor, está molhando o bolo!

Parei para tentar ajudar e vi que se tratava de portaria remota. O porteiro, lá das calendas, dizia à senhora que não estava conseguindo acessar o apartamento chamado. Enfim, a portadora do tal bolo resolveu ir embora com seu pacote, se era bolo, já tinha virado outro bolo.

Continuei minha caminhada, pensando nessa profissão de porteiro, uma classe quase em extinção.  Sim, porque esse da portaria remota parece mais um profissional da antiga telefonia do que porteiro. É um ser invisível… Nada mais chato do que chegar a um prédio, à noite e ficar ali, plantado, esperando. Coisas da modernidade. Só edifícios enormes, aqueles com diversas torres, ainda têm porteiros do sistema antigo. Os prédios menores, como o meu, têm um interfone e pronto. Redução de custos é a palavra de ordem.

Eu sempre tive uma ‘birra” com porteiros. Aliás, eles é que sempre tiveram birra comigo. Uns me mandam pela porta de serviço, outros me prendem no prédio, com raiva porque “burlei” as suas normas de pobre (já disse que tenho cara de pobre) ter que entrar pelo elevador de serviço em prédio chique e, outros, ainda, me vigiando o horário de sair e chegar, como se fosse um juiz dos meus atos.

Eu trabalhava em Ubá, a 120 Km de distância. Era Auditora Fiscal do Trabalho.  Normalmente retornava por volta de 20 horas. Ia e voltava de ônibus. Morta de cansada, com minha pesada pasta às mãos, o porteiro respondia ao meu cumprimento e acrescentava: Ainda trabalhando, Doutora? Sim, Seu Olímpio. O Ministério está aberto até essa hora? Sim, Seu Olímpio. Eu rapidamente entrava no elevador, ele atrás, com sua bisbilhotice, tanta, que quase prendia o pescoço na porta.

Era só ele estar em serviço e a história se repetia.

Um dia, acabou a festa. Tinha ido fazer um desses trabalhos difíceis, com uma equipe, acompanhada da Polícia Federal. Quando cheguei ao prédio, um policial todo equipado, saiu do carro da polícia para abrir a porta para mim. Seu Olímpio ficou tão assustado, que mal respondia ao meu cumprimento quando eu chegava. Eu me livrei, sem querer, da bisbilhotice dele.

Quando me lembrei dessa história, até comecei a rir, sozinha, na rua. Ainda bem que, de máscara, ninguém percebeu minha doidice. E toda molhada daquele jeito…

Hoje, alguns desavisados, chegam aos prédios sem porteiro, como no meu, e ficam, por ali, tocando o interfone sem parar. E, às vezes, resmungando: Cadê o porteiro?

 

Maria Francisca – 05.06.2021.

 

 

 

 9 de julho de 2021 

Acordei cedo.

Animada, olhei o céu. Nuvens grossas, escuras, cobriam tudo. Prestes a chover, pensei.  De repente, estava chovendo.  Aquela chuva fininha, suave, que mal se vê, parece uma nuvem baixa.

Fui à varanda, a memória afetiva tomou a frente, e vi meu pai, em pé, na porta da cozinha da casa de minha infância, dizendo, pensativo: Invernou

Agricultor de profissão e por natureza, meu pai sempre cuidou de plantação. No início, cultivava café.  Na época da floração, aquela beleza extasiava meus olhos e o cheiro das flores trazia as abelhas para a colheita do pólen. Era perigoso ficar por ali. Menina, cuidado, você pode ser picada por essas abelhas… Mas eu ficava lá assim mesmo. Sentindo aquele cheiro de natureza. E quando os frutos estavam madurinhos…

Depois, na época da colheita, ficávamos por ali “catando” os que caiam no chão e, assim, ganhávamos um pouco de dinheiro (algumas moedas) com aquelas sobras. Alguns de nós, claro, e só nas férias.

Quando o governo resolveu mandar arrancar pés de café, foi uma tragédia. Se não arrancasse, corria o risco de ficar na miséria, porque o preço caiu tanto que nem valia a pena vender. Com muito desgosto, meu pai entrou na negociação, arrancou tantos pés quanto exigiram, recebeu aquele dinheiro que mal deu para as despesas, e fim do cafezal.

Depois, milho, mandioca, arroz, até ficar mais velho, e passar o sítio para os primeiros filhos que já trabalhavam com a terra. Mas não deixou suas plantações ao léu. Na Cidade, sempre arranjava um espaço aberto, vazio, para ir ao encalço do dono e fazer uma “meia” para plantar seus sonhos.

Ah! Sem esquecer o amor pela música. Tinha a música no peito. Adorava a sua sanfoninha e nos divertia tocando. Sempre começava seus saraus com uma musiquinha, com uma letra muito engraçada: Papai tem, mamãe tem, bundinha arrebitada, eu também tenho. Cantávamos essa bobagem e ríamos… Ele ficava feliz.

Queria tocar violão, mas, segundo ele, não sabia cantar, então, preferia a sanfoninha.

Certo dia, cheguei à casa dele e ouvi a música “Asa Branca” sendo executada numa flauta. Pelo som, vi que era uma flautinha de nada, daquelas de criança, bem simples, sem qualquer recurso. Pensei: Essa criança tem pendores musicais. Fui ao encalço da música e encontrei meu pai no quintal, debaixo de uma árvore, concentrado, tocando a flautinha.

Era de uma simplicidade linda.

Gostava de uma prosa, mas se o interlocutor falasse algo e ele não acreditasse, dizia, tranquilamente: Bestage, moço!

Mais velho, reclamava, às vezes, de comprar certas coisas, porque a vida inteira ele plantou e doou:   bananas, mangas etc.  Chegou a dizer: Daqui a pouco estamos comprando água pra beber. 

Hoje, ele desfruta de Bela Morada que o Pai reserva às pessoas que fizeram da terra um Céu.

Com essa saudade gostosa, porém dorida, voltei à varanda de onde apreciava a chuva fininha, suave, que mal se via… parece nuvem baixa…

Maria Francisca – julho de 2021.

 19 de junho de 2021 

Rubem Braga, na crônica “Meu ideal seria escrever”, disse que queria escrever uma história muito engraçada, para alegrar uma moça triste, doente e sozinha que vivia numa casa cinzenta do Bairro.

Eu também, Rubem, gostaria de escrever uma história que nem precisava ser engraçada, mas que trouxesse esperança e amenizasse as dores que amargam a vida de muitos: a dor da fome e dor da doença. Sim, além da peste, temos o desemprego, a miséria e a fome.

Não sou uma pessimista chata, como diria Suassuna, para escrever uma ode ao desânimo, mas não posso ser uma otimista tola e sair por aí, dançando: “Canta, canta, minha gente, deixa a tristeza pra lá”, porque a vida está mesmo difícil. Seria insensato e até ridículo.  Como disse Souto Maior, “(…) a alegria e o humor não devem nunca servir para mascarar a realidade” (…).

Saio à varanda e vejo diversos navios aguardando a entrada no porto. Estão quietos, à minha visão. De vez em quando, um sai de minha vista, sinal de que estão navegando. E o que fazem aqueles navegadores, enquanto esperam a entrada no porto? Estão alegres? Estão tristes? E a família, como ficou? Há quantos dias estão no mar, apenas vendo aquela imensidão de água? E os que ficam doentes e nem podem sair do navio? São perguntas que não sei responder.

Xavier De Maistre, condenado à prisão (domiciliar), escreveu um belo livro: “Viagem ao redor do meu quarto”. Aproveitou-se do calvário para escrever sobre tudo que via e sentia ali dentro. A fome não era ameaça, mas, a escrita livrou-o do tédio e da solidão. Saberia ele o que se passava fora dali? Não sei.

Estamos numa guerra, como disse Camus (“A peste”). Quem poderá dizer se todos vamos morrer desta “peste” ou quando retomaremos a vida normal, a de antes?  Andar sem máscara, abraçar-nos, reunirmo-nos para um bate-papo, uma tarde com amigos, muitos amigos.

A realidade é nossa inimiga, sim, e a esperança está impedida de entrar. Não podemos cantar e dançar. Além de ridículo, seria falta de empatia com os sofredores, mas devemos ter fé. Como está em Hebreus, 11, 1: “A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê”.

Lembro, a propósito, o final do texto de Alessandro Frezza (O Capitão e o moço): “(…) naquele ano me privaram da primavera, e de muitas coisas mais, mas eu, mesmo assim, floresci, levei a primavera dentro de mim, e ninguém nunca mais pode tirá-la de mim.”

Resta-nos, pois, cuidar-nos e cuidar dos que nos cercam.  Enquanto aguardamos a vacina para todos, tentar matar a fome dos tantos que andam por aí, desamparados.

E, com fé, tentar trazer a primavera para dentro de nós, enquanto esperamos dizer, como Chico Buarque e Toquinho, no Samba de Orly:

ACABOU A GUERRA! Vamos comemorar!

Maria Francisca – junho de 2021.

Foto : Nascer do Sol em Itapoã. Mario Nazan.

 12 de junho de 2021 

O sino dos Anjos

 

O sino tocava o réquiem.

O povo alvoroçou-se…

Quem? Quem?

Não é nada, seu moço.

É só uma arenga

De antiga pendenga.

 

Um pobre coitado

Que vivia na rua

Por teto céu e lua

E sonhava acordado

Queria tocar o sino

Desde menino.

 

Hoje, invadiu a igreja

E com muita peleja

Conseguiu chegar à torre.

E nem te falo:

Agarrou-se ao badalo

 

Lá está

Pendurado às alturas.

Mas não há criatura

Que o faça parar.

E o sino continua a tocar…

A tocar…

 Do livro: Nossas Cidades – Corpo e Alma.

 2 de junho de 2021 

Elevo meus olhos ao alto e vejo-te. Elegante, altivo, quase petulante. Imagino-te longe, bem longe, distante dos mortais, tamanha a tua beleza e imponência.

Crio coragem e resolvo visitar-te.

Subo aquela ladeira de pedra, a famosa Ladeira da Penitência, passo a passo, chego cansada ao alto, mas extasiada pela beleza do lugar. Olho ao redor, vejo o Exército, a Marinha, a Ponte, sigo o olhar para Vitória, seu belo mar, retorno o olhar para o Morro do Moreno. Só beleza.

Subo a escadaria, olho para o outro lado e vejo Vila Velha, seu mar, suas praias.

Fico ali pasma, banzando!

Entro na igreja.  Sem sentir, ajoelho-me diante do altar. Tudo é silêncio, convite à oração. O coração aquieta-se, e penso em Maria: Nossa Senhora da Penha. Nossa Senhora das Alegrias está na Igrejinha de São Francisco, no Campinho.

A curiosidade, junto à religiosidade adquirida desde a infância, instiga o desejo de conhecer a tua história, Convento da Penha! Pois já não estás tão distante. Pareces amigo.

Na Prainha, onde o Espírito Santo começou, morava Frei Pedro Palácios, numa gruta.

Nasceste de um sonho desse frade franciscano, pela sua devoção à Nossa Senhora das Alegrias, cujo quadro trouxe da Europa e foi colocado na Igrejinha de São Francisco, lugar onde escolheu ficar, segundo a lenda. Diz-se que o quadro sumiu algumas vezes e sempre aparecia no alto do morro, entre duas palmeiras. Frei Pedro decidiu, então, que ali deveria construir uma capela, onde foi pendurada a pintura.

Depois, foste construído, sobre este penhasco, e uma grande imagem de Maria, trazida de Portugal pelo mesmo Frei, fora colocada, com o nome de Nossa Senhora da Penha.

O escritor e historiador Francisco Aurélio afirmou que o  nome foi dado pelo povo, uma vez que a igreja ficava sobre um rochedo, ou seja, na penha.   Quem ia ao Convento dizia, segundo ele: Vou à igreja que fica na penha. E Maria recebeu o nome de Nossa Senhora da Penha, e tu ficaste com este belo nome: Convento da Penha, guardado, desde sempre, pelos Franciscanos, devotos, como São Francisco, de Nossa Senhora das Alegrias.

Ficaste tão famoso com Nossa Senhora da Penha que todos os anos há uma festa que atrai centenas de milhares de pessoas, de todos os cantos do Estado e do País, para louvar Maria e, dizem, é a terceira festa religiosa mais importante do Brasil.

Hoje, moro em Vila Velha e vejo-te como amigo. Belo como sempre, mas perto, bem perto de mim, para admirar-te quando olho para o alto, ou quando te visito, subindo, arfando, tuas ladeiras, sempre em oração, aproveitando os momentos de paz e alegria, e daquela bela floresta que te rodeia, sempre sob os auspícios de Nossa Senhora das Alegrias.

Vejo as cidades e admiro os prédios, as ruas, os mares… Faço minhas orações, contemplo o mundo, penso na vida, nos humanos e seus mistérios.

E sinto-me no céu.

 

Maria Francisca – Do livro: Nossas Cidades: Corpo e Alma (2020).

Foto de Mario Vanzan

 20 de maio de 2021 

Ontem, conversava com um amigo e lembramo-nos de diversos episódios que vivenciamos de provocações de pessoas, cujo proceder era apenas para ver a nossa reação.

Lendo “Cartas de um diabo a seu jovem aprendiz” de C.S. Lewis, vejo, logo nas primeiras páginas, as seguintes citações:

A primeira é de Martinho Lutero: “A melhor forma de expulsar o diabo, se ele não se render aos textos das Escrituras, é zombar dele e ridicularizá-lo, pois ele não suporta desdém”. A segunda é de Thomas More: “O diabo…esse espírito orgulhoso…não suporta ser alvo de chacota”.

Então, fiquei a imaginar a similitude dessas frases com as atitudes de determinadas pessoas. Não sou tão categórica, para dizer que são atitudes diabólicas, mas segundo Leonardo Boff as dimensões simbólicas (que unem) e diabólicas (que separam) são naturais do ser. Então, podemos aplicar os ensinamentos tanto de Lutero, como de Thomas More, quando encontramos alguém que nos dizem algo, apenas para nos provocar. As provocações só servem para separar as pessoas.

Realmente, há quem goste de implicar com tudo e adora quando a consegue o efeito desejado, ou seja, o provocado responda, brigue… O importante é deixar o bobo falando sozinho. A menos que você dê uma resposta tão intensa que o provocador se desequilibre, ou fique sem graça.Use de zombaria.

Dependendo do ambiente, do momento, melhor mesmo, é o desprezo. É fazer de conta que nem é com você. Nem o diabo resiste a um desprezo.

O que faria uma pessoa ser assim, provocadora? Seria com todas as pessoas ou somente com algumas?

Imagino que seja resultado de inveja. Digo, apenas, pelas minhas observações.

Leandro Karnal disse que, dos Sete Pecados Capitais, o pior é o orgulho. Eu digo que é a inveja.  Ninguém assume nem para si mesmo que tem inveja. É um mal secreto, no dizer de Zuenir Ventura. Mas qual o motivo de classificá-lo como o pior dos pecados capitais?

O Rabino Nilton Bonder (A Cabala da Inveja) diz que o invejoso é uma alma penada, um vampiro que se alimenta não de vitalidade própria, mas alheia. O invejoso dispende energia na expectativa de que o “outro” não seja bem-sucedido. Ele fica feliz com o fracasso do outro, simplesmente isso. Então, o invejoso, sofrendo, provoca o outro, persegue-o.

A fábula da cobra e do vagalume, mostra bem como funciona a inveja.  Diz-se que uma cobra começou a perseguir um vagalume. Ele pulava pra lá, a cobra vinha, pulava pra cá, de novo a cobra. No terceiro dia, já sem forças, o vagalume parou e disse à cobra: Não pertenço à tua cadeia alimentar. Nunca te fiz nada. Então, por que queres me comer? E a cobra: Brilhas demais. Não suporto te ver brilhar.

 

A inveja é um dos sete pecados capitais. Daí podem derivar outros males, ou pecados.

Sabe-se que a pessoa forte ignora o diabo ou o ridiculariza. Vence-o.

Da mesma forma, uma pessoa forte, ignora o invejoso, a provocação, desdenha o provocador ou o ridiculariza, com uma resposta zombeteira.

Se alguém, com segundas intenções, disser: Que roupa feia é essa? Eu respondo: Minha!

Por fim, como diz a música de Jards Macalé:

“Quem fala de mim tem paixão”.

Maria Francisca – maio de 2021.

 




Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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