Não vendo. Se dou, arrependo-me. - Maria Francisca

 2 de agosto de 2020 

O jornal “A Gazeta”, do Espírito Santo, numa de suas últimas edições impressas, traz uma matéria em que o entrevistado fala de algo “que não vende, não troca nem doa”, pelo apreço que tem por aquele objeto, que, nem sempre, é algo de valor material ou comercial. É uma lembrança, de valor, digamos, espiritual.

Leonardo Boff explica muito bem esse valor, que denominei espiritual. Diz ele (in ‘Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos’): “Toda vez que uma realidade do mundo, sem deixar o mundo, evoca uma outra realidade diferente dela, ela assume uma função sacramental. Deixa de ser coisa, para se tornar um sinal ou um símbolo. Todo sinal é sinal de alguma coisa ou de algum valor para alguém. Como coisa, pode ser absolutamente irrelevante. Como sinal, pode ganhar uma valoração inestimável e preciosa.”

Por isso, quando um filho ou neto faz um desenho para nós, guardamos com um carinho que não se pode medir. Pode ser um desenho tosco, mas feito para nós. Ali não está um desenho apenas, está o amor do filho ou do neto.

É o sinal do amor, do carinho.

Quando ganhamos flores de alguma pessoa especial, sentimos um bem-estar muito grande, porque as flores não são apenas flores, são a amizade, o amor e o carinho da pessoa que nos presenteou.  E ficamos com pena quando murcham. Eu, por exemplo, tiro aquelas florezinhas e guardo numa caixinha. De vez em quando, olho. É uma coisa, mas é um sinal. Por isso, vira sacramento e rememora a gentileza daquela pessoa que nos ofertou.

Só não se pode fazer como meu marido. Comprou as flores e, para fazer-me surpresa, colocou o ramalhete debaixo da cama. Murcharam todas, que pena… Mas eu gostei, assim mesmo. Guardei as flores, mesmo murchas.

Um livro com dedicatória de um amigo, mais um exemplo, é pérola a ser guardada debaixo de sete chaves.

Há pouco tempo, um amigo viu um livro, autografado, num sebo. Ele me perguntou: Você já viu alguém mandar para o sebo um livro dedicado a ele? Eu, na maior tranquilidade, respondi: Já vi até um meu… Ele riu e nada disse.

As pessoas não pensam da mesma forma. Talvez, foram ao lançamento por gentileza, apenas, talvez não tenham gostado do livro, não gostam de ler. Precisavam do espaço etc. Aconteceu até com Reinaldo Polito, conforme contou na sua coluna uol , de 07.07.2020. Deu seu primeiro livro, o primeiro exemplar, com autógrafo, para Martha Rocha, a bela Miss Brasil, recém falecida. Depois de um tempo, encontrou-o num sebo.

Eu guardo meus presentes, com muito carinho, seja o que for.

Ano passado, entretanto, doei todos os meus livros de Direito para a UFES.   Para não voltar atrás na doação, apegada que era a eles, fui tirando todos da estante, sem olhar, colocando numa caixa, fechando e levando para a biblioteca. Só depois lembrei-me dos livros de afeição que estavam juntos. Alguns eram absolutamente impossível não guardar, tamanho o amor por eles. Deu-me uma tristeza enorme, vontade de correr lá, abrir todas aquelas caixas e retirar os livros-sacramentos. Mas como fazer isso, sem passar vexame?

Pensei: E, agora, José? Doei e arrependi-me.

Resta-me olhar para a estante, sentir saudades deles e pedir perdão aos meus queridos amigos que me fizeram o presente.

 

Maria Francisca – julho de 2020.

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15 comentários

  1. Uma boa leitura como sempre é a sua característica.
    Eu particularmente sigo o a orientação de meu pai. Ele dizia:”O que não serve ou não estou usando guardo por seis meses.” Aí eu perguntei e depois de seis meses? Ele respondeu: “Sigo o mesmo lema!rsrs

  2. Aqui em casa tem acontecido a mesma coisa. Já se foram muitos para a biblioteca. Umas “raridades” ainda permanecem de teimosia. Como papai agora e marceneiro a estante está precisando virar alguma peça da nova profissao… beijo tia Chica! Excelente!!

  3. Lindo , Fran. Seus amigos certamente já te perdoaram, mas entendo sua tristeza. Me fez lembrar que estou com um livro seu, emprestado: O método silva de controle mental para executivos.

    Beijos, Teté.

  4. Certas situações nos deixam irredutíveis. vamos contornando e tal até que chega a hora do impasse doar ou não e em seguida o ultimato: Preciso doar. Eu mesmo correndo o risco de me sentir hipócrita, arranjei uma desculpa (favorecer ao autor, divulgando o seu livro) e um subterfúgio (Mandei fazer um carimbo: Dedicatória arquivada) e antes de arrancar calculava o espaço, uma espécie de margem, onde batia o carimbo e pegava cada uma das dedicatórias recortadas e arquivava numa pasta. E se precisasse de novo, digitalizaria as tais e despachava as originais. Sobre esse ter que doar, as pessoas que moram num “apertamento” sabem o que é. Eu ainda tive outro estímulo: Depois que as “modernas estantes de madeira, na verdade pó de madeira prensado, umedecia inchava, “desmilinguia” e perdia completamente a resistência, com o consequente desabamento. As de ferro, metidas a estante, começavam a entortar, até girar sobre si mesma (revolução bíblica) e cair, inexoravelmente. Ai, vem mais uma hipocrisia: Lugar de livro é na biblioteca. Se for preciso pego lá ( até parece que é verdade. As Doações eram a peso, tipo 320 Kg e a volumes 120 peças.
    Não se preocupem, parei por aqui, que o jornal está grande , reconheço.

    • É isso, aí, Roberto Vasco, mas o meu caso foi um pouco diferente. Eu doei os livros de Direito. Como fiz Mestrado na UFES e me sentia em dívida, porque fiz de graça e a biblioteca de lá, para o mestrado, era muito ruim (De vez em quando o coordenador até pedia doação de algum livro). Como me aposentara e minha biblioteca jurídica era enorme, seria, mesmo, muito apego, pra não dizer egoísmo, eu não doar. E assim fiz.
      Obrigada pelo jornal e pode mandar quantos jornais desejar. É bom.
      Grande abraço.

  5. Gostei da crônica, as flores embaixo da cama eu ri demais, certamente ele esqueceu.

    Grande abraço Francisca!


  6. LUIZ ANTONIO BERNARDO
    16 de julho de 2021 às 23:58

    Belíssima crônica! Sempre uma boa reflexão emerge das suas palavras… Gratidão!

    Apego e desapego em pauta!

    Lembrei-me dos livros e CDs nas mãos dos amigos! Em boas mãos, certamente!

    • Pois é, Bernardo, conversamos sobre isto: afetividade que gera o apego. Mas, de vez em quando, devemos nos desapegar, porque a vida exige isso, não é? Grande abraço e grata pela leitura e pelo comentário.

Responder para to Edson Jose Lopes


Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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