Agora, como na música de Vanessa da Mata, acabei de tomar um “Banho de chuva, ai, ai, ai, ai, aaaai”.
Acho que todos da minha geração adoravam um banho de chuva. E, de preferência, poder escorregar num morrinho de lama, brincando. As mães: meninas, vocês vão adoecer! Que nada, criança nem liga pra isso. E eu, então, não adoecia nunca.
Mas, hoje, revivi a minha saga infantil.
Choveu bastante pela manhã, mas cessou. Saí para caminhar e vi que o tempo estava se fechando de novo, mas à força da teimosia, segui. Começou uma chuva fininha, foi engrossando, engrossando, e só se viam pessoas correndo, escondendo-se debaixo das barracas, das árvores, e nos módulos da polícia.
Pensei logo na advertência: vou ficar gripada! Que é isso? Gripe é vírus, não desce pelas gotas de chuva…
Teimosa, portanto, e pensando que sou sal grosso, não derreto totalmente, nem liguei para a chuva. Cada vez mais chuva, tanto na ida como na volta.
Fazia muito tempo que não tomava uma chuva tão gostosa. Mas quase derreti…
Quando jovem, praticava corrida de madrugada e não tinha tempo ruim que me segurasse. Nos “Passos de Anchieta”, também, já tomei muitas águas do céu no corpo, nas caminhadas. Vestia uma capa de plástico, mas o vento, inclemente naqueles dias, rasgava tantas quantas eu vestia. Por fim, eu desistia e tomava todas as águas que caiam sobre mim. E eram frias. Águas de junho. E sempre foi muito bom quando chegava lá em Anchieta, vencendo aquele longo percurso a pé e sob intempéries. Belas lembranças.
Hoje, só fiquei com pena dos vendedores, cujas barracas ficaram molhadas, já que não deu tempo de tirar todas as mercadorias. Mal a chuva dava uma trégua, eles corriam para tirar o que sobrou e limpar as barracas.. E sem qualquer mágoa ou tristeza. Ainda brincavam: Uns com os outros: sua barraca foi lavada. Está limpinha…
A chuva cai, vai caindo, vez mais forte. Agora, nada mais escuto, além do barulho da água. Estou ensopada. Caminho, caminho…Nem presto atenção em mais nada.
Ufa! cheguei ao meu prédio. Tive que tirar o tênis antes de entrar e pedir ao faxineiro um pano para tentar enxugar os pés, pelo menos, porque a roupa do corpo pingava para todos os lados.
Em casa, senti a minha catarse. Parecia que toda sujeira de minha alma, do meu corpo e as tristezas do meu coração tinham sido lavadas.
Leve, leve…
Maria Francisca -3 de março de 2025.
Em visita a amigas de Infância, em cidade mineira, passeei, conheci familiares, netos, tomei milkshake, almocei, jantei, comi pizza e tudo o mais que bons anfitriões oferecem aos visitantes. Muito agradável estar entre amigos. Carinho e aconchego são atos que aquecem o coração.
Na véspera do retorno pra casa, fomos à missa dominical.
Na porta da igreja, passou por nós um senhor, falando coisas desconexas, contando umas histórias esquisitas, como se falasse com alguém ao telefone.
Como meus amigos seguiram, também segui. Passamos por ele, entramos na igreja, e tomamos nossos lugares.
O coral cantava lindamente: “Chama Viva da minha esperança”, hino do Jubileu, e eu fiquei ali concentrada na oração.
Daí a pouco, gritos, aflições, sai daqui , sai da frente etc. Todos olhando, ansiosos.
Estávamos bem no fundo do templo e não dava pra ver nada direito.
Pela voz de um dos gritos, notei que era o mesmo homem que encontramos na entrada. Infelizmente, parece que a solidariedade perdeu muitas de suas antigas virtudes, pois a preocupação que tiveram foi aumentar o som do coral para abafar o barulho. Percebi num gesto de uma moça para o coral.
Pois bem. O coral aumentou o som, cantou, cantou e a calma do templo pareceu preservada.
Daí a pouco, sai da igreja o homem, descalço, batendo os pés no chão, num gesto de desaforo, e carregando o tênis.
Ao chegar à saída, virou para o altar, levantou os braços, e bateu com as solas do tênis, com força.
Um símbolo forte… Foi rejeitado numa igreja, lugar de acolhimento. Seria isso?
E se fosse ele, o rejeitado, a “Chama Viva” que cantavam?
Está em Lucas, 10-11: “Mas quando vocês entrarem numa cidade e não forem bem recebidos, saiam pelas ruas e digam: Até a poeira dessa cidade, que se grudou em nossos pés, nós sacudimos contra vocês”.
Eu não conseguia desviar meu pensamento do dito de Jesus, naquele momento estressante. Não posso julgar o ato das pessoas que conversaram com o homem, pois não sei o que ele fazia, quando ouvi os gritos de alguns que estavam mais à frente, na igreja. Apenas registro o fato, conforme meus sentidos captaram.
À noite, só pensava naquele personagem, e no que poderia ter acontecido. Como diz Saramago (O Homem Duplicado): “Não faltam motivos para pensar que quanto mais intentemos repelir as nossas imaginações, mais elas se divertirão a procurar e atacar os pontos da armadura que consciente ou inconscientemente tínhamos deixado desguarnecidos”.
Mas no dia seguinte, sol claro, calor intenso, carinho dos amigos, tudo passou e o fato caiu no esquecimento.
Por isso, espero que, ao fim, o homem, certamente cansado…E as palavras que proferia, cansadas como ele, silenciaram; as que ouvira tornaram-se neutras, sem sentido, o mesmo ocorrendo com o acontecimento na igreja, já caindo no limbo do esquecimento.
Já que era assíduo lá, como disse minha amiga, voltaria ao templo, todos os domingos, sem se lembrar, tampouco, dos sapatos com a poeira. Tudo ficara para trás.
Tomara!
Maria Francisca – início de março de 2025.
Há pouco tempo recebi uma mensagem com um vídeo muito engraçado. Acho que do “Porta dos Fundos”. Uma mulher, no caixa de um supermercado, tenta pagar com dinheiro e não consegue. Ninguém conhecia dinheiro. Foi tamanha a confusão que parou na delegacia.
Ri bastante, mas vi que estávamos caminhando pra isso. Ninguém tem troco. Todos querem receber com pix. As lojas, os taxis, as diaristas…
Um lojista de Itapoã até me disse, rindo…Não sei como faremos com os ladrões. Não temos mais dinheiro na loja…
Eu disse: Agora, piorou, o senhor vai ser sequestrado para tirar todo dinheiro do Banco e entregar ao bandido.
Verdade. Está tudo assim. Dinheiro vivo não há.
Hoje, um grande exemplo: Até 2022 eu viajei muito de trem, indo visitar minha mãe em MG.
Então, eu guardava moedas para comprar comidinhas no trem. O atendente, quando via as moedas, tomava-as e contava-as. Rindo, como se dissesse, sou esperto, e dava-me o dinheiro em notas maiores.
Hoje, de novo no trem, uma bolsinha cheia de moedas, apresentei-a ao atendente. O que ele fez? Olhou-a com ar de desprezo, pegou a maquinha, e disse, secamente: débito ou crédito?
O que fazer? Peguei o cartão e mostrei para a maquininha maldita, antes que se armasse um barraco, e eu fosse, como a moça do vídeo, parar na delegacia.
Muito interessante foi que um senhor que estava numa cadeira do outro lado, viu minhas moedas, e depois veio falar comigo. Queria as moedas para os netinhos…Levou-as, contou-as e trouxe as notas para mim, com agradecimentos…
Dirá: Um idoso, não? Sim, um idoso conhece moedas…
Voltei à leitura de Saramago (O Homem Duplicado) e deixei a história pra lá.
Mas, daí a pouco, ainda no trem, vislumbro, mentalmente, a confusão que poderia causar: Moeda? O que é isso? A senhora. não pode pagar? Não quer pagar? Chamem o chefe do trem…Policia! Parem o trem! Há uma farsante aqui… O senhor idoso tenta me ajudar, mas é afastado pelo chefe da máquina.
Um amigo, quando reclamo de algo, diz, enfático: Mundo Novo, Francisca.
Mundo novo?
Pois sim. Mundo doido!
Maria Francisca – fevereiro de 2025.
Conversando com uma amiga sobre as brincadeiras da nossa infância, lembramo-nos de muita coisa daquela época que nos deixava intrigadas, mas ninguém sabia explicar o que era. Mistério para nós que ficou esquecido num canto da memória.
Adulta, fui encontrando, por acaso, as respostas.
Brincávamos de roda e cantávamos: Fui no Tororó, beber água e não achei (…). O que seria Tororó? Quando fui morar na Bahia foi que conheci o Dique do Tororó, lago tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Primeiro mistério desvendado. Fiquei longo tempo olhando aquele belo lago.
Outro mistério: Se caia algum cisco no nosso olho, nossa mãe nos ensinava rezar assim: Corre, corre, cavaleiro, no caminho de São Tiago; vá buscar Santa Luiza, pra tirar o cisco do meu olho. E o cisco saía. Fé? Não sei.
No final da década de 90 fui à Espanha e tive a oportunidade de visitar Santiago de Compostela, aquela bela Cidade. Passando de ônibus pela estrada, meus olhos abriram-se: Ah! O caminho de Santiago! O cavaleiro passava correndo e ia à Igreja de Santa Luzia para pedir-lhe para ser a intercessora na retirada do cisco do meu olho! Eureca!
Agora, uma gíria. Se algo era muito longe, ermo, dizia-se: Lá no Cacha- Prego! Ou, se queria xingar alguém, vá pro Cacha-Prego! A primeira vez que fomos a Salvador, até paramos o carro para tirar foto da placa, com a seta indicando a direção de Cacha-Prego. Trata-se de um vilarejo da ilha de Itaparica, Bahia, assim chamado devido a sua atividade pesqueira.
Por último, um tio que gostava muito de brincar conosco, contava a seguinte história: Quando o galo estava tentando conquistar uma galinha, ele chegava dando aquelas voltinhas perto dela e dizia. Ocê hoje está na “ponta”. Ou seja, na ponta da orelha. Uma beleza! Ela, faceira, respondia: É de bendegó!
Ríamos a valer dessa história, mesmo porque ele a contava fazendo os gestos, bem teatral.
Um dia perguntei-lhe: Tio, o que é bendegó? Ele riu e disse: Sei lá! Achei a palavra interessante e inventei a história.
O tempo passou e Bendegó só era lembrada para falarmos das histórias que o tio inventava. Ninguém procurou saber de que se tratava.
Esses dias, lendo as crônicas escolhidas de Machado de Assis (seleção, introdução e notas de John Gledson), uma surpresa: Bendegó existe. É no sertão baiano. Um meteorito de mais de cinco toneladas, caiu em Bendegó, no século XVIII, e o governo resolveu mandar transportá-lo para o Rio de Janeiro. Consta que esse fato tinha sido objeto de notícias e chacotas na imprensa havia alguns meses. Machado de Assis fala, ironicamente, sobre esse transporte nessa crônica.
O Bendegó é a maior rocha espacial já encontrada no Brasil. Em 1784, no Sertão da Bahia. Ele é um bloco de mineral de ferro e níquel, com a forma de uma grande tartaruga sem cabeça e está exposto no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, desde 1888.
“O Bendegó nunca foi apenas um aerólito fundamental para compreender fenômenos astrofísicos. É um símbolo místico do povo sertanejo, herança da grande nação Kariri que incluía os Arrecuais, Opacatiarás, Chacriabás, Pontás, Masacarás e Chocós ou Chucurus, daí o nome Bendegó que significa “vindo do céu”.” (SIQUEIRA FILHO, José A.; BOMFIM, Luciano S. V.; NETO, Hermes Novais. O Bendegó: símbolo de resiliência das coleções científicas do Brasil. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 01 nov. 2018.).
Dizem os autores, que, inclusive, defendem o retorno do Bendegó ao lugar de origem, que até hoje, pessoas letradas lhes perguntam: O que é Bendegó?
Mistérios descobertos, enigmas decifrados…
E você? Sabia o que é Bendegó?
Maria Francisca – dezembro de 2024.
Acordei cedo.
O dia muito claro, os passarinhos saíram do sério, acordaram antes do sol e resolveram me alegrar, numa terna algazarra na varanda.
Fiquei ali parada alguns minutos, ouvindo a algaravia. E o pensamento voando, como pássaros sem rumo.
Voei, voei e resolvi voltar.
Levantei-me, cuidei do café, fiz meu desjejum e fui para a academia para meus exercícios matinais, visando tirar a ferrugem dos membros, principalmente inferiores, que já brigam contra a velhice.
Lá é uma festa, sempre. Muitos se conhecem e são tantos os bons dias alegres que os exercícios ficam menos pesados.
Comecei a trabalhar os músculos e, ao sair de um aparelho, um lenço que carrego sempre, caiu no chão e alguém alertou: Olhe, caiu um papel no chão.
Uma moça forte, malhada, estruturada, como diz uma amiga, senhora de si, estava perto de onde eu estava, e disse à que alertou: é daquela senhorinha que malhava ali na extensora.
Peguei meu lenço no chão, agradeci, mas minha vontade era perguntar à moça o que significava aquele tratamento: ‘senhorinha”. Eu conhecia diversos pronomes de tratamento, mas aquele era pronome de “destratamento”.
No dicionário, não há o significado da palavra dita pela moça.
Já tratei disso numa outra crônica. Da mudança do sentido das palavras e da infantilização do idoso.
Senhorinha, hoje, é um termo comum, mas, para mim, é pejorativo. É uma forma de reduzir a importância da pessoa idosa.
Não dei qualquer resposta à moça, por covardia, medo de virar ”barraco” ,já que as pessoas vivem “armadas”, por ser uma pessoa dita gentil (que sina!), mas fiquei com uma raiva danada.
Em verdade, o meu aborrecimento, minha raiva, melhor, nem foi tanto pela palavra usada, mas pelo tom da voz que, em vez de “aquela senhorinha”, soou como “aquela coisinha”. Tom de desprezo.
Como disse Aurê Aguiar, em crônica no Jornal “A Gazeta” de 01.12.2023, vivemos a era da deselegância.
Quando saí da dita Academia, hoje, diferente do ânimo da entrada, estava reduzida a ossos de minhoca, usando um termo antigo, já que engoli a ofensa. E engolir sapo não é minha predileção, pois política não sou, nem quero ser.
Na rua, para me acalmar, procurei na mente o canto dos pássaros pela manhã, e o que diria minha mãe: “Deixe pra lá. Urro de burro não chega ao céu!” Ri sozinha, segui meu caminho, a pensar naquela algaravia da madrugada que me deixou tão feliz.
Ao chegar em casa, por incrível que pareça, tocava uma música comandada pela Alexa que eu havia esquecido ligada em músicas religiosas. Ouvi tudo e conclui, como na música final: a vida é bem mais do que o mundo ensina.
E fiquei em paz.
Maria Francisca, dezembro de 2023.
Mentiram-me.
Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente.
Mentem de corpo e alma completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente
A implosão da mentira (Affonso Romano de Sant’ana)
Eu vivo em estado flutuante.
Acolho uma coisa como verdade, daí a pouco, a verdade vira mentira. O que penso ser mentira, daí a pouco vira verdade.
Não há notícia de jornal, impresso ou virtual, em que se possa acreditar, sem a eterna pergunta: Será que é verdade? Não se pode crer sequer nos sites que pesquisam se uma notícia, um vídeo, são verdadeiros.
Hoje, estava ouvindo aquela música de Oswaldo Montenegro, A Lista. Tem uma parte da letra que diz assim: Quantas mentiras você condenava/ Quantas você teve que cometer. Sim, quem nunca mentiu?
Dirá: Exame de consciência nesta hora? Por que não?
Até as mentirinhas antigas de nossas mães e avós para se livrarem de visitas indesejáveis. Vassoura atrás da porta que, muitas vezes, causaram saia justa, quando uma criança esperta dizia: Mãe, por que aquela vassoura está atrás da porta? Até aquelas por necessidade mesmo, por caridade a uma pessoa com doença grave, ou para esconder algum pequeno erro próprio ou alheio.
Em questão processual, tem-se a falácia da verdade real. Que verdade real que nada! Existe? Fatos são fatos, e a versão dos fatos depende do olhar e da interpretação de cada um. A verdade, ali, é apenas provável. O Juiz, coitado, tem que se contentar com a prova dos autos, que ele também vê e com os olhos que tem. Muitas pessoas pensam que o juiz tem bola de cristal. Quantas vezes já ouvi: Mas era mentira! E foi uma injustiça! Como saber? Prova testemunhal, então… E se a testemunha contou mentira, uma mentira tão bem contada que pareça verdade?
A insanidade tomou conta do mundo. E, para os desajuizados, nada mais irritante que o juízo, como diz Mr. Bahu, personagem de Aldous Huxley, em “A Ilha”. E nesse caso, “No país dos insanos, o homem perfeitamente integrado não se torna rei”. Da mesma forma, mostra José Saramago, em “Ensaio sobre a Cegueira” (que já citei em crônica anterior): Em terra de cego, quem tem olho não é rei.
Quando essa insanidade não prejudica a vida de alguém, tolera-se, mas o que se tem visto é a exposição indevida de pessoas, sujando a sua honra, sua dignidade. Ou quando se mente em processos, principalmente os criminais, empurrando um inocente para a cadeia, senão para a morte.
Saber o que é verdade está difícil, cada vez mais.
Segundo a parábola, atribuída a Jean-Léon Gérôme, escultor e pintor francês, a mentira, vestida de verdade, anda por aí, sem que ninguém a intercepte. E a verdade parece ter se escondido, com vergonha da nudez, mas talvez nós é que talvez tenhamos vergonha, ou medo, da nudez da verdade.
Na “Ilustrada” de março de 2013, Inácio Araújo, numa crítica ao filme A marca da maldade, de Orson Wells, diz que, a partir da disputa entre dois personagens Quinlan x Vargas, Welles lança a questão que atravessa toda a sua obra: onde está a verdade e, aliás, o que é ela? E complementa: “O mundo se abre a partir da dúvida sistemática lançada pelo incomparável Welles”
Mas quando Jesus se apresentou diante de Pilatos, por obra e graça dos “donos” do Templo, à pergunta do Governador, se Ele era rei, a resposta foi (segundo João-18,37): “Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da verdade que vim ao mundo. Todo o que é da verdade, ouve a minha voz”. Mas Jesus não respondeu à pergunta de Pilates sobre o que era a verdade.
Hans Kelsen (O que é Justiça?) disse que, cético, o Governador não esperava a resposta.
Se Jesus tivesse dito o que era a verdade, teria mudado algo? Não sei.
Afinal, como disse o juiz-poeta Francisco Barbosa, em Veritas: Busco verdade/Mas como sabê-la se todos dizem tê-la?/ Cada uma, dentre pares, nenhuma/ Melhor, então, manter a procura.
Há mentiras e Mentiras. Umas trazem consequências funestas. E, hoje, vivemos um tempo assim.
E seguimos flutuando…
Maria Francisca – março de 2023.
Hoje, estava num sono gostoso, quando um pássaro deu um trinado tão alto na varanda do meu quarto, que acordei assustada. Era um bem-te-vi. Olhei o relógio: 5 horas.
Ah, bem-te-vi danado! Eu queria dormir mais…
Eu o escuto cantar todos os dias, por volta das 6, um pouco mais longe, no terraço, logo acima do meu apartamento.
Hoje estava diferente. Parecia aflito. Deu a impressão de que estava gritando, que era um anúncio de um perigo. Após o trinado, ou grito, outros bem-te-vis começaram a cantar e saíram todos em revoada como se fugissem de algo.
Já li em algum lugar que esse belo pássaro costuma alertar os demais sobre a presença de um predador. Mas qual é o predador dessa linda figura?
Gato doméstico é o primeiro, penso. Corujas e gaviões também costumam perseguir esses belos passarinhos.
Mas gato de rua por aqui não tenho visto. Corujas e gaviões, nem notícia.
Fiquei a pensar: o que terá acontecido?
Talvez ele seja um líder, porque todos saíram em revoada ao primeiro grito dele. Poderia não ser somente medo. Ou, então, quem sabe ele estava cortejando alguma bem-te-vi, e algum companheiro tentava passar na frente dele na conquista? Sabe-se lá.
Fiquei interessada e fui ler mais sobre esse lindo pássaro. Fala-se que ele é amistoso com outros bem-te-vis, mas com outros pássaros, nem sempre. Já se conta história de ataque a ninhos de outras aves… Uma pena, porque um pássaro tão lindo, pensa-se que é pacífico, e é a imagem que sempre passou, porque já inspirou canções. A mais conhecida é Jardim de Fantasia de Paulinho Pedra azul que eu, inclusive, já cantei num coral de que participava faz tempo.
Inspirou, também, crônicas e poemas. Cecília Meireles, por exemplo, fala, numa interessante crônica, de um bem-te-vi que uma criança chamou de gago.
Então, como pode ser capaz de atacar ninhos de outras aves?
Mas, esqueçamos essa parte, e fiquemos com a maravilha do pássaro que é um líder, já inspirou bela canção, me acorda todas as manhãs, e certa vez, me despertou de um pesadelo. Por isso dei-lhe o apelido de oásis, num poema.
Maria Francisca – setembro de 2024.
Há alguns anos, participando de uma reunião no Santuário Divino Espírito Santo, ouvi de um padre que trabalhava na Amazônia, a seguinte frase: “Quando sobra alguma coisa em algum lugar, falta a mesma coisa em outro”. E deu exemplos. Uns muito ricos (bolsos cheios) e outros muito pobres (bolsos vazios). E até com número de padres essa história se repete, porque aqui há tantos padres e, lá nos confins da Amazônia, quase nenhum. Arrematou.
Esta frase: “Quando sobra em algum lugar, falta em outro”, jamais saiu de minha mente. Porque vejo isso todos os dias.
Nesse período de carnaval, por exemplo. A gastança de dinheiro, bebidas, roupas, fantasias, e a fome de muitos. Mas o povo gosta, mesmo os que passam por situação difícil. Volta a questão: Pão e circo?
Pior, no próprio carnaval, há o lado B, como li numa reportagem de hoje, no Uol (Carnaval Salvador: ambulantes dormem na rua e ficam sem banho e comida (uol.com.br)
O carnaval deve movimentar cerca de 2 bilhões de reais e atrair mais de um milhão de turistas, dinheiro que não acaba mais e turistas se divertindo a mais não poder. Isso é bom.
O lado ruim: nos bastidores da festa, sofrimento. Os ambulantes que precisam trabalhar nessa maravilhosa festa passam por condições humilhantes.
Para garantir uma vaga no circuito Barra-Ondina, eles precisam dormir na rua, nas calçadas, sem qualquer condição de higiene, para garantir seus lugares. Há quem chegue lá dois meses antes. E ali ficam morando, antes e durante o carnaval, no maior sofrimento, para garantir o trabalho e a renda. Além da comida que precisam comprar, devem pagar sete reais para tomar banho, nos estabelecimentos próximos.
Shows caríssimos pagos por prefeituras de cidades pequenas do interior, onde falta de tudo na saúde, na educação, na infraestrutura. Um desses shows foi suspenso, recentemente, pela Justiça, numa cidade do interior da Bahia. (Justiça manda cancelar show de Gusttavo Lima na Bahia (poder360.com.br). O valor a ser pago era incompatível com o orçamento da Cultura, como consta da notícia. Apesar da judicialização da política, que muitos criticam, quem pode pôr fim a esses descalabros?
O povo gosta, vai aos shows, sem nem pensar no prejuízo para eles próprios.
Andando pelo calçadão da Praia da Costa, vejo sempre carros da polícia, parados, ligados, como prontos ao atendimento, mas isso falta nos bairros de periferia, onde vemos, todos os dias, os acontecimentos nefastos.
Outra questão que me assusta: mulheres jovens, com crianças nas ruas, ora vendendo docinhos, um disfarce para pedir. Com a criança, é como se dissesse: olhem, estou precisando para essa criança. A Prefeitura gasta tubos para colocar sinal luminoso, em ruas esburacadas, onde nem gato passa, e não cuida dessas questões. Por que não investem mais em áreas mais urgentes? O serviço social deveria estar mais atento a essas crianças que são exploradas por mães, avós, estranhos etc.
E nem estou falando dos milionários!
O excesso de um é a carência de outro!
Maria Francisca – fevereiro de 2024
“Os Passos de Anchieta” é uma caminhada de 100 km, de Vitória à Terra do Santo Anchieta. São 4 dias de estrada. Segundo seus historiadores, os andarilhos percorrem o caminho que Anchieta teria percorrido sempre a pé, da Catedral até a Cidade com seu nome.
Fui andarilha desse caminho por muitos e muitos anos. A pandemia tirou-nos muita atividade, e essa caminhada, que perdi por inércia, foi uma delas. Claro, pretendo retomar, tão logo restabeleça minha força física.
Lembro-me bem e já escrevi sobre isso – Caminhos: prosa e verso, de 2013– sob sol ou chuva, íamos nós pelas areias das praias, ora queimando os pés, ora encharcados de chuva, ora saltitando para não sermos picados por ferrões dos crustáceos ou correndo sobre a restinga, fugindo dos espinhos de arbustos.
Em alguns trechos do caminho, não era possível ir pela praia, simplesmente por não ter praia, ou por haver tanta pedra que seria impossível transitar por ali. Então, subíamos morros, passávamos em florestas, ou por ruas dos bairros.
De vez em quando, algumas casas abriam suas portas para receber os andarilhos que podiam usar sanitários, beber água, ou mesmo descansar. Ocorre que muitos desses andarilhos abusavam da hospitalidade e, depois de algum tempo, ninguém mais queria abrir as portas.
Quando alguém precisava fazer uma necessidade fisiológica, tinha que ir ao mato, mesmo, correndo risco de se ferir ou ser picado por algum inseto.
Certa vez, eu precisava ir ao banheiro, o lugar por onde passávamos era habitado, havia muitas e muitas casas e todas fechadas, como sempre, nesse nosso mundo moderno, onde o medo impera e ninguém descuida.
Entretanto, havia um grande portão, por onde vi, de longe, diversos andarilhos entrando e saindo. Quando eu estava quase chegando perto, o portão fechou-se com um estrondo e alguém gritou: Ninguém mais entra!
Cheguei perto, olhei pra todos os lados. Ninguém por ali. Devagarinho, empurrei o portão. Milagre! Abriu, silenciosamente. Entrei, olhei para todos os lados. Ao fundo do terreno, vi uma casa. Fui em sua direção.
Lá chegando, fiquei a pensar: bato à porta ou não. Bato, resolvi. Só então vi que a porta estava aberta. Outra indecisão: entro, não entro. Decidi: entro.
Entrei, e uma surpresa me aguardava. Era uma grande cozinha e uma família estava à mesa, aliás, uma bela mesa, cheia de guloseimas.
Todos me olharam assustados. Parei, olhei para todos, sorri e disse: A Paz esteja nesta casa!
A porta abriu-se para mim. Todos se levantaram e me convidaram a sentar à mesa. Agradeci e disse que precisava apenas de um copo de água e de ir ao banheiro.
Mostraram-me onde poderia usar o sanitário e, na volta, um copo de água completou a gentileza daquelas pessoas.
Agradeci e sai.
Carreguei comigo, até o fim do caminho, a leveza que senti após o cumprimento de Paz, que ainda sinto, quando me lembro daquele momento.
E, hoje, especialmente, lembro-me dessa história, por ser dia dedicado a Francisco de Assis, o Santo da Paz.
Maria Francisca – 04 de outubro de 2022.
Quando visitei a Babilônia (as ruínas), fiquei impressionada. Gente do mundo inteiro naquele lugar, tanto que muita língua ali falada não se distinguia. Parecia a Torre de Babel de que fala a Bíblia, e que alguns historiadores tratam como mito da fundação dos hebreus.
Quando nós falávamos, as pessoas olhavam como se desejassem saber qual língua estávamos falando.
A História geral estava ali.
E quando estive no Egito e visitei as pirâmides? Fiquei parada longo tempo diante daquela obra majestosa e me perguntando: como puderam construir essas pirâmides?
O Cristo Redentor, a Estátua da liberdade, e assim, maravilhas no mundo todo e o que falar do Convento da Penha, aqui no ES? No alto de um imenso penhasco. Como se construiu aquele monumento histórico? Como foi? Que ideia magnífica! E que lugar lindo!
Tudo construído pelas mãos dos homens, com muito sofrimento dos escravizados. O sistema era assim e a única possibilidade que podemos pensar é que foram eles, os escravizados, que construíram todas aquelas imensas obras, com a ideia dos entendidos daquele tempo.
Mas temos belezas naturais muito, muito mais belas…
O mar, que fica ali noite e dia, aquela beleza toda, e ninguém se importa!
Quando olho o mar, lembro-me de uma amiga, quando viu essa beleza pela primeira vez. Postou-se de joelhos, com as mãos para o alto, em louvor a Deus.
E, hoje, relendo “O livro dos abraços” de Eduardo Galeano, deparei-me com o texto “A função da Arte/1”. Só transcrevendo, para ser fiel à perfeição dos escritos.
“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para descobrir o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
– Me ajuda a olhar! “
Não me canso de admirar aquele vaivém do mar, as espumas rolando na areia, o barulho manso e tranquilo das ondas leves! Outra hora, altas ondas caindo com estrondo na praia. Perco-me na varanda, ou na beira da praia, olhando…
E as cachoeiras?
Estive em Foz do Iguaçu e fui visitar as Cataratas… Extasiada, foi a palavra que pode ser usada para minha atitude, naquele momento. Fiquei ali, parada, olhando, olhando, não queria mais sair. Quando passei para o lado da Argentina, meu Deus! Que coisa maravilhosa! Não conseguia despregar-me daquele lugar. Meus olhos eram só lágrimas, diante daquela beleza indescritível.
Qualquer cachoeira, mesmo pequena, me atrai. Quando vejo uma queda d’água, já quero ir chegando perto e enfiando a minha cabeça ali.
Agora, uma queda d’água daquelas das cataratas…
Os olhos não deram conta de apreciar as belezas. Só o coração.
Eu precisei pedir ao Pai, como o menino: “Me ajude a olhar!”
Maria Francisca – março de 2024.