VEXAME DE NOVO? UMA VEZ, CHEGA! - Maria Francisca

 7 de dezembro de 2022 

 

Relendo “Crônicas Escolhidas” de Machado de Assis, deparei-me com as “Balas de estalo’, logo no início do livro. São dez regras para uso dos que frequentam os Bondes. Uma delas fala da posição das pernas. “As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco”. Não se proíbe viajar de pernas abertas, acrescenta o cronista, mas o passageiro deve comprar dois lugares.

Pois bem, sempre que preciso comprar passagem, seja de trem ou de avião, alguém pergunta:

– Não quer cadeira no canto?

– Não, prefiro no corredor.

Esses dias, ao ver que eu comprara passagem, para ir a um evento, uma amiga me disse que muita gente, ela, inclusive, gosta de cadeira no canto, para poder desfrutar da paisagem. Eu também gosto, claro, mas, para não incomodar as pessoas que estarão no corredor, se eu precisar me levantar, desisto da janela. Podem estar dormindo, comendo…

Em verdade, o que me fez pensar assim foi um fato acontecido há anos.

Eu morava em Juiz de Fora e trabalhava em Ubá, cidades mineiras. Ia de ônibus todos os dias. Aquele tipo de ônibus que vai parando pela estrada, e onde acontecia de tudo. Todos conheciam o motorista e ele tinha a maior paciência com todos a ponto de andar um pouquinho com o ônibus, para ficar mais perto da bagagem (um enorme saco), a pedido de um passageiro.

Certa vez, uma abóbora caiu do guarda volumes interno, sobre a cabeça de uma senhora, fazendo um rombo na testa da criatura. Outra vez, uma garrafa de mel destampou-se e o mel começou a derramar-se, sem que ninguém notasse, escorrendo, sobre a roupa de um senhor, entrando nos seus sapatos etc. E eram pessoas que se encontravam no corredor do ônibus.

Eu costumava viajar no canto, porque minha viagem era completa, ou seja, o destino do ônibus era o meu, mesmo. Então, ia e voltava lendo, ou estudando, aproveitando o tempo da viagem.

Um dia, porém, eu ali no meu canto, o ônibus lotado, pessoas viajando em pé, onde não cabia mais nem um mosquito, um senhor sentou-se na beira, perto de mim, e, daí a pouco, eu estava espremida no cantinho, que nem conseguia me mexer, tanto que o homem se esparramou. Vi que não ia conseguir viajar daquele jeito, pena de chegar ao destino com a coluna torta e as pernas dormentes. Claro, ele não comprara o direito de uso de duas cadeiras, como ditara a crônica de Machado de Assis.

Então, falei: Senhor, por gentileza, pode chegar um pouquinho pra lá? Está muito apertado aqui.

Ele virou-se para mim e já senti o cheiro de bebida, pelo que até me arrependi de ter abordado o homem. Ele foi logo falando, de forma irônica, gritando:

– Ah! É madame! Quer espaço, né?  Por que não compra um ônibus só para a madame andar bem livre? Tem dinheiro, né?  Com um livro na mão, só pra parecer importante! Quer me ensinar alguma coisa? Não quero nem saber!

Falava, falava, e todos olhavam.  Fui ficando incomodada…

Eu não tinha como sair dali. Ônibus entupido de gente. Então, a única saída, foi ficar olhando pela janela, disfarçar, como se não fosse comigo. Um policial que estava no ônibus olhou-me, fez um gesto do tipo, é doido? Eu fiz aquele gesto com a mão, mostrando que sim.

O que eu poderia fazer? Um escândalo? Fazer o bêbado ser preso? Fazer as pessoas pensarem que sou maluca também?  Melhor fingir que não era comigo. E foi o que fiz.

Passaram-se alguns minutos, o homem dormiu. Tão logo o ônibus ficou mais vazio, bati no ombro dele e disse: Moço, preciso sair. Ele só resmungou, levantou-se e me deixou passar. Eu fiquei em pé, o resto da viagem.

A partir desse evento, nunca mais viajei em cadeira no canto, em qualquer meio de transporte público.

A memória do fato não perdoa. Sempre que preciso viajar e estou comprando passagem, ela pergunta:

Vai passar vexame de novo?

Maria Francisca – final de novembro de 2022.

 

 

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6 comentários


  1. Geraldo de Castro Pereira
    8 de dezembro de 2022 às 09:50

    Escritora Francisca! Bela crônica, como todas as suas outras! Meus parabéns e continue nos deleitando com seus belos escritos! Abraços fraternos!

  2. Olha eu aqui novamente lendo e deliciando das suas histórias. Como admiro sua memória E sua trajetória de vida. Só me resta parabenizar mais uma vez e agradecer pelos belos textos.


  3. Sidemberg Rodrigues
    11 de janeiro de 2023 às 12:52

    Ninguém que não tenha nascido poeta conseguiria fazer a pena deslizar lírica
    em um traço de prosa. Parabéns à nossa favorita Fada das Letras!
    Beijo carinhoso!❤️

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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