Velho pode morrer! - Maria Francisca

 28 de março de 2021 

Quem lhe disse isso?

Radio-corredor.

Ouvi essa expressão muitas vezes, significando dizer:  o fato foi ouvido, mas não confirmado. Ou seja:   uma fofoca. Como hoje não temos corredor, temos instagram, facebook, BBB etc. A fofoca virou Fake News. E haja Fake News.

Mas eu tenho, ainda, minha radio-corredor, ou melhor, minha radio-calçadão. Escuto ali cada coisa… Desde receita médica de quem não é médico, até decisões judiciais de quem não é juiz.

Esses dias, dois senhores iam caminhando, e seguiam com o seguinte diálogo, certamente iniciado antes:

­ – Ah! E velho pode morrer?

– Pode!

– Caramba!

–  Os jovens precisam trabalhar. Os velhos podem ficar em casa.

De início, achei engraçada a conversa, pelo tom leve de ambos. Percebi, depois, que falavam sobre a vacinação.  Mas eles foram para outro lado e perdi o restante do papo.

Lembrei-me de Albert Camus e seu livro “A peste”, escrito em 1947. Uma epidemia assola uma cidade, como a ocupação nazista assolara a França. A Cidade fechada, pessoas solidárias ajudavam, outras burlavam as leis, contrabandeavam bebidas e outros bens, enriqueciam à custa dos altos preços, pagavam propinas para fugir e assim a vida seguia, com sofrimentos e lágrimas.

Comecei a meditar sobre nosso tempo, as vacinas e os idosos, como escutava há pouco.  Sim, a vacina poderia ser aplicada em quem precisa trabalhar, não pode ficar em recolhimento. Seria uma questão apenas política? Distraí-me, meditando sobre aquilo, mas, vendo tanta gente sem máscara no calçadão, não pensando nos outros, como na obra de Camus, resolvi ir pela calçada do lado oposto. Afe! Tive que dar meia volta. Um senhor estava urinando num poste logo à frente.

Segui a caminhada e eis que, chegando na passarela de Itapoã, na colônia de pescadores, três senhores discutiam. Fiquei em dúvida: passo ou não passo? De repente, dois jovens saíram correndo.

Radio-calçadão? Antes fosse. Dois rapazes assaltaram um senhor,  pularam aquela cerca da passarela, na maior desenvoltura, atravessaram a avenida movimentada e fugiram pela rua lateral para o início da avenida Hugo Musso.

O homem, embasbacado, olhava para todos os lados…Polícia…Nenhum policial, dizia desconsolado.

Desanimei e retornei para casa, mais pensativa, ainda. Não chegam as doenças, a pandemia, a falta de leitos em UTI, a falta de vacinas, o roubo de vacinas, a pobreza, a fome… Não se pode mais nem caminhar no calçadão impunemente. Será que “Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela”, como no título do romance distópico de Ignácio de Loyola Brandão?

Vou fazer as minhas orações…

 

Maria Francisca – março de 2021.

 

 

COMENTE:

8 comentários

  1. Realmente, se pararmos para pensar a humanidade está perdida. Então não paremos para pensar,pois a vida é um sopro….e o que levamos é o que vivemos. Eu por exemplo levarei as várias estórias contadas por você e vários causos. Essa por exemplo. Parabéns.

    • Meu caro amigo Edson, você é esse leitor sempre presente. Muito grata por sua leitura e seus comentários gentis. Grande abraço.

  2. É minha amiga, estamos atravessando um período de guerra não declarada. Tempos sombrios. Oremos!

  3. O texto é um tobogã que permite uma viagem curta em sentido inverso… só assim se chega ao destino ileso! Delícia de crônica, Maria Franscisca, apesar da “banalidade do mal”.

    • Sim meu amigo Ricardo. O mal aí está e, pior, banalizado. Mas vamos seguindo a vida, com otimisto esperançoso!
      Obrigada pela leitura e gentileza do comentário. Grande abrço.


  4. Excelente crônica !
    28 de março de 2021 às 23:24

    E como acham que escrevi o livro “Crônicas de Camburi”? Calçadão da de tudo todo dia. Por isso chamei de a inesgotável Canburi!

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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