Vela encantada - Maria Francisca

 1 de fevereiro de 2019 

Vela Encantada
Quando o tempo está chuvoso, como hoje, céu fechado, ruas alagadas, pobres perdendo suas casas, o coração apertado, a alma passeia devagar pelos cantos da vida, levantando os fiapos dos acontecimentos, ora bons, ora ruins. Mas como sou um tipo Poliana, alimento só os bons.
Conto um deles.
Eu era professora. Já contei as agruras por que passei, com salário atrasado (era ditadura, nem reclamar podia). Então, já que dava aulas à noite, para conseguir sobreviver, trabalhava num escritório de contabilidade durante o dia.
Então, fiquei sabendo do concurso do antigo INPS, hoje INSS. Resolvi estudar. Mas sem livro? Dinheiro pra apostila, cadê? Cursinho, nem pensar. Em Português e Matemática, eu me garantia, claro. Sempre fui estudiosa e era professora… Por uns dias, uma moça que tinha a apostila foi estudar comigo. Depois, desistiu. Como eu iria estudar a legislação previdenciária, aquele novelo que eu nem sequer ouvira falar até começar a trabalhar como escriturária?
Então, caiu do céu um livro de uma senhora que trabalhava no INSS e era amiga do meu irmão. Ela soube que eu ia fazer o concurso e me deu o livro. Tenho esse tesouro guardado com o maior carinho: “Legislação de Previdência Social, de Adriano Campanhole. E traz, na primeira página, o nome da antiga dona: Maria José de Paula (Uma estrela no céu).
Estudei, estudei. No dia das provas, nervosa a mais não poder, minha irmã disse: Antes de ir, acenda uma vela e faça uma oração. Você está muito nervosa e isso pode atrapalhar você. Fiz isso e fui para a prova.
Lá, cada um contava de um curso que fizera, de livros que lera e eu ali encolhida, morrendo de medo. Tocou o sinal, fui para a sala, fiz a prova e fui embora depressa, já visando à derrota, porque tudo estava muito difícil.
Encontrei a família em polvorosa. Você quase pôs fogo na casa toda! Que irresponsabilidade! Se não fosse eu, suas roupas seriam cinza, agora. Bradou minha cunhada, mal entrei. Corri ao meu quarto e chorei. A burrice foi tanta que coloquei a vela acesa sobre um pires de plástico. A vela acabou, o fogo pegou no pires, depois na cômoda, e, efetivamente, se não tivesse ninguém em casa, nem roupa eu teria depois, porque ali estavam todos os meus pertences, nas gavetas. Um enorme buraco preto “enfeitava” a cômoda.
Depois do choro, a raiva de mim mesma. Fiz aquela prova horrível, deixei essa porcaria de vela aí, perdi a cômoda e ainda ganhei reprimenda (e, pior, reprimenda merecida). Quanto mais brigava, mais a raiva aumentava. Claro, em silêncio, no quarto.
O tempo passou, esqueci aquele incidente e segui a vida.
Uns meses depois, um telefonema maravilhoso: aprovada em primeiro lugar. Foi uma alegria tão grande que, na mesma hora, a vela brotou na minha lembrança.
A partir daí, quando a vida endurece e o coração aperta, a oração, à luz da vela encantada, clareia meus caminhos, o coração abranda e ando sem tropeços.
Maria Francisca – novembro de 2018.

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10 comentários

  1. Querida Francisca, quando estiver enxergando melhor poderei prescindir da ajuda da minha sobrinha, Giulia, para ler para mim. Por enquanto mando um beijo e peço que continue rezando pelo reestabelecimento da minha visão.
    Beijos

  2. Francisca, magistral !

    Antes de chegar ao fim desse episódio tão interessante em sua vida, já estava muito curioso sobre o resultado da vela e, certamente do concurso.

    Abraço

    Arildo

  3. Mais uma preciosidade dentre tantas que você conta com maestria. Eu até poderia dizer que em matéria de contos e causos, Rolando Boldrin perde disparado para Maria Francisca. Sem contar o estoque de histórias. Parabéns por mais essa.

  4. Mais um testemunho de fé e sucesso!
    Para mim é sempre uma gratidão saber da própria autora mais algumas páginas do livro de sua vida, já que nos bastidores mamae sempre mantém vivas essas historias!
    Abraços e até o próximo texto!

    • Pois é, Karlesso. A vida não é um conto de fadas. Há vitórias, mas antecedidas por grandes batalhas. E você sabe disso muito bem. Nossa família sempre foi lutadora. Grata pela leitura e pelo carinho. Beijos.

  5. Que história boa de fé, inocência e determinação. A poesia que brota dela a deixou ainda mais bela. Como deve ser a vida, mesmo com pivôs e vales. Parabéns Francisca por traduzi-la com mais leveza. ?
    É sempre bom revisitar lembranças de fé e superação. A fé não é tão somente crer cegamente, ela é muito mais crer com esperança, agindo, mesmo que com tropeços. Porque sabemos que somos humanos e que são exatamente estes tropeços, iluminados por nossas ações e fé, que nos fazem caminhar.

    • Grata, Simone. Como está em Hebreus, a fé é o princípio da esperança. Então, imprescindível em nossa vida. Obrigada pela leitura e pelo comentário gentil.
      Beijos.

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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