Esses dias, assistia à palestra “Educação e Empreendedorismo Social, no Teatro da UFES, e a palestrante falou de uma pergunta de um aluno: Professora, você não trabalha? Só dá aula? Ela, então, lembrou-se do significado da palavra “trabalho”, e, partir daí, prefere dizer que é só professora.Fiquei pensando nisso, mas discordando dela.
Realmente, o trabalho foi concebido, no início, como um castigo, uma dor. Vemos, no Gênesis, que, quando Deus expulsou Adão e Eva do Paraíso, disse: “[…]maldita a terra por tua causa. Tirarás dela, com trabalhos penosos, o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos e tu comerás a erva da terra. Comerás o pão com o suor do teu rosto (3, 17-19)”.
Em verdade, conforme os linguistas, a palavra trabalho tem a mesma raiz da palavra latina poena; veio no sentido de tortura, ou tripaliare, torturar com tripalium, máquina de três pontas.
E assim foi durante anos e anos. Trabalho era coisa de escravos e servos, os quais pagavam seu sustento “com o suor de seus rostos”. Trabalhavam em troca de comida que era ruim e pouca.
O tempo foi passando e o sistema foi mudando, até chegarmos ao contrato de trabalho, mas, ainda assim, penoso, sofrido, explorado. Longas horas por dia, para ao fim do mês, o trabalhador receber um salário que mal dava para alimentar-se.
Com a encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, em 1891, é que a Igreja revisitou a frase famosa “comerás o pão com o suor do teu rosto”. O Papa alertou que ‘É vergonhoso e desumano tratar os homens como mero instrumento de lucro e disse mais: Ao Estado cabe velar para que, nas relações de trabalho, não sejam lesados nem o corpo nem a alma do trabalhador, pessoa humana”. Como revela João Paulo II, a Igreja está convencida de que o trabalho constitui uma dimensão fundamental do homem sobre a terra, porque o homem, como imagem de Deus, recebeu o mandato de seu criador para dominar a terra.
É interessante como o texto da Rerum Novarum é atual. Fala sobre a proteção do trabalho dos operários, das mulheres e das crianças, das horas de trabalho, do descanso, dos trabalhos penosos, dos salários. Esses, segundo a encíclica, devem ser suficientes à manutenção do trabalhador e de sua família. Parece até que estamos lendo uma lei, em face da modernidade de tais exortações.
A conclusão é que o trabalho é a afirmação do homem como criatura. Qualquer trabalho que se realize, em dependência ou autonomia, coloca o homem como parceiro na obra da criação. Ele domina o mundo e o transforma com seu trabalho. Então, não existe trabalho que não tenha dignidade.
Entretanto, vemos, hoje, trabalhadores mutilados, doentes, porque os homens utilizam os homens como mero instrumento de lucro, ao contrário da pregação da Rerum Novarum. Aí o trabalho se torna um castigo e não um caminho para a libertação.
Muito se tem falado sobre a crise do trabalho, da sociedade salarial, do enxugamento das empresas, dos serviços públicos, do desemprego. Enfim, vemos, cada vez mais, a precarização das relações de trabalho. O trabalho informal adquire ares de modernidade. Sinônimo, por décadas, de subemprego, desemprego disfarçado e subdesenvolvimento do terceiro mundo, a informalidade deixou de ser exclusividade dos pobres, atingindo, cada vez mais, categorias médias de trabalhadores qualificados que passam a “prestadores de serviços”, consultores, assessores, terceirizados em geral e uma infinidade de variações. Essa terceirização, que cresceu como erva daninha, é uma realidade sem retorno. É a velha subcontratação com roupagem nova. E a terceirização alastrou-se, inclusive para a atividade-fim das empresas, com aval de nossas mais altas autoridades.
Então, estamos vendo o fim dos direitos? Parece que sim.
A última reforma na legislação trabalhista, realizada com a promessa de mais empregos, está se mostrando um desastre. A culpa seria da lei social, da Justiça do Trabalho, segundo constou da propaganda para que o trabalhador aceitasse a mudança. Criou-se uma farsa. Se você tiver menos direitos, você terá emprego. E todos começaram a pensar favoravelmente à reforma. Cadê os empregos? Sumiram.
Esses dias, vi um anúncio de contratação de professor. Não sei se verdade ou mentira, porque as redes sociais têm de tudo. O professor teria que registrar uma MEI para poder ser contratado. Não teria, pois, direito a férias, repouso semanal remunerado etc.
Como disse Marcelo D’Ambroso, o trabalho não é mercadoria, é um direito humano. Com efeito, o artigo 23 da Declaração Universal de Direitos humanos, que este ano faz 70 anos, deixou patente:
“Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego (…) todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social (…)”.
Agora, vivemos a era dos infoproletários. Antes, os acidentes do trabalho mutilavam o corpo e tirava muita gente do emprego. Hoje, trabalhador não pode se desligar do trabalho. Com celular, computador, o trabalhador deve estar sempre a postos. A tecnologia mutila a mente e tira do emprego, da mesma forma. Isso afeta tanto trabalhos simples, como de diretores, gerentes etc.
Vi, no Fantástico de 28/04, o depoimento de um motorista de aplicativo. Ele contou: estava tão cansado, que teve um passageiro imaginário. Assim, temos depressão, suicídios, tentativa de suicídio, síndrome do pânico e por aí vai.
É preciso que a sociedade acorde.
Na era tecnológica, ainda temos trabalho escravo, trabalho infantil, crianças fora da escola, pais e mães de família sem trabalho, fraudes e tudo o mais que afronta a dignidade do ser humano.
Penso que, no dia em todos se conscientizarem de que sem trabalho digno não há cidadania, poderemos dizer, como Thiago de Mello:
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.
Maria Francisca – 1° de maio de 2019.
Lucinete lima
3 de maio de 2019 às 07:46
Parabéns Dra Francisca!