Palavras, sempre palavras. - Maria Francisca

 14 de junho de 2020 

Tenho uma palavra na ponta da língua.

Herança de minha mãe, último tom, numa casa sempre cheia. Ora crianças, ora compadres, comadres, afilhados, parentes, todos juntos, e mais quem viesse. E a palavra se fazia ouvir de cada canto da casa. O barulho do mundo estava lá.

A palavra dava-se em brados, como se fora um profeta a alertar o povo para o fim do mundo. Poeta algum naquele meio, tampouco orador ou juiz. Mas a palavra era a arma de todos naquele ambiente alegre e ruidoso.

Se um pequeno silêncio se fazia, quem estava fora do grupo acorria, como se um acidente ocorrera. Palavra, palavra, palavra, tudo era palavra. Cantada, falada, discursada, armada ou desarmada.

Palavras escritas iam e vinham em cartas e mais cartas.

Meu pai, ao contrário, era a pausa, o intervalo de silêncio naquele vozerio sem fim. Sua palavra silenciosa era o olhar. Olhar calmo, bondoso, ou zangado, que obedecíamos como se fora um grito.

Eu amava o silêncio do meu pai. Eu queria seu silêncio, eu precisava do silêncio de meu pai, para mim. Só não conseguia alcançar seu horizonte, porque eu sentia e via tudo à altura dos meus olhos.  Por isso, herdei a palavra de minha mãe, seu tom e sua destreza no dizer. Às vezes, quero silenciar, mas a palavra sai. Não é minha, não a conduzo, ela simplesmente é a palavra.

A família tornou-se ruidosa por essa herança. Quando se juntam, é sempre festa, alegria, risadas, palavras, palavras… Tudo vira piada, sempre lembrada e relembrada por todos, passando de geração em geração.  As mesmas. Usadas, usadas, sem perder a substância.

Um conclave? Poderia pensar alguém que chegasse na hora.

Não, apenas reunião de família. Família de palavras. Nada de açoites.  Palavras leves. Carinho, apenas carinhos ruidosos.

Carinho em palavras.

 

Maria Francisca – maio de 2020.

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16 comentários

  1. Nunca nada falado ou escrito por você será só palavras…..E certamente o silêncio do seu pai faz parte das suas palavras.Belo texto. Não é nada menos esperado de você. Parabéns mais uma vez.


    • Regina Lúcia Pinto Rangel
      16 de junho de 2020 às 06:47

      Bom dia,amiga
      Belas palavras.As palavras não se perderam mas ficaram na memória da Escritora.Com tantas conversas inúteis atualmente é bem melhor recordar das rodas de conversas de antigamente. Parabéns! Bom dia sem Pandemia!

    • Obrigada, Edson. Você é um leitor fiel e dedicado. E grande amigo, claro. Obrigada. Grande abraço.

  2. Me fez lembrar minha mãe com seus dez filhos e nos finais de semana costumávamos passar o Domingo com ela. Era muito neto (28), (rsrs) choro, gritos às vezes noras brigando com a outra por causa de criança e a minha mãe sempre tranquila.
    Hoje quando nos encontramos comentamos como era possível Dona Mariquinha ficar calma com aquela bagunça, (Deus a tenha) mas era divertido.
    Abraços!

  3. Palavras, carinho, um olhar, um apertar de lábios, o silêncio, tudo comunica. Belo texto Francisca.


  4. ivete flores catta preta ramos
    14 de junho de 2020 às 21:29

    Delícia de texto,Francisca!

  5. Cara Francisca, essa história é quase da minha família. Só que lá em casa era o contrário: pai era o conversador e minha mãe do silêncio e trabalho. Grato por compartilhar seus lindos momentos. Fraterno abraço. Lino

  6. Minha querida poeta e amiga. Nesta pandemia nada melhor para preenchermos o vazio com palavras de alegria. Principalmente quando transmite muito amor. Com a palavra você nos anima, com o seu olhar, minguado em humildade e derretido em bondade, você nos acalenta. Obrigado, que Deus a abençoe!

  7. Gostei Francisca. Tem um trecho que tem um ritmo gostoso e eu o li umas três vezes, como a gente faz com as músicas que gosta…

    Bj

    • Obrigada, Ney. Você anda sumido de nosso grupo. Poeta que é, tem “obrigação” de escrever. Seus leitores exigem…Eu, em primeiro lugar.
      Bjs.

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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