Era uma festa. Com direito a banda de música na porta, além de cantores sertanejos. Cheguei a distinguir a música “Eu, a Viola e Deus”. Diversas pessoas vestidas de branco, cantavam, e todas tinham asas. Só podiam ser anjos. Fui olhando… Opa! Alguns têm rostos conhecidos. Mas não conheço anjos… Que é que estou vendo?
Abri os olhos e vi que sonhava acordada, pensando na minha mãe e como teria sido a chegada ao céu, depois da sua longa caminhada, numa vida cheia de amor.
Depois disso, tentei dormir, mas nada de sono acontecer. As histórias foram chegando devagar e tomando conta dos meus pensamentos.
Minha mãe era uma rara figura feminina. Alegre todos os dias. Muito inteligente (sem ter estudado quase nada), “pescava” no ar o que poderia estar acontecendo. Ninguém conseguia enganá-la. Nunca entendemos como ela sabia tanta coisa. E conseguia ajudar a resolver as questões que os filhos e outras pessoas lhe apresentavam
Rogério conta que, quando criança, estava com muito medo de morrer, porque soube da morte de alguns meninos de nossa rua. Não conseguia dormir à noite e falava alto com minha mãe, que o ouvia do seu quarto, pela parede, porque a casa não era forrada. Mamãe, não consigo dormir. Estou com medo de morrer. Resposta: Criança não morre. Ele: Muitos meninos morreram. Ela: Mas você não vai morrer. Como você sabe? EU GARANTO! Falou com tanta certeza, que Rogério ficou calmo e dormiu.
Conquistava a todos com sua prosa. E como tinha histórias…
Uma exímia costureira. Fazia até roupa de homem. Na festa de “Dois de Agosto”, aniversário da Cidade, ela costurava até de madrugada. E nós, quando crianças, dormíamos em esteiras perto dela. Ao sair para dormir, ela ainda tinha que ir acordando ou carregando a todos, filhos, parentes e aderentes.
Mas quero falar de suas qualidades humanas.
Nossa casa, desde a minha infância, era povoada de gente de todos os cantos, das roças daquela região. Comadres e compadres a mais não poder. Iam chegando e ficando por ali, tranquilamente, sem pedir licença. Gente pobre, gente não muito pobre… Sem distinção. Se não tinha cama, dormiam em esteiras. Almoçavam, jantavam, tomavam café, tudo muito simples, claro (era assim em nossa casa), como se morassem ali. Até doidos se hospedavam conosco. Noivas da roça iam para nossa casa para se arrumar…Nós ajudávamos com as roupas, a maquiagem. Era até divertido.
Católica, participava ativamente do Apostolado da Oração, tanto em nossa Cidade Natal como em Coronel Fabriciano.
A Capelinha São José, em frente à nossa casa, em Itambacuri, funcionava como velório, muitas vezes, principalmente de pobres. Como antigamente as pessoas eram veladas na própria casa do falecido e nas casas dos pobres mal cabiam os filhos, tantos eram, o jeito era arranjar outro local para velar o morto. Até certa hora da noite, muita gente caridosa ou curiosa ficava lá. Depois, só ela e eu, ainda criança, fazendo companhia a ela, diferentemente das crianças da minha época e idade, que tinham medo de defunto. Por isso, ela dizia que eu sempre fui corajosa.
Até na Pastoral Carcerária ela ajudava. Quando jovem, eu atuava nessa Pastoral. Ela ajudava fazer comida, nas visitas aos presos, nas festas que fazíamos no presídio.
Crescemos, vendo minha mãe ajudando a todos. Onde estivesse, sempre aparecia um pobre para ela ajudar. Ninguém saía com fome de sua casa.
Havia lá no bairro dois irmãos que trabalhavam como garis. Eles passavam na porta, ela chamava para tomar café. Sentava-se na sala, tomava café e comia pão com eles, como se fossem visitas. Já tivemos presença de um gari e esposa, numa festa de Natal da família.
Uma coisa que ela fazia que me intrigava, quando criança. Ela costurava “mortalhas” e guardava-as no armário. Para quê? É que muito pobre morria e não tinha nada adequado para vestir. Ela, então, “sacava” uma mortalha do armário e doava à família. Fazia outra, e guardava. Quando eu perguntava, ela dizia que era para quando ela morresse.
Há histórias hilárias, porque ela doava o que tinha e o que não tinha.
Uma delas. Meu pai queria vestir uma calça, procurava a tal roupa e nada de encontrar. Perguntou a ela: Sebastiana, cadê minha calça azul-escura? Ela, mais do que depressa, com outra calça na mão: Marcelino, vista esta! Meu pai: Não! Quero aquela azul… Falou, parou, olhou pra ela e disse: Garanto que você deu minha calça para alguém. Ela: Eu faço outra pra você. Ele só balançou a cabeça e disse, mansamente: Você não tem jeito, mesmo…
Um dia, estávamos reunidos em sua casa, os filhos adultos, algumas visitas, era alguma comemoração. A porta da sala sempre aberta (bairro sossegado), surge uma mulher suja, cambaleando, malcheirosa, e desaba numa poltrona, ao lado das visitas. Um silêncio caiu na sala. Minha mãe, rápida, levantou-se, chamou a mulher pra cozinha, deu-lhe comida numa vasilha pra levar pra casa e acompanhou a mulher até à porta. Respiramos, aliviados.
Na casa dela tinha uma pequena área, onde costumava receber os pobres. Um dia, um idoso estava lá com um espinho no pé. Ele não estava conseguindo andar para pedir suas esmolas, e mamãe chamou minha irmã para tirar o espinho do pé daquela criatura sofredora, porque ela tinha glaucoma e não conseguia enxergar para libertar o pobre daquele sofrimento. Geraldinha disse que olhou para aquele pé sujo e inchado e não teve coragem nem de chegar perto. Foi logo arranjando uma desculpa: Vou levá-lo à farmácia, porque tenho medo de infeccionar. Mamãe, claro, captou a desculpa esfarrapada, e, mais do que depressa, pegou a agulha e o álcool e disse: Quem sabe Deus me ajuda! E tirou o espinho do pé do idoso, que saiu agradecido. E Geraldinha, com cara de tacho, muito envergonhada, segundo ela própria comentou depois.
Quantas e quantas vezes tomou o ônibus no Bairro Amaro Lanari para ir ao Bairro de Nazaré, em Cel. Fabriciano, ajudar no asilo de idosos. Costurava para os velhinhos, ajudava nos banhos… Nada a impedia em suas andanças para outros bairros, principalmente no “Mangueira”, para cuidar de seus pobres.
Engraçada uma polêmica dela com um senhor muito mandão, que costumava tomar o mesmo ônibus que ela e suas amigas, rumo ao asilo de idosos. Esse senhor, muito prepotente, tirava quem estivesse sentado na cadeira que ele dizia ser dele, mesmo se, sentado, estivesse um idoso como ele. Minha mãe via aquilo, ficava danada da vida, e prometeu resolver a questão. Um dia, ela tomou o ônibus, a tal cadeira estava vaga e ela, mais do que depressa, sentou-se. Daí a pouco, chega o “dono” e foi logo dizendo. Sai daí, essa cadeira é minha. Não saio, cheguei primeiro, tenho direito de ficar nela. Eu uso bengala, ele disse. Ela apontou a dela pra ele: Eu também. Não está vendo? E pare de dizer que a cadeira é sua, porque não é. Todos riram e o idoso ficou sem graça.
Minhas irmãs, Geraldinha e Ducarmo, dirigiam uma creche comunitária. A felicidade de nossa mãe era conseguir arrecadar doações para essa creche. Quando as cestas básicas eram entregues às famílias atendidas, ela ficava feliz da vida. Nos dias de festa, então… Orgulhosa por suas filhas estarem à frente daquele belo trabalho. Certamente, pensava: seguem meu exemplo.
Suas andanças só reduziram, quando suas pernas já não aguentavam mais, mesmo de bengala. Ficava mais difícil sair de casa.
Não usava maquiagem, simples no vestir, mas tinha uma vaidade: o cabelo. Estava sempre bem penteada. Fez permanente diversas vezes e voltava toda contente da cabeleireira de Teófilo Otoni (quando morávamos em Itambacuri). E demorou para deixar os cabelos brancos, quando mais velha.
Geraldinha lembrou-se de outra vaidade dela. Queria furar a orelha para colocar brinco, mas ficava tirando onda. Gloriosa, dizia: Nunca vou furar minha orelha. Você furou porque sua madrinha levou-a e deu-lhe o brinco, quando ainda bebê, mas não gostei. Mas essa minha irmã entendeu que ela queria sim, e disse, um dia: A senhora quer furar a orelha? Ainda dá tempo. Ela topou, minha irmã levou-a, deu o brinco, e ela ficou feliz da vida. Passou até a usar anéis. A vaidade reacendeu.
E, já bem velhinha, como seus quase cem anos, enxergando quase nada, ainda não se deixava enganar. Eu chegava, ela perguntava: Quem está aí? Eu dizia: Sua filha preferida. A resposta: todas as minhas filhas são preferidas…
Os genros tinham uma brincadeira. Cada um dizia que era o genro mais bonito. Ela sempre respondia: Todos são bonitos.
Se eu fosse falar toda a história dessa mulher, ficaria falando, falando, ou melhor, escrevendo, escrevendo. Como ela dizia, repetindo um compadre, “se fiar no gosto, converso o dia inteiro”.
Era assim a dona Sebastiana: alegre, risonha, caridosa, contadora de histórias, sábia. Que mais? Não é preciso dizer mais nada, porque aí está a história de uma mulher forte, decidida, que soube educar os filhos com firmeza e amor.
Num poema que escrevi em 2017, dedicado a ela, nos versos finais, está:
“Nascer, florescer… morrer?
Com licença, tenho muito a fazer.
Ainda há tempo e sopra forte o vento.
Restam sementes.
Vou semear…”
Faleceu dia 3 de abril deste ano de 2022. Semeou até o fim da vida. A semeadura acabou, mas cremos na Vida Eterna, portanto, sabemos que está ao lado de Deus.
Maria Francisca – 8 de maio de 2022, Dia das Mães.
Resolvi fazer um curso de Provas digitais. O mundo é digital. Nada há nesta terra que não seja digital. Então, para conhecer melhor esse “admirável mundo novo”, resolvi estudar mais.
E estou vendo coisas do “arco da velha”, como diria minha mãe.
Conheço esses meandros faz tempo e já falei sobre isso numa crônica do ano passado, mas agora observo que nada sabia. Às vezes, fico boiando, fora de órbita, tamanha a sofisticação dessas redes. Elas nos enredam de tal forma que, inertes, pasmos, diante de tanta novidade, pensamos num labirinto sofisticado, difícil de ser vencido.
O pior é que se não nos atualizarmos, vamos morrer atropelados, como diria um antigo professor, quando falava dos novos tempos.
Então, vamos lá, aprender tudo que for possível e entrar nesse mundo louco, digital, mesmo correndo o risco de nos tornarmos apenas um robô, tal nosso engajamento nessa loucura.
Uma coisa é certa, como falou um expositor, somos, agora, leitores- navegadores. Temos baixa paciência para refletir e analisar o que lemos. Temos apenas o sentido heurístico, ou seja, procuramos o lado que nos pareça ser correto, sem pesar os dois lados da questão. Isso, no decorrer do tempo, pode afetar nossa visão da realidade. É um risco.
Pois é. Nem sabemos mais o número dos telefones de nossos amigos. Está tudo à mão. Isso não afetará nossa memória, com o passar do tempo? Não nós, que já temos uma vivência, eu, por exemplo, mas nossos netos. Diz-se que a nova geração tem QI menos elevado do que a anterior, não sei se procede, mas há pesquisas nesse sentido. Já se fala que os filhos são menos inteligentes do que seus pais.
Em verdade, nós não nos damos ao trabalho nem de telefonar para as pessoas. Falamos pelo WhatsApp, mensagens de voz que são mais rápidas, mandamos uma figurinha para agradecer, outra pra concordar, e assim, vamos levando com os antigos hieróglifos. Daqui a pouco, nem vamos mais saber ler, nem escrever.
Fabi Gomes, colunista do UOL, hoje, 22.03.2022, pergunta: “Já botou reparo naquele buraquinho ali na parede? Não, não se trata daquele reparo que demanda correção, não me refiro às obras. Tô falando de reparar no sentido de olhar demorado, se dar conta, observar atentamente.”
Para não cair nesse marasmo de ler e não saber o que estou lendo, não reparar em nada, com um olhar atento, quando deparo com aqueles vídeos que viraram uma praga, dando aulas (?) sobre determinado assunto, sempre pergunto ao remetente: quem é esse? Ou: de onde é isso? Foi filmado quando?
Muitos não gostam de minhas perguntas. Falam secamente: não sei. Recebi e repassei.
Bem. Estou a estudar, para conhecer, atualizar-me, mas com todo cuidado para não cair nesse enredo, sempre analisar o que leio, não me tornando apenas leitora-navegadora.
Faço esse esforço todo, para, ao final, quando sabem que estou fazendo esse curso, dizem: Você não para!
Uns apenas querem elogiar, mas, para outros, significa a pergunta: pra quê? Como a dizer: Você já está aposentada, quer aprender sobre provas digitais pra quê? Nem advoga… Ora, porque quero. Quero aprender, porque gosto, porque ainda estou aqui, forte e valente. E pronto.
Não chegou a hora de ficar num cantinho, como disse nestes versos de antigo poema (do livro: Sal, pimenta e ternura):
“Vou ficar velhinha,
De cabelos branquinhos,
Caladinha, no meu cantinho.
Só olhando, e sorrindo.
Todos pensarão:
Ela é bestinha…”
Maria Francisca – março de 2022.
Estou relendo “O tempo e o vento” de Érico Veríssimo.
Quando, ao pesquisar na biblioteca pessoal, encontro algo de que gostei muito, tenho esta mania: pego para ler de novo. Érico Veríssimo é mestre em me fazer reler seus livros.
Fico a imaginar como era aquele mundo ali descrito: o povo vivia num lugar tão distante do resto do mundo, sem escolas, sem nenhum povoado por perto, sem socorro médico, sem relógio nem espelho (pra quê espelho? Coisa do diabo!, dizia o velho Terra), que contava o tempo pelo vento. Vento demais, sol demais, frio demais, calor demais, florescer… E as guerras? Guerras e mais guerras, além de bandidos que matavam, pilhavam e deixavam todos mais pobres ainda. Esses pobres, muito pobres, miseráveis, não eram considerados cidadãos, viviam em bairros imundos. Claro que, nos volumes seguintes, já se falou de progresso, mas muita coisa continuou e continua igual, ainda hoje. A pobreza e a política do poder, por exemplo.
Na era do metaverso, uma realidade virtual, onde já é possível até o assédio, o toque virtual, como li hoje, num artigo, os homens continuam se matando pelo poder. Uns se matam literalmente, como nas guerras, assassinatos encomendados, controle de tráfico de droga. Outros, com palavras caluniosas, frases ofensivas nas tais redes sociais, e ainda conseguem seguidores. E a miséria humana continua em todos os lugares.
Voltando ao livro de Erico Veríssimo, observei que não lera tudo, pois o romance histórico, se é que posso denominá-lo assim, tem 3 grossos volumes e eu lera apenas os livros esparsos: Ana Terra, Um certo Capitão Rodrigo, o retrato etc.
Os dois últimos volumes trazem, além de outros fatos ficcionais, a história do médico Rodrigo Cambará, da família Terra Cambará, de Santa fé, cuja saga mistura-se com os eventos históricos do Rio Grande do Sul e do Brasil no período de 1626 a 1945.
Rodrigo foi o único daquele clã que terminou o curso superior. Era médico. Volta para sua cidade cheio de alegria e coragem. Abre seu consultório e começa a atender pacientes da periferia, como era de seu interesse, desde sempre, porque sabia da pobreza do povo, e se compadecia deles. Só que, saber de uma coisa por ouvir dizer, saber de pobreza por ler nos livros, sem nunca sentir na pele, é uma coisa completamente diferente.
“Rodrigo comovia-se até as lágrimas diante da miséria descrita em livros ou representada em quadros”, mas diante dos miseráveis que iam ao seu consultório, sentia repugnância. E achava difícil amar aquela “humanidade sofredora”, porque era feia, suja, malcheirosa. E, quando saiam do consultório, ele tratava de abrir as janelas, para entrar o ar, dava um jeito de tirar aquela roupa, tomar um banho, tamanho o asco que sentia. Isso, apesar de tratar com todo cuidado aquelas pessoas. Era uma caridade fria, uma piedade sem calor humano.
Não tive como não relacionar essa ficção sobre o Rodrigo com a história verdadeira de Jose Falero, também daquele Estado, cujo livro “Em que mundo tu vive?”, acabei de ler. Segundo sua biografia, era pobre, muito pobre. Agora, escritor requisitado. Há, nesse livro, suas experiências como trabalhador, auxiliar de construção, repositor de supermercado, como estudante da EJA e, claro, de fome. Numa das crônicas, ele diz que muita gente acha que passar fome é não ter o que jantar um dia, apenas. Ele viveu a vida de pobreza, sabe o que é a pobreza de senti-la no corpo e na alma. E conheceu a fome.
Como é sempre uma ideia chamando outra, lembrei-me do que minha mãe dizia. Éramos muito pobres, mas sempre tivemos o que comer. Então, se alguma de nós falava: Mamãe, estou com fome, ela dizia: Menina, você não sabe o que é fome! Falava isso tão brava! E completava: Você pode estar com vontade de comer e não com fome!
Ela, sim, vivia no meio daqueles pobres de minha cidade, e, muitas vezes até os trazia para dentro de nossa casa, sempre dando um jeito de oferecer comida para os famintos. Ela sabia, sim, o que era a fome, por estar ali com aquelas pessoas, e sentir empatia por eles. E não a fome que sentíamos ou a fome de um jantar. José Falero também sabia o que era fome e expôs a situação em diversas crônicas.
A história do Dr. Rodrigo Cambará passa-se no século 20, mas, neste nosso Brasil, a fome ainda impera. No ES, segundo o noticiário, 10% da população vive em extrema pobreza: nas periferias, nas ruas, bem pertinho de nós, muita gente vivendo em condições indignas, pedindo socorro.
Se você não sabe disso, vale a pergunta-título do livro de José Falero “Em que mundo tu vive?”.
Maria Francisca – Fevereiro de 2022.
Hoje li uma bela crônica do meu amigo Quixote das Gerais sobre “O silêncio mais gostoso de ouvir”.
Fui lendo e relembrando as lindas músicas que falam de silêncio, dentre elas, “O silêncio está cantando”, do Padre Zezinho (“O silêncio está cantando uma canção de amor e paz”).
E um “silêncio gostoso de ouvir” se fez sentir no mais profundo do meu ser.
Eu me despedia da Presidência do TRT. Acabara de participar da última reunião do Colégio de Presidentes, em Brasília, mas meu voo de volta pra casa seria apenas à noite.
Então, lembrei-me de despedir de Brasília com uma visita à Igreja de Dom Bosco. Já era minha intenção fazer essa visita há muito tempo. Acessara o google para ver algo sobre a Igreja (Os vitrais da igreja Dom Bosco (Brasília) | Patrimônio belga no Brasil (belgianclub.com.br). Lera, mais ou menos, o seguinte:
O Santuário Dom Bosco, construído em homenagem ao padroeiro de Brasília, São João Belchior Bosco, é uma obra de luz. Suas paredes são formadas por altas colunas que se unem no alto em arcos góticos. Os vitrais com tonalidades de azul com pontilhado branco, partem de tons claros num suave degradê, até atingirem tons mais escuros. Colunas de vitrais róseos complementam a suavidade do local. Do lado de dentro, a sensação é a de se estar sob um céu estrelado. A combinação róseo-azul cria um ambiente de mistério interior.
Pois bem. Tinha tempo, por isso, fui caminhando por aquelas ruas e praças apinhadas de gente trabalhadora, uns cortando cabelo, outros consertando roupas, gente simples, de periferia, penso, diferente daquelas pessoas elegantes que habitam os belos prédios e frequentam os shoppings, perto do hotel onde eu me hospedava.
Brasília é um poço de contradições, como já dissera numa crônica faz tempo.
Caminhei, caminhei, e cheguei à Igreja Dom Bosco. Belíssima! De tirar o fôlego. Entrei pé ante pé, como se estivesse com medo. Uma música suave tocava, não sei saindo de onde. O resto era silêncio. Um silêncio acolhedor, que me obrigou a parar no meio da nave, quieta, como se algo me tolhesse os movimentos. Fiquei ali a olhar para o belo altar, a luz azul fluía, coando raios que se encontravam distantes, nas paredes opostas. Realmente, um ar misterioso tomava conta do ambiente e a sensação era, mesmo, de estar sob um céu estrelado.
Fiquei ali por um bom tempo. Depois, caminhei devagar e fui sentar-me num dos bancos, extasiada, os olhos fixos naquela luz, minha alma sentindo o silêncio que parecia cantar, pedindo paz, como na música do Padre Zezinho.
Ninguém apareceu. E eu, agradecida por estar sozinha, sem perceber, comecei a rezar em voz alta, suavemente, para agradecer a Deus pelos dons que recebera em toda a vida. Minha voz saia entrecortada, como se eu tremesse, tamanha a emoção de estar diante do Mistério. Fiquei naquela postura longo tempo, perdida nas minhas orações, o coração alegre e agradecido, tanto, tanto, que mal observei que os tons azulados começavam a modificar-se.
Acordei daquele êxtase, quando percebi que o dia estava escurecendo e daí a pouco eu estaria num voo, de volta ao Espírito Santo. Saí apressada, ainda com aquela gostosa sensação de paz que só se desfez quando entrei no avião, em face do vozerio dentro da aeronave.
Não mais retornei a Brasília, mas uma lágrima teima em escapar quando me lembro desse meu silêncio naquela bela igreja.
Maria Francisca – Fevereiro de 2022.
POCOU, CHEFE!
– Pocou, Chefe!
– Anda, anda! Lerdeza!
– Tô procurado o que pocou, chefe, pera aí.
– Ô, Ô, anda, que bosta é essa? Vem trabalhar…
Diálogo que ouvia hoje, enquanto fazia alongamento no final da Praia da Costa, perto do antigo Clube Libanês.
Um senhor chegava com um carrinho de mão, cheio de coco, de cima do calçadão, despejava lá embaixo, na areia. Espalhavam todos. Uns “pocavam”.
Um jovem ia pegando, jogava um por um perto de uma barraca que vendia coco na praia, levantando a areia pra todo lado, na maior displicência.
Um outro senhor vinha de outro lado e gritava com o que estava jogando os cocos, falando palavrões…
Fiquei por ali, pensando nesses trabalhadores e não pude deixar de lembrar de uma dessas histórias pra ensinar a viver, como gosto de apelidar certos contos.
Um trabalhador chega em casa muito chateado, porque levou uma bronca do patrão. À primeira palavra da esposa, dá-lhe uma boa “patada”. A esposa vai fazer o jantar, o filho chega choramingando e ganha uma palmada. A criança vai para o quintal da pequena casa, chorando, o cão começa a lamber-lhe o pé, e ganha um chute.
Só não sei quem era o mais frágil na história do coco. Penso que todos.
Tive vontade de entrar na “briga” e dizer: Parem… Por que se ferirem assim? E já que todos estão no mesmo barco, por que não se ajudam mais? Mas me acovardei, nem sei por quê. Talvez por medo de “barraco”, ou para não desagradar às pessoas, como disse Falero na crônica “Passe livre”, ou como ouvi numa palestra, com medo de me mostrar out.
Sei não. Penso que eu fiquei foi a desculpar aqueles três: Num dia de sol e mar, muitas pessoas na praia… Por que não estou na praia aproveitando essa beleza? Por que eu tenho que dar duro, enquanto outros estão se deleitando?
Será que estariam pensando assim, já que agiam com tanta rudeza uns com os outros?
Quantas vezes, eu também já não pensei assim… Mas quem garante que a pessoa que está na praia está bem? Tem saúde, emprego, família? Muitos ali estão, porque não têm casa. Outros, estão em férias, doentes ou aposentados. Todos com seus motivos.
Ter um trabalho, é ter dignidade. Além disso, com tanto desemprego… Quem tem trabalho, deveria pôr as mãos pro céu. Por isso, esses trabalhadores que ouvi hoje deveriam estar bem consigo mesmos e com os outros. Mas cada pessoa é uma pessoa. Uns atrelam o trabalho a uma bênção, outros a uma missão, outros a uma sina, outros, ainda, a um castigo.
E quem encara o trabalho como sina ou castigo não tem como estar feliz, mesmo.
Voltei para casa desanimada.
Eu pensei que a pandemia iria melhorar as pessoas, mas qual! Acho que pioramos nossos relacionamentos. Aliás, não pioramos, estamos iguais. Só que muitos perderam a vergonha e fazem o que querem à vista de todos, e nas tais redes sociais.
Estou me transformando numa pessimista chata…Afe!
Maria Francisca – Fevereiro de 2022.
Esses dias, li uma crônica da Martha Medeiros (“Quem está ‘on’”?). Ela fala sobre a cultura do já, do agora. Antes, liam-se livros, depois, pequenos textos. Agora, nada mais. As frases são lidas pela metade e são esquecidas rapidamente e, em seguida, vêm perguntas para o que já foi explicado à exaustão, a exemplo de uma postagem com sua foto no instagran, tomando vacina e, na legenda, informando que se tratava da terceira dose. Mas, mesmo assim, vieram perguntas. E a terceira dose? Quando vai tomar? Estamos nos comunicando miseravelmente, diz.
Tem razão. As pessoas querem ver fotos, curtir rápido, sem nem ver direito de que se trata e pronto.
E a escrita também está ruim. Quem não lê, não escreve. No Natal, por exemplo, raras as mensagens escritas. Quase todas que recebi foram de figurinhas, de repasse. Muita gente manda tanta mensagem desse tipo, que nem sabe para quem está enviando. Uma dessas pessoas, por exemplo, quando eu respondi, mandou uma mensagem de voz, demonstrando surpresa. Disse que há muito tempo não falava comigo e agradeceu a mensagem. Nem viu que eu estava retribuindo. Achei engraçado e fiquei quieta.
As abreviaturas de palavras nas redes sociais são interessantes. Às vezes, nem sei traduzi-las. Se eu já era ruim em siglas, imagine abreviar as palavras. Algumas já aprendi, de tanto ler as mensagens dos netos.
Conversando com um colega mais ou menos da minha idade, lembramos das letras de algumas músicas que têm frases erradas, o que não ocorria, antes, nem nas propagandas. De lembrança em lembrança, chegamos àquelas propagandas mais antigas, ouvidas nos bondes, nos rádios etc.
Fiquei curiosa com essas lembranças e fui pesquisar. No Jornal Opção, encontrei uma reportagem de Hélio Rocha, falando o seguinte: “Nos tempos remotos da propaganda no Brasil, ela era às vezes meio ingênua, mas nunca vinha com erros”. E cita os seguintes versos que eram circulados nos bondes: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem a seu lado. /E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite. /Salvou-o o Rhum Creosotado”
Realmente era um outro tempo. Um tempo mais calmo, sem rede social, sem tanta exigência do consumismo, sem telefone celular. Entrava-se num bonde, como disse o colega e, vagarosamente, caminhava-se pelas ruas, sem muito trânsito, até o destino. Fiquei a imaginar como seria isso naquele tempo e, mais ainda, hoje. Alguém teria paciência para ouvir propaganda?
Queremos voltar a esse tempo? Você perguntaria. Não, claro. A tecnologia, a rede social, vêm a serviço do homem. O problema é o homem ficar a serviço da tecnologia: o dia inteiro no instagran, no facebook, no spotify, em qualquer lugar: na rua, na escola, na mesa do almoço ou jantar. Essa “necessidade” de fazer tudo ao mesmo tempo mina nossa atenção e salve-se quem puder, de tanto erro e trapalhadas.
Muitas vezes, estamos tão atarefados, ou mesmo apressados, fazendo uma coisa e pensando em outra, que fica tudo como se uma tecla tivesse sido digitada e as ações entraram no sistema automático.
Martha Medeiros disse que não é a pressa, é falta de foco. Para mim, é a pressa, a falta de apreço ao outro, e aflição para acessar tudo ao mesmo tempo, o que, sem dúvida, prejudica o foco. Por vezes, estou nesse mesmo barco, tentando dele sair, fugir.
Então, que tal aproveitar esse período de festas e dar uma pausa, como nestes versos da música de Vicka:
“Será que existe cura pra toda essa loucura? (…) Talvez seja hora pra pensar Nem tudo se pode controlar (…) Calma, o mundo precisa de pausa”.
Maria Francisca – Final de dezembro de 2021.
Maria Francisca – Final de dezembro de 2021.
Depois de “longo e tenebroso” recolhimento, resolvi ir a São Paulo, para o aniversário de um neto. Alegre e contente, levantei-me antes do cantar do galo, porque o voo estava marcado para 5h10 da matina. E, como se sabe, mesmo com o check-in antecipado, despacho de bagagens, fila, revista etc tomam muito tempo, antes do embarque.
Mal entrei no aeroporto de Vitória, ouvi pelo alto-falante:
– A pandemia ainda não acabou. Use máscara! Não aglomere! Colabore!
Vou andando e ouvindo esses alertas. Entretanto, nas lanchonetes lotadas, todos sem máscara, conversando…
Entro na fila para a revista da bagagem. Tiro as botas, coloco no cesto, tiro relógio, bolsa, tudo ali para passar no raio x. Opa! Algo não deu certo. A moça me chama e diz: A senhora tem um guarda-chuva dentro da bolsa. Pode abri-la, por favor? Lá vou eu procurar o tal guarda-chuva que nem me lembrava de estar ali. Revirei tudo e encontrei uma sombrinhazinha de nada. Abri. Nada dentro. OK, obrigada, disse a moça.
Essa história de revista é uma piada. Eu sempre sou revistada. Por isso, já chego tirando os sapatos e colocando na cesta. Mas nem sempre basta. Tanto que viajo com calça comprida sem zíper, blusa sem botão etc. Mas ainda assim, acontece algo e tenho que ser revistada. Um dia, de tanto procurar o que apitava na minha roupa, exasperada, disse: se quiser, tiro a roupa aqui. Puxa vida, sou alguma bandida? Estão procurando alguém parecido comigo? A moça ficou assustada e me deixou em paz. Saí dali a pensar se não estariam a revisitar a teoria de Lombroso (estrutura do cérebro assim, assado…). Vá entender.
Interessante que passam tantos bandidos, drogas etc. Estamos sempre vendo essas notícias na TV. E o problema sou eu.
Bem. Entro no avião, vejo que as fileiras estão todas cheias. Nem sequer uma cadeira vazia. Eles também não têm que cuidar dos passageiros? Eu tenho que evitar aglomeração? Como evito, se eles que determinam o lugar das cadeiras? Por que podemos ficar juntinhos no avião? Ali dentro, a pandemia acabou? Se acabou, por que preciso de máscara?
Vejo muita hipocrisia nessa história. Não servem nem um café por causa da pandemia, mas posso ficar ali, juntinho das pessoas? Por sinal, a moça que estava no canto da minha fileira estava tomando um suco que não acabava mais. Sem máscara, óbvio
Na saída do avião, “não aglomere”!
Sai todo mundo correndo, no aeroporto aquela confusão de gente…
Hipocrisia é pouco!
Maria Francisca – novembro de 2021.
Você veio para ser servido?
Assistindo à Série “Crown”, fiquei a imaginar a vida daquela família. Um mundo à parte, em que tudo lhes chega com facilidade, sem qualquer esforço. Um batalhão de empregados servindo às majestades e elas recebendo reverências por onde andam ou mesmo em casa, pelos empregados e visitantes.
É o que transparece daquelas cenas.
Muita gente acha bonito ser servido. Esperar sempre alguém para atendê-lo, até em atividades corriqueiras, como abrir uma porta. Talvez por pensar que servir significa ser servil, inferior. Não. Quem serve é uma pessoa solidária, educada e gentil.
Alguns dias antes do início da pandemia, eu estava na Academia de ginástica, lá com meus pesos e minha preguiça de sempre, quando vi uma senhora caminhando com dois enormes pesos à perna.
Perguntei: Precisa de ajuda? Ela, em tom aborrecido: Chamo, chamo, a professora não aparece. Preciso tirar esses pesos. Eu abaixei e tirei os pesos da perda dela. Ela nem olhou pra mim e foi saindo. Livre, leve e solta, sentou-se numa bicicleta ergométrica, começou a pedalar na maior desenvoltura.
No primeiro momento, imaginei que ela não pudesse abaixar-se. Depois, foi servida como queria, e nem um agradecimento dirigiu a mim.
Eu fiquei pensando o que espera da vida uma pessoa desse tipo.
E isso começa cedo, com a educação. Se os pais são sempre servidos, claro, os filhos vão seguindo o exemplo. E nem agradecem como se tivessem nascido com uma estrela na testa.
Há homens, por exemplo, que se sentam em frente à televisão e vão pedindo tudo à esposa. Traga um café, traga um copo etc. Às vezes, depois de um dia de trabalho, ambos chegam em casa. O homem está cansado. A mulher nunca está? Machismo? Pode ser.
No trabalho, tem sempre algum folgado. Espera que o colega, a colega, faça o que esse folgado deveria fazer. As menores coisas, como lavar uma xícara para tomar café, um copo de água etc.
A vida exige serviço a outrem. O próprio poder do Juiz é para servir. É um poder-dever. Seu poder é apenas para servir à comunidade onde atua. Sem o poder, ele não pode exercer sua função. Ele não é o Poder. Está apenas investido dele, enquanto exerce o múnus.
Em questão de servir, vale lembrar o exemplo de Jesus: “O próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir (…)” (Marcos 10.45). É o serviço do Cristão. Promover a vida, auxiliar na construção de um mundo melhor.
Ser útil, entretanto, prescinde de religião, espiritualidade, crença, mas educação, gentileza. Viver é conviver. A vida fica melhor quando todos são gentis.
Mas se não quiser servir, pelo menos não faça de outra pessoa seu servidor. Você não veio para ser servido, foi?
Maria Francisca – fevereiro de 2021.
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“Quando me caía nas mãos uma obra ordinária, ficava contentíssimo: – Ora, muito bem. Isto é tão ruim que eu, com trabalho, poderia fazer coisa igual.
Os livros idiotas animam a gente. Se não fossem eles, nem sei quem se atreveria a começar”, dizia o personagem Luís da Silva, de Graciliano Ramos, em “Angústia”, livro que, segundo consta, escrevera na prisão, em 1936.
Luís escrevia e escrevia. Vendia contos e poemas, como um ghost writer, para sobreviver, já que, funcionário público, ganhava muito pouco. Lia, lia muito, e se vangloriava. Quando alguém perguntava sobre um livro que não lera, dizia: muito ruim.
Li esse trecho e ri sozinha, porque foi assim que comecei a publicar os meus escritos.
Eu escrevia há muito tempo, mas não tinha coragem de publicar e, muitas vezes, jogava fora. Um dia, andando pelas ruas de Belo Horizonte, entrei, por acaso, em uma livraria e dei de cara com um livro de poemas e crônicas de um famoso apresentador de TV. Em casa, fui ler o tal livro. Ruim, a mais não poder.
Então, pensei: Eu também posso!
Mas após meditar sobre esse trecho de Angústia, pensei: quem sabe estou incentivando outros escritores, com minha pobreza literária e minha coragem (ou temeridade) de publicar meus poemas e crônicas?
Pode ser isto: leem meus escritos e, da mesma forma que aconteceu comigo e registrado pelo personagem de Graciliano Ramos, a pessoa pense: também posso, e passe a publicar seus trabalhos.
De vez em quando, alguém me pede para ler algo que escrevera. Se eu elogio, tudo bem, mas se faço alguma consideração do tipo: você pode escrever assim e assado, ou, seria melhor se colocasse desse jeito, essa pessoa nunca mais me traz nada para ler. Todos só queremos elogios. É da nossa natureza.
Alguns escritores principiantes seguiram minhas sugestões e até publicaram livros excelentes. Muito, mas muito melhores do que os meus. E eu fiquei muito orgulhosa do trabalho deles.
Eu também caí nessa armadilha de querer só elogio. Seguindo o exemplo de um colega escritor, arranjei um leitor-beta. A questão foi que ele nunca gostava de nada que lia. Então, deduzi que não valia a pena. Será que era tão ruim assim, tudo? Desanimei e fiquei um tempão sem escrever nada.
E quando participo de concursos literários e meu trabalho nunca é escolhido? Já aconteceu muitas vezes. E não era nenhum prêmio Jabuti. Aí, sim, o desânimo bate. Não participo de mais nenhum, prometo, e penso não escrever mais nada… Pura vaidade!
Entretanto, depois do episódio da aula de pintura que abandonei por causa de uma crítica áspera, que já virou crônica, não quis repetir a decisão de desistir do que gostava de fazer, mesmo sabendo das dificuldades. E prometi a mim mesma nunca mais fazê-lo. Labirintos são, mesmo, para desanimar.
Passado algum tempo, recomecei. Aprendi que teria que conviver com todo tipo de leitor, se eu quisesse sobreviver. Uns gostam, outros não, uns muitos, outros quase nada, outros sentem-se ofendidos…Segui, entretanto, escrevendo minhas historinhas e meus poemetos. E, de vez em quando, tomando uma pancada nos concursos literários.
Li, há pouco tempo, uma entrevista do Vinícius de Morais (In “Escritores do Brasil, n.10). Ele disse que ficou muito vaidoso quando publicou o primeiro livro, foi muito elogiado e premiado, mas alguns críticos o colocaram direitinho em seu lugar. Disse mais: não gostava de nada do que lia ultimamente. Tudo estava muito ruim.
Então, vejamos, mesmo de escritores famosos lemos coisas boas e não tão boas, segundo nossa visão, às vezes até no mesmo livro, como num caso de um superpremiado, cujos contos são, na maioria, ruins para meu gosto.
Vargas Llosa disse, na apresentação do livro A linguagem da paixão: “Não festejo nem lamento essas críticas aos meus artigos: eu as considero como provas da independência e da liberdade com que os escrevo.” Só que, mesmo dizendo-se independente, fez questão de desclassificar os opositores, numa clara demonstração do ensinamento de Shopenhauer, de “Como vencer um debate sem ter razão”.
Além disso, muitas vezes, nós mesmos achamos péssimo o que escrevemos e temos vontade de deletar tudo, mas nem sempre é possível. E se vem a crítica severa, somos obrigados a aceitar.
Afinal, se nem Vargas Llosa se livra de críticas. Eu que vou me livrar?
Então, vou costurando minhas palavras. Se elogiam, alegro-me. Se criticam, entristeço-me, para, em seguida, enfrentar o labirinto…
Maria Francisca – setembro de 2021.
Esses dias, lavava um casaco de frio do meu marido (sim, eu também tenho meus momentos de prendas domésticas), cujas listras brancas das mangas estavam encardidas. Esfreguei, esfreguei, e nada de sair. Fiquei ali batalhando com aquelas manchas até conseguir, porque sou persistente e teimosa a mais não poder.
Enquanto esfregava, comecei a pensar na dureza da vida de muitas mulheres. De um tempo ou de cidade sem energia elétrica, sem máquina de lavar roupa, ferro elétrico ou qualquer outro equipamento para ajudar nas tarefas domésticas, que cabiam a elas, só a elas.
A vida moderna trouxe algumas facilidades, apesar de trazer muitas dificuldades de outra ordem, mas isso é outra história. Hoje, ninguém se priva de uma máquina de lavar roupa ou, ao menos de um tanquinho. Quem não tem um ferro elétrico? E muitos têm até robô para limpar a casa. Claro, é tudo muito caro. Então, é sempre a vez dos mais iguais.
A tecnologia, a internet, trouxeram muita coisa boa. E coisa ruim, também. Umberto Eco teria dito que, embora valioso instrumento, a internet teria dado voz a muitos imbecis. Nada é perfeito, claro. Um celular, ai, ai, ai. Todos são “obrigados” a ter. Quem não tem sofre, porque não pode postar fotos no instagran, no story do facebook, no whatsapp, e por aí vai.
Imagine esse tempo de pandemia sem a rede social! As aulas virtuais, alunos e professores nessa lida pela internet. No período de lockdown foi o que salvou a todos para os contatos, os vídeos… Ninguém podia ver ninguém. Tudo virtual. E ainda estamos aguardando esse tormento passar.
E se houvesse um apagão? Como ficaríamos? Sem luz elétrica, sem tv, sem internet, sem celular… Foi do que tratou Don Delillo no livro “O silêncio”. As pessoas que, antes, até esbarravam nas outras, porque nem olhavam para frente na rua, distraídas com os celulares, agora, andavam a esmo, perdidas, sem rumo, mergulhadas na correnteza de gente.
Imaginemos esse silêncio de que fala Dom Delillo neste tempo de pandemia. Lá, como aqui, aliás, no mundo inteiro, o desenvolvimento humano não acompanhou o da tecnologia que está anos luz da nossa vã filosofia. Não saberíamos lidar com isso. O caos se instalaria. Restaria um vazio total e, por que não, o fim do mundo!
Sempre amei silêncios, pausas, como na música. Gosto de lugares tranquilos, praias, montanhas. Nada melhor para repor as energias, retornar para casa com o coração leve, como se a vida recomeçasse daquele ponto. Um silêncio que conduz à paz na alma e no coração. Não esse silêncio vazio, de andar a esmo, solto pela rua, e, ainda, por ser obrigado, já que nada é mais possível.
Seria como a catástrofe narrada por Saramago em “Ensaio sobre a Cegueira”?
Felizmente, estamos em paz. A guerra da pandemia está passando e, breve, poderemos respirar, aliviados. E o silêncio, o silêncio suave, da pausa, poderá ser comemorado à altura do bem que faz a todos os corações.
Maria Francisca – Setembro de 2021.