A chuva dominou os assuntos e as reportagens nos últimos dez dias. Muita gente precisando de ajuda, uns correndo para ajudar, outros se enfurnando em casa para fugir, e outros, ainda, aproveitando-se da desgraça alheia. Sempre temos gente de todo tipo, em qualquer ocasião.
Triste, muito triste, é saber que muitas pessoas, depois de muita luta para conseguir montar sua casa, por mais simples que fosse, ficaram sem nada, porque a água não deu trégua. Ainda bem que ainda temos cristãos, no sentido amplo da palavra.
Pensando nessa chuvarada, imaginei o dilúvio de que fala o “Genesis”. “As águas subiram cada vez mais sobre a terra, até cobrirem as montanhas mais altas que há debaixo do céu (…) Morreu tudo que tinha sopro de vida…” Segundo o texto bíblico, o dilúvio durou 150 dias. Quando tudo acabou, Deus disse: “Enquanto durar a terra, jamais faltarão semeadura e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite”.
Noé, então, saiu da Arca, pisou em terra firme, abençoado por Deus! E com o arco-íris, que marcou a esperança, segundo o texto bíblico!
E Noé foi logo tratando de plantar sua vinha, cuidar da vida.
Voltando ao “hoje”, depois de dias e mais dias chuvosos, sem ver o sol, ele, o Rei, brilhava tanto que a vontade era sair correndo e aproveitar essa beleza de céu, sol e mar.
Quem conseguiu voltar pra casa, depois dessa chuvarada deve estar muito feliz.
Eu vi, por obra de minha caminhada matinal, a alegria dos donos de barracas que vendem de tudo no calçadão. Arrumando as mercadorias, esperando os fregueses e torcendo para o sol continuar, para que pudessem ganhar o pão de cada dia, naquela luta diária.
E eu, à medida que caminhava, sentia como se tivesse encontrado uma grande amiga que não via há muito tempo. Sorria, sorria, e quem me visse assim diria que viu uma doida, rindo para as paredes, aliás, para o vento.
E prometi que hoje nada iria me perturbar. Os mal-educados, eu nem iria ver. Os cachorros atrapalhando o caminho, da mesma forma. Pessoas brigando, falando lorotas, nem prestaria atenção.
Mas esse último propósito não vingou por muito tempo. Como teria dito José de Alencar, o cronista é como o colibri, esvoaçando de caule em caule. “Tudo lhe pertence, até mesmo a política”.
Então, já estava olhando para todos os lados, e escutando juízes, críticos literários, advogados, especialistas em política, todos com “muita sabedoria”, dando lições.
Mas nada disso me incomodou, tamanha minha alegria.
Um homem passou como um relâmpago, num skate de duas rodas, um enorme cachorro corria à sua frente, puxando-o. Na pista de ciclista. Fiquei ali olhando aquela beleza e, ao mesmo tempo, imaginando o perigo a que se submetia o homem e os ciclistas.
Daí a pouco, ouvi a notícia da chuva em Belo Horizonte, que estava deixando os moradores sem energia, derrubando árvores, causando alagamentos, enchentes e confusão no trânsito.
Nada é perfeito. Minha alegria esgarçou-se, para, em seguida, encontrar uma linda criança que me sorriu.
Foi como se eu tivesse visto um arco-íris.
Maria Francisca – dezembro de 2022.
Houve um menino e uma estrela
A estrela era o Menino
E o Menino era a estrela.
A estrela iluminava os caminhos
Para chegar ao Menino.
E o Menino dava luz à estrela
Para iluminar os caminhos
O Menino cresceu sendo estrela
A Estrela foi além.
Revolucionou o mundo
Com suas ideias e palavras.
Disse verdades, balançou estruturas
E sacudiu a história.
Arrastou multidões,
Revoltou-se com a miséria,
Com a doença, com a hipocrisia.
Denunciou, amou, sofreu.
Foi crucificado, morto e sepultado.
Mas ressuscitou como prometeu
E aí, está, entre nós, dentro de nós
Na nossa casa, no nosso trabalho
Se O quisermos receber,
Com o coração aberto,
Liberto das tristezas da vida,
Para alegrarmo-nos na paz
Que só Ele traz.
Maria Francisca – dezembro de 2018.
Relendo “Crônicas Escolhidas” de Machado de Assis, deparei-me com as “Balas de estalo’, logo no início do livro. São dez regras para uso dos que frequentam os Bondes. Uma delas fala da posição das pernas. “As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco”. Não se proíbe viajar de pernas abertas, acrescenta o cronista, mas o passageiro deve comprar dois lugares.
Pois bem, sempre que preciso comprar passagem, seja de trem ou de avião, alguém pergunta:
– Não quer cadeira no canto?
– Não, prefiro no corredor.
Esses dias, ao ver que eu comprara passagem, para ir a um evento, uma amiga me disse que muita gente, ela, inclusive, gosta de cadeira no canto, para poder desfrutar da paisagem. Eu também gosto, claro, mas, para não incomodar as pessoas que estarão no corredor, se eu precisar me levantar, desisto da janela. Podem estar dormindo, comendo…
Em verdade, o que me fez pensar assim foi um fato acontecido há anos.
Eu morava em Juiz de Fora e trabalhava em Ubá, cidades mineiras. Ia de ônibus todos os dias. Aquele tipo de ônibus que vai parando pela estrada, e onde acontecia de tudo. Todos conheciam o motorista e ele tinha a maior paciência com todos a ponto de andar um pouquinho com o ônibus, para ficar mais perto da bagagem (um enorme saco), a pedido de um passageiro.
Certa vez, uma abóbora caiu do guarda volumes interno, sobre a cabeça de uma senhora, fazendo um rombo na testa da criatura. Outra vez, uma garrafa de mel destampou-se e o mel começou a derramar-se, sem que ninguém notasse, escorrendo, sobre a roupa de um senhor, entrando nos seus sapatos etc. E eram pessoas que se encontravam no corredor do ônibus.
Eu costumava viajar no canto, porque minha viagem era completa, ou seja, o destino do ônibus era o meu, mesmo. Então, ia e voltava lendo, ou estudando, aproveitando o tempo da viagem.
Um dia, porém, eu ali no meu canto, o ônibus lotado, pessoas viajando em pé, onde não cabia mais nem um mosquito, um senhor sentou-se na beira, perto de mim, e, daí a pouco, eu estava espremida no cantinho, que nem conseguia me mexer, tanto que o homem se esparramou. Vi que não ia conseguir viajar daquele jeito, pena de chegar ao destino com a coluna torta e as pernas dormentes. Claro, ele não comprara o direito de uso de duas cadeiras, como ditara a crônica de Machado de Assis.
Então, falei: Senhor, por gentileza, pode chegar um pouquinho pra lá? Está muito apertado aqui.
Ele virou-se para mim e já senti o cheiro de bebida, pelo que até me arrependi de ter abordado o homem. Ele foi logo falando, de forma irônica, gritando:
– Ah! É madame! Quer espaço, né? Por que não compra um ônibus só para a madame andar bem livre? Tem dinheiro, né? Com um livro na mão, só pra parecer importante! Quer me ensinar alguma coisa? Não quero nem saber!
Falava, falava, e todos olhavam. Fui ficando incomodada…
Eu não tinha como sair dali. Ônibus entupido de gente. Então, a única saída, foi ficar olhando pela janela, disfarçar, como se não fosse comigo. Um policial que estava no ônibus olhou-me, fez um gesto do tipo, é doido? Eu fiz aquele gesto com a mão, mostrando que sim.
O que eu poderia fazer? Um escândalo? Fazer o bêbado ser preso? Fazer as pessoas pensarem que sou maluca também? Melhor fingir que não era comigo. E foi o que fiz.
Passaram-se alguns minutos, o homem dormiu. Tão logo o ônibus ficou mais vazio, bati no ombro dele e disse: Moço, preciso sair. Ele só resmungou, levantou-se e me deixou passar. Eu fiquei em pé, o resto da viagem.
A partir desse evento, nunca mais viajei em cadeira no canto, em qualquer meio de transporte público.
A memória do fato não perdoa. Sempre que preciso viajar e estou comprando passagem, ela pergunta:
– Vai passar vexame de novo?
Maria Francisca – final de novembro de 2022.
Ontem, li uma crônica do Ruy Castro sobre as palavras novas, substitutas de antigas, e a mudança do sentido de outras.
Então, já alerta por essas mudanças, fiquei em dúvida sobre esse título. Será que ainda existe a palavra pasmaceira?
Existindo ou não, é isto que sinto aqui no trem da Vale, depois de longo tempo sem viajar: pasmaceira.
É ruim, mas é bom, como dizia uma humorista faz tempo. Pode isso?
Pode. Não escuto conversa alguma, a não ser os anúncios do próprio trem. Era muito mais divertida aquela barulheira. Papos e mais papos e eu só bisbilhotando. E, depois, tome crônica…
Mas é bom, porque vejo que, diferente dos aviões, o trem cuida do distanciamento. Não fica somente no discurso, com aquela velha hipocrisia.
As cadeiras são marcadas, distantes, as bagagens reduzidas e gratuitas.
Então, fiquemos na pasmaceira, que, apesar de ajudar pouco nas minhas “belas” crônicas, cuida de mim, das pessoas que estão em viagem.
Como eu disse que a barulheira era mais divertida, ganhei um “presente” na viagem seguinte: Três famílias com nove crianças entre três e oito anos. Gritos, pulos, choro…Em pé, em cima das cadeiras, saltando de uma poltrona pra outra. Os pais? No maior cochilo. No estilo “não é comigo”. Só que daí a pouco apareceu o fiscal e disse: quem é o responsável por essas crianças? Um dorminhoco abriu os olhos e, mal o fiscal saiu, continuou tudo igual. O incrível foi uma criança, na hora do lanche, resolveu limpar a mão na minha calça.
Num determinado momento, dois meninos começaram a trocar tapas. Aí, sim, o pai do agressor acordou e “enquadrou” a criança…
Voltando às palavras antigas, converso, vez ou outra, com um amigo da minha idade. Rimos muito das palavras que ambos falamos e nos perguntando: Ainda existe?
Uma professora me falou sobre as gírias novas dos adolescentes. Em vez de falarem que fizeram algo, dizem: Fui lá e pá. Achei engraçado. As palavras caem de moda, as gírias caem de moda, e aparecem outras. Os professores têm que aprender até as novas gírias, para lidar bem com seus alunos.
Então, já alerta para essas mudanças, fiquei em dúvida. Será que ainda existe a palavra “pasmaceira”?
No mais, um tédio? Não. A palavra certa para mim é pasmaceira.
Em casa, primeira coisa: ainda existe a palavra? Nos dicionários, está. No Houaiss, consta: marasmo, pasmo, imbecil, embasbacamento. No dicionário, há a palavra. E a moda? Tem-se que seguir a moda, ora.
O detalhe é o seguinte: perguntei ao meu neto de 17 anos. E a um amigo de 45. O neto disse que não sabia o que era. O amigo disse que achava que significava vergonheira…
Em suma: a palavra pasmaceira caiu, mesmo, de moda.
Mal cheguei ao térreo do prédio onde morro, dia seguinte ao retorno da viagem, o porteiro veio me dizer que a filha, que estuda numa escola que visitei dias antes, perguntou se eu era uma senhorinha assim, tal etc.
Senhorinha? Que palavra é essa? Seria uma senhora pequena? Mas, não, ela queria dizer uma senhora idosa, como sempre tenho ouvido falarem.
Não é que esses dias um amigo me chamou assim? Contei pra ele que subi o morro do convento num domingo desses, como sempre faço e ele me disse: Nossa! Uma senhorinha subindo o morro do convento? Forte, hein?
Sabe o que respondi pra ele? Se você estiver perto de mim e falar essa palavra, dou-lhe um tabefe! Ele riu e disse: Não falo mais. Sou bobo?
Cada dia esse povo inventa uma expressão para os idosos. Ora é melhor idade, ora é terceira idade, agora senhorinha? Eu hein? Piora a cada dia? É sempre aquele famoso diminutivo para infantilizar o velho?
Prefiro a palavra idosa, como está na lei. Como disse Boff: a partir dos 60, somos oficialmente idosos. A lei não nos chama de senhorinha, nem de melhor idade, nem outra coisa qualquer.
Em suma: a palavra pasmaceira caiu, mesmo, de moda. No lugar, tédio. Idoso parece que ficou só na lei. Na linguagem falada, ficou senhorinha.
Ruy Castro tem toda razão. Palavras caem de moda e outras vão surgindo e, nós, pobres idosos, vamos ter que nos acostumar.
Mas senhorinha… Que palavra horrível!
Aviso aos navegantes: Detesto que me chamem assim.
Maria Francisca – setembro de 2021.
Caminhando contra o vento, com lenço e sem documento, no sol de quase primavera, como numa paródia do Caetano, vou ouvindo conversas aqui e acolá. Umas de raro proveito, outras, de nenhum, e outras, nem merecem uma pausa.
“Emprego? Não existe! Ouço. Ah! Emprego existe sim, só que ninguém quer trabalhar. Trabalho? Quero um emprego bom, mas só acho miséria.”
Desligo-me dos papos e vou olhando para aquele mar azul, com nadadores, mergulhadores e muitos, muitos barcos compridos, as tais canoas havaianas, aquele povo todo remando no mesmo compasso. Uma beleza de se olhar e o convite a perder-se em pensamentos e devaneios.
Sento-me num daqueles banquinhos e fico por ali.
Vejo-me criança, na minha cidade natal, sem mar, sem barco. Sem eira, nem beira. Mas brincava na areia, fazendo buracos e colocando água, como se estivesse sonhando.
Entretanto, à minha frente, uma senhora varria a calçada. Chamou-me a atenção, porque não usava o uniforme típico dos garis. Olhou-me e eu a cumprimentei. Foi a dica para ela puxar conversa.
Sentou-se ao meu lado e contou-me que morava sozinha e, de vez em quando, ia para o calçadão ajudar os garis na limpeza. E viu o preconceito que rola por ali. Eu fui a única pessoa que a cumprimentou. Conversou um tempinho e disse que precisava voltar pra casa, para fazer o almoço, pois esperava uma visita. Agradeceu, levantou-se e saiu.
Fiquei ali ainda um bom tempo, pensando como nossa boa educação caminha contra o vento, como somos preconceituosos. Todos o somos. Preto discrimina preto, pobre discrimina pobre, velho discrimina velho, mulher discrimina mulher e assim caminha a humanidade.
O preconceito é o pai da discriminação e “é filho da deseducação, daquele que não abre a cabeça (quando) observa o mundo”, segundo o historiador Severino Vicente, da Universidade de Pernambuco, citado em recente artigo de Mateus Pichonelli. Será que nosso narcisismo nos impede de ver o outro, centrando-nos em nossa forma canhestra de ver o mundo?
A questão do preconceito entrou na ordem do dia, em face de críticas aos nordestinos por certos políticos. Aí, todos falam. Mas temos discriminação dia a dia e nem vemos. A mulher é sempre alvo. Outro dia, por exemplo, escutei uma conversa atravessada (cronista ouve tudo) de um cara dizendo que o seguro de carro é mais barato quando as mulheres são as principais condutoras, porque elas dirigem mais o fogão e as panelas, e menos os carros. Meu estômago até revirou.
Uma questão recorrente é o sotaque. Carioca ri de mineiro, mineiro ri de carioca e de baiano, e assim vai. Quando morei em Salvador, uma colega de trabalho, todas as vezes que estava perto de mim, repetia tudo que eu falava, carregando no meu sotaque. Os esses e os erres eram sua predileção. Vocêsss, então…Um dia, numa reunião, eu falava e ela repetia. Subiu-me uma raiva tamanha que vociferei: QUER PARAR DE ME IMITAR? ISSO NÃO IRRITA SÓ A MIM, MAS A QUEM ESTÁ PRÓXIMO DE NÓS. PENSEI QUE SE CANSASSE COM O TEMPO, MAS CONTINUA. VOCÊ NÃO APRENDEU QUE ISSO É FALTA DE EDUCAÇÃO? Ela somente resmungou. Fiquei livre.
Numa escola, recentemente, no meu trabalho voluntário do TJC, fui com uma professora, falar para os alunos sobre assédio moral, discriminação etc. A professora falou muito bem, e deu seu depoimento sobre o que passou, quando estudante. Na hora das perguntas, um aluno disse: professora, se um colega ficar falando isso e aquilo comigo, posso quebrar a cara dele? Claro que lhe foi explicada a providência a tomar, mas eu me vi na pele daquele aluno.
Pois é. Nós adoramos ver um europeu ou americano no Brasil, mas a um venezuelano, torcemos o nariz. E eles, americanos e europeus torcem o nariz para nós. Até Gisele Bündchen, em jornal americano, foi chamada de “brasileira estourada”, “cabeça quente daquele jeito brasileiro”, numa clara atitude xenofóbica.
Devemos ter muito cuidado com o preconceito. Nossa cultura ensina que branco, loiro, principalmente, é rico, e moreno ou preto é pobre (quando não é bandido). Entrar numa loja e ser acompanhado o tempo todo, enquanto se olha os produtos é uma humilhação e já ouvi muitas vezes relato desse tipo.
Não consigo entender tanta discórdia. Como disse Rubem Braga, numa bela crônica, “quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços”, e ainda brigamos por sermos diferentes. E todos brigamos, uns mais, outro menos.
José Faleiro, preto, de periferia, escritor premiado, fala na crônica “A faxineira”, sobre uma mulher que ele sempre encontrava no ponto de ônibus, quando voltava da EJA. Apenas por a mulher ser preta, ele pensou que fosse faxineira num dos prédios elegantes perto dali. Conversando com a suposta faxineira, contando que fazia EJA (“quem sabe ela se anima volte a estudar também…”, pensou). Só que a mulher, alegremente, disse: Que maravilha! Você voltou a estudar e faz EJA? Eu sou professora naquela Universidade. Pois é. A suposta faxineira era formada em Letras, mestre e doutora. Aí, o queixo do preconceituoso caiu de vergonha.
É preciso que nossas cabeças se abram para observar o mundo, o outro, e lembrar que somos todos iguais, mas diferentes, no jeito, nos modos, no linguajar, uns bonitos, outros não tão bonitos, mas todos humanos e devem ser respeitados nas suas diferenças.
Caminhar contra o vento? Só na praia!
Maria Francisca – Início de setembro de 2022.
“Os Passos de Anchieta” é uma caminhada de 100 km, de Vitória à Terra do Santo Anchieta. São 4 dias de estrada. Segundo seus historiadores, os andarilhos percorrem o caminho que Anchieta teria percorrido sempre a pé, da Catedral até a Cidade com seu nome.
Fui andarilha desse caminho por muitos e muitos anos. A pandemia tirou-nos muita atividade e essa caminhada, que perdi por inércia, foi uma delas, Claro, pretendo retomar, tão logo restabeleça minha força física.
Lembro-me bem e já escrevi sobre isso – Caminhos: prosa e verso, de 2013– sob sol ou chuva, íamos nós pelas areias das praias, ora queimando os pés, ora encharcados de chuva, ora saltitando para não sermos picados por ferrões dos crustáceos ou correndo sobre a restinga, fugindo dos espinhos de arbustos.
Em alguns trechos do caminho, não era possível ir pela praia, simplesmente por não ter praia, ou por haver tanta pedra que seria impossível transitar por ali. Então, subíamos morros, passávamos em florestas, ou por ruas dos bairros.
De vez em quando, algumas casas abriam suas portas para receber os andarilhos que podiam usar sanitários, beber água, ou mesmo descansar. Ocorre que muitos desses andarilhos abusavam da hospitalidade e, depois de algum tempo, ninguém mais queria abrir as portas.
Quando alguém precisava fazer uma necessidade fisiológica, tinha que ir ao mato, mesmo, correndo risco de se ferir ou ser picado por algum inseto.
Certa vez, eu precisava ir ao banheiro e o lugar onde passávamos era habitado, havia muitas e muitas casas e todas fechadas, como sempre, nesse nosso mundo moderno, onde o medo impera e ninguém descuida.
Entretanto, havia um grande portão, por onde via diversos andarilhos entrando e saindo. Quando eu estava chegando perto, o portão fechou-se com um estrondo e ouvi alguém dizendo: Ninguém mais entra!
Cheguei perto, olhei pra todos os lados. Ninguém por ali. Devagarinho, empurrei o portão. Milagre! Abriu, silenciosamente. Entrei, olhei para todos os lados. Ao fundo do terreno, vi uma casa. Fui em sua direção.
Lá chegando, fiquei a pensar: bato à porta ou não. Bato, resolvi. Só então vi que a porta estava aberta. Outra indecisão: entro, não entro. Decidi: entro.
Entrei, e uma surpresa me aguardava. Era uma grande cozinha e uma família estava á mesa, aliás, uma bela mesa, cheia de guloseimas.
Todos me olharam assustados. Parei, olhei para todos, sorri e disse: A Paz esteja nesta casa!
A porta abriu-se para mim. Todos se levantaram e me convidaram a sentar à mesa. Agradeci e disse que precisava apenas de um copo de água e de ir ao banheiro.
Mostraram-me onde poderia usar o sanitário e, na volta, um copo de água completou a gentileza daquelas pessoas.
Agradeci e sai.
Carreguei comigo, até o fim do caminho, a leveza que senti após o cumprimento de Paz, que ainda sinto, quando me lembro daquele momento.
E, hoje, especialmente, lembro-me dessa história, por ser dia dedicado a Francisco de Assis, o Santo da Paz.
Maria Francisca –04 de outubro de 2022.
Sempre houve alguém amante de notícias falsas perto de nós, ou, conforme a moda, de fakenews. Às vezes, o dono da mentira é o próprio divulgador.
Isso não é mais novidade. Ter olhos e ouvidos atentos para esse tipo de coisa é de suma importância, senão imprescindível.
Em época de eleição… Como há mentirosos! Na TV, nas ruas, nas falas…
No calçadão, hoje, vi tantos mentirosos… Os ditos santinhos são entregues a quem passa. Independente de se querer ou não. Estão à sua frente, interrompem sua passagem, enquanto alto-falantes gritam os nomes dos candidatos, muitos, que estão a pedir votos, como se fossem as melhores pessoas do mundo.
Uns já tão conhecidos pela inércia de anos e anos, dizendo-se corajosos para as mudanças necessárias. Outros, cansados de ganhar dinheiro à custa do povo, dizendo-se honestos. Outros, afirmando que sabem cuidar de pessoas, porque são médicos, cuidar? Outros querem colocar seu olhar a serviço da organização e desenvolvimento do Estado e, mais, para apoiar um candidato à Presidência da República. É sério? Apoiar em tudo?
A família nunca foi cantada nessas prosas como hoje. Deus, então…
Agora, mesmo, passa uma propaganda na rua. Aos gritos. Nem ouço mais. Cansada que estou de tanta baboseira. Desiludida? Não. Cansada. Quando é que vamos ter pessoas sérias, que pensam no País, nosso pobre país, cheio de pobreza e miséria?
Não voto em alguém porque é católico ou evangélico, porque crê em Deus ou é ateu. Dizer-se católico nada significa para mim, da mesma forma que dizer-se evangélico. Quantos batem no peito, como está no Evangelho, para dizer Senhor, Senhor e nada fazem pelo povo?
Uma questão difícil é que muito brasileiro ainda vota por interesse pessoal. Já ouvi: vou votar nele, porque está fazendo ligação de trompa nas mulheres pobres do meu bairro. Voto nela, porque vai ajudar muita gente se eleita. Voto nele, porque prometeu emprego ou bolsa de estudo pro meu filho. E muita gente que ali está ajudando nas propagandas está de olho num futuro emprego.
Agora, é a hora da mentira. Acolhem os pobres com marmitas de comida, com colchões, roupas, ligaduras de trompas, promessas de um país melhor, de um Estado melhor.
Quero ver onde estarão e o que estarão fazendo, quando chegar a hora da verdade.
Nem vão olhar para o povo. Recolhem-se, como se tivessem medo do que irão pedir seus eleitores.
Comida? Acabou. Merenda nas escolas? Só biscoito e suco, e olhe lá. Salário de professores? De fome. Segurança? Passa longe. Ninguém cuida disso. Tanto é que os professores, quando podem, já correm de escolas onde o perigo é constante.
É, minha gente. A hora da verdade é terrível.
Você vota em Fulano, em Beltrano? Então, fique atento, porque, quando for eleito, seja que for, você precisa cobrar.
Não sei como, porque ele vai fugir de você, como diria minha mãe, como capeta foge da cruz.
Algum desses há de ouvir. Então, corra atrás e cobre. Cobre, sempre.
O tempo da mentira acaba e a hora da verdade chega, ora se chega!
E eu vou cobrar! Aguardem!
Maria Francisca – setembro de 2022.
Meu hábito nas manhãs: após minhas orações, abro o site do UOL, vejo as manchetes, avalio o que ler, passo para a Folha e leio o que desejo. Recebo jornais locais, faço o mesmo.
Às vezes, umas manchetes tão idiotas, no meu ponto de vista, que nem deveriam estar ali. Algumas apenas tentam chamar atenção para a notícia que nem sempre é como está na chamada. Outras, nem abro, tão esquisitas.
Outras, ainda, penso, não valem a pena. Por exemplo: “Casal compra casa e, ao chegar com a mudança, encontra mais de 16 gatos”.
Também, para que preciso saber quantos maridos teve uma atriz ou quantas namoradas teve um ator, cantor, celebridade qualquer? Se é gay, lésbica, trans etc. Isso vai fazer diferença em minha vida? A vida é deles. Cada um sabe como viver. Suas escolhas não são da minha conta. Não me acrescenta, nem me reduz como pessoa saber e, pior, opinar sobre certas questões.
Exibir-se nas redes sociais é outra “exigência” moderna. Ninguém quer ler nada sério. Diz Nuccio Ordine (A utilidade do inútil): “Num contexto social em que se dá mais atenção ao aspecto exterior que à dignidade interior não é de se admirar que a ignorância mais grosseira tenha assumido a aparência de instrução”. Basta ver a atenção que se dá aos ex-BBB e aos atuais, aos atos extravagantes de certas celebridades, e que são acompanhados por muitos, procurando imitar as roupas, os cortes de cabelo, o estilo etc. Aliás, o que se tornou inútil para o grande público foi o conhecimento.
Há anos, li um conto, que falava da colonização americana, quando chegaram lá os “peregrinos” e formaram colônias que, posteriormente, estados do sul e do norte, protagonizaram a famosa guerra de Secessão.
Pena que não me lembro o autor/autora. Tratava-se de Colônia do Norte, que trabalhava com manufatura (mais importante) e agricultura, mas agricultura familiar, ou quase familiar, já que tinha empregado.
Resumo da “ópera”: Uma menina da família de agricultores saiu a caminhar e encontrou um empregado que cuidava da plantação. Criança gosta de conversar, sabemos. E começou um papo com o trabalhador. Ali ficou divertindo-se com as histórias do homem. A mãe, ao sentir falta da criança, começou a chamar: Ellen, Ellen… Encontrou a filha a conversar e chamou-a para casa. A menina disse: Mamãe, espere, o Mr. James está me ensinando a cuspir longe. A mãe, surpresa com a situação, virou-se para o trabalhador e disse, gentilmente: Mr. James, o senhor acha que é relevante ensinar uma criança a cuspir longe? Ou seja: para que serve isso?
Hoje, quando vejo algo que não me trará acréscimo algum, seja totalmente inútil ou inaproveitável, lembro-me desse conto e digo:
É tão importante como aprender a cuspir longe.
Maria Francisca – agosto de 2.021.
O calçadão coalhado de gente e de cachorros, aliás, talvez mais de cães do que de gente. Para atrapalhar um pouco mais, um enorme caminhão descarregava alguns equipamentos ali, com um estreito espaço para a passagem de quem se arvorava a andar por aquele vespeiro, já inchado de pessoas que assistiam a jogos de um campeonato.
Daí a pouco, ouço gritos. Babaca pra lá, babaca pra cá… FDP é você sua… E assim se seguiram xingamentos e palavrões. Duas moças, nas suas respectivas bicicletas, brigavam com um pequeno grupo sentado na beira da praia.
Escutando aqui e acolá, fiquei sabendo tratar-se de um cachorro grande que atacou um cão pequeno de uma senhora idosa e, não satisfeito, teria atacado as moças também.
Em Brasília, certa feita, segundo um amigo, uma pesquisa teria apurado que havia mais carros do que pessoas em determinada área daquela cidade. Lá, carros, aqui, cachorros, porque acredito que se não hoje, mas daqui a uns poucos dois anos, a Praia da Costa e Itapuã terão mais cachorros do que pessoas. É só prestar atenção. Há quem ande com 2 e 3 cachorros. Ou cada dia com um diferente. Isso já reparei muitas vezes.
Pior de tudo é que os cachorros têm preferência em relação aos humanos. Cachorros grandes sem coleira (ou focinheira, mais adequado), soltos (o que ocasionou a briga, por exemplo). Se você reclama do cachorro solto, a primeira coisa que dizem: É mansinho. Ora, mansinho para o dono. Outros levam os cachorros com grandes cordas, o cachorro fica pra lá e pra cá, atravessa a corda na nossa frente…O jeito é parar e esperar a vontade daquela “coisa linda” me deixar passar. Se reclamar, é briga na certa. E quando deixam o cocô na calçada? Cedinho, dia de semana, é comum ver essa excrecência no chão. Voltei pra casa outro dia com o tênis em pandarecos.
Hoje é obrigatório ter cachorro, ou, pelo menos um animal de estimação qualquer. Se não tem, imediatamente vem a pergunta: não gosta? Ora, simplesmente não quero. Hoje, não quero mais. Quem gosta que crie um, dois, vinte.
Já tive cão e gato. Gostava. No tempo em que eram bicho. Cachorro ou gato (principalmente cachorro) que viram gente ou mais bem tratados do que gente…
Uma senhora vivia me pedindo ajuda para uns tais cachorrinhos abandonados. Um dia, exasperei-me. Tanta criança abandonada… Por que essa senhora só cuida de cachorro? Um dia, após um pedido por WhatsApp, lancei a pergunta: A senhora só pede para cachorro? Há muitas crianças precisando de ajuda também. Nunca mais recebi mensagem dela e achei muito bom. Que ela cuide de seus cachorrinhos e eu, do meu canto, só cuido de dar ajuda para crianças necessitadas. Cada um no seu quadrado, como se diz por aí.
Não estou dizendo que os cachorros devem ser abandonados. Claro que não. Quem tem qualquer animal deve cuidar dele, óbvio, veterinário, limpeza e, principalmente, impedindo que ataque as pessoas.
No retorno, vim andando pelas calçadas em frente, parando a cada esquina, ora nos sinais de trânsito, ora nas faixas de pedestres, esperando a fila de carros, já que motoristas não respeitam as regras de trânsito.
Por fim, digo que não teria reclamação alguma em relação aos cachorros no calçadão. Uns são muito bonitos e interessantes. Mas é preciso que as pessoas passeando com os bichinhos sejam educadas e cuidem para não incomodar os passantes.
Do jeito que as coisas andam, antes de sair de casa temos que nos armar de um saco de paciência!
Em verdade, caminhar no calçadão nos domingos ensolarados virou um desafio.
Maria Francisca – julho de 2022.
Na década de 70, visitei uma fábrica de refrigerantes em Minas Gerais e achei uma maravilha a automação.
A minha memória registrou assim: um empregado ia colocando as garrafas numa esteira. A esteira ia passando, parava debaixo de um funil, que colocava um líquido, parava de novo, mais um líquido, depois, passava por um empregado, que balançava as garrafas e misturava tudo. E assim por diante, até terminar aquele trabalho e o processo recomeçava, incessantemente, até o fim do dia.
Nas fábricas de chocolate, também vivenciamos isso. E era sempre uma maravilha
Essa maravilha mostrou-se doentia. Na década de 80 já começamos ver o estrago que essa automação causava na saúde dos empregados. A famosa LER, lesão por esforço repetitivo, que deixou muita gente com problemas crônicos e até com perda de movimentos nos braços, nos dedos etc.
Charles Chaplin, lá nos idos de 1936, retratou, de forma bem-humorada, no filme “Tempos Modernos”, o desastre que seria o trabalho daquele tipo. A adaptação do homem às modernas técnicas de administração no pós-guerra foi difícil e sofrida. Quem não se lembra da cena de Carlitos, personagem de Chaplin, saindo pela rua querendo parafusar a todos que encontrava?
E, hoje, como está a automação? Cada vez mais “adiantada”. Nas empresas, nem se fala. E as doenças, também, “adiantaram-se”.
Na vida, no dia a dia, tudo é automático. Nos cafés e restaurantes, não temos mais aquele belo cardápio, encapado e com desenhos dos alimentos oferecidos. Temos, sim, uma placa, com o tal de QR Code, para você acessar e ler o cardápio. Até nos bancos das Igrejas aqui de Vila Velha, estampado está o desenho “mágico” pra você ler o que precisa, e dar a sua contribuição.
Outro dia, uma amiga a quem eu acompanhava num café, pediu o cardápio ao garçom, mas ele, gentilmente, mostrou o pequeno cartaz sobre a mesa e brincou: quem não vier com celular, fica com fome…
Pois bem. Nos prédios, residenciais, pelo menos, está acontecendo a mesma coisa. Quando não é o porteiro virtual, que já critiquei numa crônica anterior, os moradores devem portar uma pequena placa, simulacro de chave, que, ao ser colocada à frente de um pequeno aparelho, aciona o portão de entrada. Há, também, uma senha que deve ser digitada nesse tal aparelho, para quem não quiser carregar a chave. Em suma, quem esquecer a senha e não tiver a tal chavinha, fica na rua. A menos que você tenha, e tome automação, a fechadura biométrica.
Enfim, tudo para reduzir o valor das taxas de condomínio, ou, o caso das empresas, para aumentar os lucros. Sempre o vil metal.
Hoje, ri de mim mesma: Fiz como Carlitos, de Chaplin. Cheguei ao prédio, precisei acionar a chave duas vezes, pois são dois portões de entrada. Abri um, andei uns poucos metros, acionei o outro e entrei. Quando chequei perto do elevador, saquei a chave e apontei-a para o botão de chamada. Só quando o elevador se manteve na posição, “cai na real” e comecei a rir.
Entrei em casa, imaginando como seria a minha vida se tivesse um trabalho repetitivo. Não me adaptaria. Claro que faria pior do que Carlitos e seria despedida do emprego no segundo dia.
A modernidade, quando exagerada, acaba por matar a pessoa dentro de cada um de nós.
Maria Francisca – 15 de julho de 2022.