Maria Francisca - Blog da Maria Francisca Lacerda, escritora e poeta. - page 13

 21 de março de 2017 

 

“Psiu! Há vida do lado de cá

As árvores balançam

Tem sol, tem céu e tem mar.

Tem gente também,

Além de um cãozinho

E um celular.”

Logo cedo, recebi um vídeo com a voz a Carmem Miranda, cantando uma música que foi sucesso há muitos e muitos anos, de autoria de Assis Valente: “Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí, em vez de tomar chá com torradas ele bebeu parati (…) Tirou o anel de doutor para não dar o que falar (…)” … Acabei de ver o vídeo e saí para caminhar no calçadão, pensando naquela bela voz que durou pouco. Quanta gente gravou essa música depois!

Fui me encontrando com pessoas com seu cachorrinho pela coleira e um celular à mão, teclando ou falando. O cachorrinho cheira uma coisa, cheira outra, a corda estica, a corda encurta e lá vão eles, como se o mundo fosse só aquilo. De vez em quando, um esbarro, uma corda comprida que impede sua passagem, mas aqueles senhores, senhoras, ou senhoritas pensam que seus lindos totós são mais importantes do que as pessoas que por ali trafegam. Às vezes é o celular que atrapalha. A pessoa fica tão distraída teclando ou falando que se esquece de que está numa via pública. Correm até o risco de atropelamento.

Pior, mesmo, é quando não cuidam dos excrementos de seus pets. De vez em quando, perco tempo observando. Olham para um lado, para outro, ninguém olhando. Disfarçam e vão saindo de fininho e lá vão ficando os excrementos para desespero de quem, inadvertidamente, pisa naquela coisa. Sou cuidadoso, correto, se alguém estiver vendo? Sozinho, não preciso ter respeito ao coletivo? Há outros que nem se importam se alguém vê. Uma senhora, por exemplo, que passa sempre na minha rua com seu cãozinho, advertida pelo faxineiro de um prédio de que não poderia jogar o excremento ali, sob uma árvore, porque não era hora de passar o caminhão do lixo, respondeu, brava e “cheia de razão”: Pago meus impostos, então posso deixar o cocô onde quiser.

Uma amiga me disse que tem inveja dos americanos, porque queria ter nascido num país onde as pessoas cuidam do coletivo. Onde as ruas são limpas.  Eu disse que a questão é que nosso povo ainda não se deu conta de que a rua é também dele. Nosso problema é pensar que a coisa publica é de ninguém. Então, pode-se fazer ali o que quiser e até vandalizar, como fazem com as lixeiras que não param. Furtam, riscam, estragam.

E os cachorrinhos, que de nada sabem, vão por ali, fazendo a parte deles, enquanto os donos não se “tocam” e deixam que eles emporcalhem as ruas.  Só tocam nos celulares.

Andando e pensando, esbarro numa plaquinha no calçadão com os dizeres: “Cuidado! Cocô de um cachorro Porco. Obs. O dono”. Não tive dúvida: peguei o celular (que pra isso uso) e tirei a foto que posto acima.

Melhor, mesmo, é ir escutar de novo a música, porque cachorrinho e celular, dessa forma maluca, não são comigo.  Prefiro vestir uma camisa listrada e sair por aí…

Maria Francisca – fevereiro de 2017

 5 de fevereiro de 2017 

Já li diversos autores famosos, entre os quais Rubem Alves e Clarice Lispector, dizendo-se pobres quando crianças, mas felizes, porque não se davam conta de sua pobreza.

Eu sempre soube que era pobre, mas a pobreza não me incomodava. Estudava, tinha meus livros, minhas colegas, brincava. Tinha amigos ricos e eu sabia disso, mas transitava, tranquilamente, entre ricos e pobres.

Pesquisa realizada por Celso Athayde e Renato Meireles comprova que 95% das pessoas que vivem em favelas no Rio se sentem felizes. Um terço delas não sairia dali, nem que o salário dobrasse. Segundo os autores, 80% desses habitantes têm casa própria. Essa pesquisa está no livro Um país chamado Favela, da Editora Gente. Então, pobreza não é sinônimo de infelicidade.

A desigualdade nasce da comparação: alguns autores já o proclamaram e, em especial, Rousseau que coloca a propriedade como origem de todo o mal. O fato de os homens reunirem-se em uma sociedade deu-se por autopreservação, dissera o filósofo, visto que é mais fácil resistir e combater animais selvagens quando se está em grupo.  Com essa convivência teria observado o primeiro passo para a desigualdade: distinção entre o mais belo, o mais forte, o mais destro, o mais eloquente. Daí originariam os sentimentos de vaidade, desprezo, vergonha e inveja, até então desconhecidos no estado natural, recrudescendo e fincando raízes na vida das pessoas, com a propriedade.

O belo, o forte, o eloquente e o inteligente causam, sim, inveja, mas a disputa pelos bens materiais é o que tem prevalecido e provocado discórdias maiores no mundo de hoje e, porque não, infelicidade. Claro que estou falando, aqui, de pobreza e não de miséria. O miserável não tem dignidade nem sequer para pensar. Se não pensa, não tem como fazer opção. O alimento é a única coisa que pretende e a única coisa com que se preocupa. Pão. Apenas pão. Beleza, nem se fala.

Cacau Rhoden diz que vivemos em uma sociedade em que as pessoas são infelizes. Por quê?  Estaríamos colocando toda a fonte de satisfação no consumo, o que provocaria uma cascata. Nunca estarmos satisfeitos: uma vez adquirido algo, desejamos mais, numa cadeia infinita. Essa insatisfação, segundo o cineasta, está em nós mesmos. E Marcia Dessen, em recente artigo na “Folha” disse que a maioria de nós não sabe o que quer. Então, programamos o cérebro para olhar à nossa volta, em relação aos outros. Queremos o que o outro tem. Olhe a comparação aí.

Claro que nós passamos essa sede de consumo aos nossos filhos. Ficamos todos infelizes por um “homem de ferro” que nosso pai não pôde comprar. Nossos coleguinhas têm e nós, não. O pai consegue aquele tal “homem de ferro”, mas aparece outro, mais sofisticado, exibido ontem por nosso colega no recreio. A comparação parte, apenas, do material, do que posso ter. E, agora, com os jogos eletrônicos, com as redes sociais? E os telefones celulares, notebooks de última geração?  Os amigos têm, quero também. Se assim for, a chance é do complexo de vira-latas (expressão cunhada por Nelson Rodrigues) e a infelicidade mora aí mesmo.

A educação tem um papel importante nesse contexto de desigualdade.

O jornal “A Gazeta” de hoje (domingo, 05.02.2017) trouxe uma entrevista com Sri Prem Baba, Guru brasileiro que mora na Índia. Numa de suas respostas, disse o seguinte: “ Talvez nosso principal erro seja a crença de que a felicidade está fora de nós”.

Pois é. Esses dias escutei uma frase interessante.  Uma amiga dizia que determinada pessoa tinha vocação para ser infeliz. Claro que ela disse isso sem refletir, apenas porque a pessoa vive reclamando de tudo, mas eu fiquei pensando nisso. Será que eu nunca me senti infeliz, quando criança, mesmo sabendo-me pobre, porque tenho vocação para ser feliz? Quem sabe foi a Poliana quem me ensinou o jogo do contente? Ou foi a educação que recebi que me ensinou a me preocupar mais com outras questões da vida? Será que tenho o gene da felicidade?

Mas vale perguntar: Existe vocação para ser feliz ou infeliz? Quem sabe nascemos com um genezinho da felicidade? A pensar…

Maria Francisca – fevereiro de 2017.

 15 de janeiro de 2017 

 

Livrinho abusado

Hoje, tentando arrumar o cantinho de livros religiosos de minha biblioteca, encontrei este livro muito antigo: “Minutos de Sabedoria”, de C. Torres Pastorinho.  Foi só bater os olhos no tal livro e o túnel do tempo respondeu:  presente!

Era a década de 70. Eu trabalhava no então INPS, que envolvia a área de benefícios previdenciários, arrecadação, pessoal etc.

Fui designada para chefiar o Serviço de Seguros Sociais, setor que cuidava de todos os benefícios previdenciários, inclusive de acidentes do Trabalho.

O serviço era tão volumoso que beirava a desumano. A equipe jovem e sem experiência, inclusive eu. Como lidar com tanto trabalho e ainda ter que orientar a tantos?  Só com muita disposição, trabalho, broncas, jornada excessiva etc.

Naquela época, os universitários poderiam trabalhar em órgãos públicos, numa espécie de estágio, como participantes do Projeto Rondon. E no meu setor de trabalho havia alguns da área de engenharia, sem qualquer experiência administrativa ou social. Inclusive uma moça chilena que nem sequer dominava a língua portuguesa.

Eu passava o dia a ensinar aqui e ali e nem sempre tinha a paciência necessária.

Um dia, já cansada, à beira de um ataque de nervos, chega a chilena e pergunta, com aquele sotaque portunhol:  Dona Franchesca, o que eu coloco na ficha? Era um caso de alta médica e eu disse: Data da cessação do benefício, mas você deve registrar a sigla DCB. Ela, sem saber o que era aquilo, perguntou: É B de burro ou B de bassoura?

Eu expliquei a ela o que era um B e um V em português e, cansada, atordoada, danada da vida de ter que responder até aquilo, abri a gaveta peguei o livro “Minutos de Sabedoria” com o objetivo de ler algo e acalmar-me. Abri aleatoriamente e li, mais ou menos isto: “Não se irrite. Tudo que sabe é dom de Deus. Então, ensine-o a seus semelhantes da melhor forma que souber”.

Fiquei mais danada, ainda, joguei o livrinho dentro da gaveta e comecei outro trabalho, mas ao fim do dia, refleti o que havia lido e contei aos colegas no dia seguinte. Eles riram e o livrinho mudou de nome. Era, agora, o livrinho abusado e todos me pediam, quando estavam cansados. Empreste-me o livrinho abusado…

Anos depois, juíza em Linhares, fui removida para Vitória. Lá, deixei um exemplar do livrinho para o colega que foi me substituir. Ele me ligou depois.

Francisca, você deixou um livro de pensamentos para mim, mas foi só abrir o tal livro e li: “Não julgueis para não serdes julgados”.  Essa é boa, como é que faço, então?

Rimos juntos e contei a ele a história do livrinho abusado…

E, agora, abrindo o livro, leio e registro: “A vida é um canto eterno de beleza”. E acrescento: De aprendizado também.

Que assim seja!

Maria Francisca – janeiro de 2017.

 

 18 de dezembro de 2016 

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Você já viu uma borboleta?  Elas são lindas, não são?  Coloridas, gostam de ficar voando pra lá e pra cá, pousando nas flores, e enfeitam qualquer jardim.  Gosto muito de borboletas.

Mas há uma borboleta que dá medo. Você já teve medo de borboleta?  Eu já.  Até meu avô já teve medo de borboleta.  Daquela borboleta preta que parece uma bruxa e é  assim chamada: BRUXA. É grandona e dá medo.

Ontem, uma dessas borboletas bem grandona estava pousada no espelho do quarto de minha avó.  Eu pensei que era um enfeite.  Estava na hora de ir dormir e o vovô já estava bem deitado. Sossegado, quase dormindo.

Quando eu falei do enfeite, ele, olhou para a parede e, morrendo de medo, disse pra vovó: Tire essa borboleta daí?

Só aí foi que vi: não era enfeite. Era uma borboleta-bruxa. Enorme.

Minha avó pegou uma almofada e começou a perseguir a tal borboleta que, em verdade, é uma mariposa, esse bichinho que vive correndo atrás da luz. Mas a borboleta pulava pra lá e pra cá, em círculos, e a vovó não conseguia fazer com que ela saísse do quarto, mesmo depois que abriu a porta e acendeu a luz da varanda.

Correu tanto que pulou atrás da cama.  Aí a vovó foi buscar uma vassoura e enfiou atrás da cama, mas a tal bruxa saiu voando e foi pro meu lado e vovó gritou: Corra, Leozinho. Pule em cima da cama. Corri, mais do que depressa, e pulei na cama do vovô e lá fiquei e, coitada da minha vovó, não conseguiu mais encontrar a bruxa, porque ela se enfiou debaixo da cama e ninguém achava onde ela estava.

Depois de algum tempo, resolvemos ir dormir, porque meus olhinhos já estavam se fechando de tanto sono, mas sabe o que aconteceu? Sonhei que a borboleta estava dentro da minha cabeça.

Mas acordei e vi que foi que foi apenas um sonho.

Será que ela voou pra fora do prédio e foi embora?

Será que ela tem casa? Será que há um borboletário?

Acho que precisamos pesquisar sobre isso.

Que tal, vovó?

Maria Francisca e Leozinho (5 anos) –  13/12/2016.

 15 de novembro de 2016 

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Sábado à tarde, Vila Velha é um deserto de pedestres. Ou de ideias, talvez.

As lojas fechadas.  Só carros trafegam. Parece que todas as pessoas se escondem em casa.  Não se vê viva alma andando na rua.

Justo nesse dia precisei ir ao supermercado a cerca de três quadras de minha casa. Comprei algumas caixas de leite e vinha subindo uma rua, puxando aquele carrinho pesado, até arrependida de ter ido a pé.

Ando sempre alerta. Como disse Rubem Alves, quando saio de casa, levo meus olhos para passear.  Por isso, vejo tudo ao redor. De repente, observo um homem na calçada. Parecia inquieto. Fiquei um pouco cismada, pensando na violência diária, mas não havia jeito de passar ao largo, porque eu estava longe da faixa de pedestre, o carrinho pesado e o tráfego célere.

Arrisquei. Quando estava perto, ele me abordou: Senhora, senhora, por favor.  Eu não tinha alternativa. Parei.

A seguir, o diálogo:

Moro perto do Shopping Praia da Costa.

 Que foi que o senhor disse?

É que estou embriagado. Moro perto do Shopping Praia da Costa.

(Não estava entendendo nada, mas perguntei na base do palpite) O senhor está perdido?

Sim, não sei voltar pra casa.

Então, perguntei-lhe o nome da rua, se era mais perto da praia ou do shopping e, assim, pude indicar-lhe o caminho para casa.

Ele sorriu, agradeceu e disse:

 Acredita que uns moleques tomaram meus óculos, jogaram no chão e tomaram meu dinheiro?

Puxa! O senhor ficou sem nada?

 Sem nada, não. E a senhora?

(Ai, ai, ai, já vai pedir dinheiro! É a primeira coisa que pensamos, infelizmente).

Eu? O senhor continua sem nada! (Ri e ele riu também)

Não! Não é todo dia que encontramos pessoas tão gentis como a senhora. Garanto que todos conhecem a senhora. Vou perguntar na Banca de Revista, porque assino o Jornal de Brasil. Garanto que conhecem a senhora. (Não entendi o que tem a ver a banca de revista, com assinatura do Jornal do Brasil. E essa história de todos me conhecerem, se nem meu nome ele sabia.)

Conhecem nada, moço! Ninguém me conhece.  Thau! E fui saindo bem depressa, para livrar-me daquela questão que já se mostrava um problema e com muita vontade de dizer-lhe, como diria, quando criança, diante de coisas estranhas: “Comigo, não, violão”!

Segui pensando naquele fato inusitado e lembrando do que sempre dizem meus amigos: Só com você acontecem coisas desse tipo.

 Será?

Maria Francisca – janeiro de 2016.

 2 de novembro de 2016 

 

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Moça, onde consigo trocar o  Voucher?

Plataforma 4.

É pra pegar a passagem.

Plataforma 4.

Plataforma 4 não é pra embarcar?

Plataforma 4.

Quase perguntei: Você é um robô?

Desisti  e saí à procura da tal de plataforma 4. Uma fila enorme, todos confusos, pergunta vai, pergunta vem, e nada de resposta.  Cada hora alguém se enxertava ali. De repente, percebi que a tal fila para troca do voucher era outra, paralela.  Pulei dali, entrando na frente de uma senhora que deu o grito: Opa, eu já estava na fila.  Foi o jeito deixar a mulher passar. Nem tinha visto de onde veio, mas, naquela confusão, fazer o quê?

Recebi a passagem e fui arrastando aquela mala enorme, com uma bolsa em cima, mais uma sacola e uma bolsa de mão, procurando minha plataforma que estava bem distante. A mala tombava, a bolsa caia no chão e lá ia eu, como uma imigrante tonta, que nem sabia em que cidade estava, tanta gente, cada um correndo mais do que o outro.

Aleluia! Eis-me sentada, após conseguir enfiar a grande mala naquele espaço gradeado, rezando pra ninguém colocar uma mala maior ainda em cima, como já aconteceu outras vezes.

Tão logo entrei no vagão, aticei o ouvido e prestei atenção à conversa de um senhor, ao telefone: “Zé, aqui  é tudo fofim. As cadera toda bunita, larga, tem lugar pra guardar os trem, tem até aquele home que passa com carrim, pra toma  o dinheirim  dagente.  Num tem aquelas cadera dura mais não, moço. E é friim, friim. Aquel solão lá de fora, meu fio, nem parece que tem. Quase que perciso visti casaco”. E continuou naquele mesmo tom, descrevendo os aposentos do trem, numa alegria que dava gosto ouvir.

Fiquei alguns minutos atenta àquela singeleza bonita, na simplicidade de gente do interior, que há tempos não via.

Depois, abri um livro e comecei a ler, de Humberto Eco, “Cemitério de Praga”, que ganhei faz tempo. Já no início, achei interessante.  A personagem narradora que, segundo a resenha, é a única imaginada pelo autor, fala mal de todos os povos.  Dos alemães, diz, entre outros defeitos, que abusaram de dois grandes narcóticos europeus: o álcool e o cristianismo. Dos franceses, que são exibicionistas, que pensam que todos falam francês, que são preguiçosos, trapaceiros etc. O italiano não é confiável, é trapaceiro, traidor etc. E foi falando sempre mal de todos, de forma engraçada. Dos padres, diz que o sujeito se faz padre ou frade para viver no ócio e que os piores são os jesuítas que são irmãos carnais dos maçons.

E aí, começa a falar das mulheres: ” Odeio as mulheres, pelo pouco que sei delas. Nas brasseries à femmes reúnem-se malfeitores de toda espécie. Pior do que as casas de tolerância. Fazem mal até de longe. Mulheres não sabem nada”.

O trem em movimento, interrompo a leitura porque percebo uma mensagem de um amigo que, entre outras coisas, pergunta se a paisagem é bonita. Só aí olhei pra fora. Percebi que preciso de outro olhar, mais imaginativo, menos analítico.  Não consegui enxergar beleza alguma.  Rio seco e sujo. Ainda mais depois dessa lama no Rio Doce.

Retomo a leitura.

O trem para numa estação, saem pessoas, entram outras. Acomodam-se, atrás de mim, uma senhora idosa, mais um casal e uma menina, que, como se dizia há tempos, parecia ter engolido agulha de vitrola. Falava tudo muito alto e rápido, como a maioria das crianças.

Por fim, deixei o livro de lado, para escutar.

Conversavam sobre quadrinhos. De uma personagem passavam para outra: Pateta,  Miquey Mouse, turma da Mônica e começaram a enumerar as personagens do desenho.  Mônica, Cebolinha etc e avó que estava ao lado dela na poltrona falou da Minie. A criança, então, disse, brava:  “Vó, tá errado. Minie não é da turma da Mônica. Deus me livre! Vovó parece homem, não sabe de nada!”

Achei engraçado, porque acabara de ler que mulheres não sabem de nada. Em suma, ninguém sabe de nada.

Escuto outro grupo de conversas. Estados Unidos é um país maravilhoso. Só que não, digo pra implicar.  O rapazinho que passou a me chamar de tia e  falava dos Estados Unidos, riu e disse: Não estou mentindo. Claro, você não está mentindo, você só está exagerando. Todos riram e a conversa descambou para os defeitos dos Estados Unidos, com Trump, a mulher de Trump que plagiou Michele Obama etc, etc.

E lá se vai o trem sacolejando pelo caminho afora. Quando chego ao destino, ufa! Peguei tudo e saí às pressas, para cumprir meu destino.

Dias depois, retorno. Na estação, avisam que o embarque será pela linha do meio. Já fico preocupada com aquelas pedras no meio do caminho. Não a pedra do Drummond, mas muitas, miúdas, prontas para dar o bote e jogar o incauto ao chão, de preferência todo arranhado.

Pois não foi o que aconteceu comigo? Tropecei, tentei um malabarismo de yoga para não me machucar e cai de pernas para o ar. Foi um Deus nos acuda. Todos em volta, machucou? Está bem? Sim, estou bem, aliás estou ótima (e com muita vontade de rir, quase falei). Muitos vieram ajudar a carregar os trastes, sempre com palpites. Uns diziam: Um livramento. Outros que eu era muito forte etc. Empregados da Vale, avisando: Olhe, uma senhora caiu, uma senhora caiu, uma senhora caiu…parecia um eco.

Viralizou, pensei, rindo sozinha.

E, assim, obtive meu minuto de fama, que degustei até o fim da viagem, enquanto cantarolava baixinho a música do Milton:  Todos os dias é um vai-e-vem, a vida se repete na estação. Tem gente que chega pra ficar…e assim chegar e partir…

 

Maria Franciscainício de novembro de 2016.

 

 22 de outubro de 2016 

 

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Ao Coletivo de Mulheres do Sindicato dos Engenheiros do ES.

Quem és tu, mulher?

Mulher que dança, que passa, que ora.

Mulher que ri, que chora, que segura

As lágrimas pra ninguém ver.

 

Mulher bordadeira que fere o dedo,

O sangue jorra vermelho, de doer.

Mulher parideira, que mora na roça,

Que planta, que colhe, mas não sabe ler.

 

Mulher operária, que sofre, que murcha,

Que busca a comida do filho na labuta.

Mulher que sente frio, que chora sem pudor,

Mulher sem vez, sem voz, nem poder

 

Flor empoeirada, sufocada,

Que murchou sem florescer,

No muro pobre, sujo, espinhoso

Que a aurora ilumina ao nascer

 

Mulher médica, engenheira, advogada

Mulher que conduz boeing, caminhão, trator,

Mulher pedreira, carpinteira, política,

Professora, oradora, mulher candidata

Que perdeu a eleição e desanimou.

 

Quem és tu, mulher?

Que quer pão e quer beleza

E não pode sorrir, nem sonhar.

Precisa costurar a vida, a desdita,

Desfazer caminhos malfeitos

De qualquer jeito.

 

A vida passa e não vês.

E sem perceber, passa a vez,

Passa a vez, outra vez…

Outra vez…

Eternamente?

 

Maria Francisca – setembro de 2016

 1 de outubro de 2016 

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Com licença, Dra. Francisca. Desculpe interromper a sua caminhada, mas preciso falar com a senhora. Não sei se se lembra de mim, sou Maria Clara, professora numa escola de Vila Velha e participei da aplicação do TJC.

Ah, lembro-me, sim. Tudo bem? Em que posso ajudar?

Aí, a professora me contou que o filho assinou um contrato de experiência e, ao final dos três meses, só lhe disseram que não trabalharia mais, sem que o motivo lhe fosse explicado. Ele estava muito triste e ela, então, queria saber os seus direitos, ou seja, se a empresa poderia despedi-lo, sem explicação alguma, já que ele trabalhara bem o tempo todo.

Conversamos, ela agradeceu e foi andando, muito triste. E eu voltei pra casa, com um sentimento meio esquisito. Não sei se de pena do rapaz ou de revolta por essa situação por que passa o país e os desempregados.

Mal chego em casa, leio uma notícia que me enviaram: “O professor universitário que pede emprego no semáforo”.  Puxa! O homem de mais de sessenta anos, entregando cartões no semáforo, pedindo uma oportunidade para trabalhar. Que país é este, meu Deus!

E todos os dias só ouço dizer que a CLT é muito antiga, coisa de fascista, que precisa ser mudada. Certo, mudemos o que for necessário, mas, por gentileza, não digam que a CLT é velha, desatualizada, porque ela nem é a mesma de quando foi editada, tanto a retalharam.  E a cantilena continua.

Que tal, então, fazer outra?  Dar um outro nome, como fazem com tudo no Brasil? Mudem para Código do Trabalho, que talvez tenha mais força e  persista.  Hoje, há tanta burla, imagine quando vierem as mudanças que estão apregoando? A terceirização generalizada, o negociado valendo frente ao legislado, prevendo-se a alteração da Constituição para esse desiderato. Segundo as notícias circuladas na mídia, abrangem até férias e 13º salário.

E talvez nem sejam necessárias as mudanças legislativas, porque as últimas decisões do STF já deram mostras de que a CLT nem está valendo muito mais. Aliás, quem sabe até a constituição, com suas cláusulas ditas pétreas.

Quando do aniversário de 70 anos dessa Norma Legal, muitas coisas foram escritas, inclusive um belo livro do meu amigo Márcio Tulio Viana. Eu também quis prestar a minha homenagem à dita vetusta lei e escrevi um poema (Estou aqui: você me conhece?), que transcrevo, até como despedida dessa amiga que me valeu anos e anos de estudo e companheirismo no trabalho, tanto no INSS, como no Ministério do Trabalho e na Justiça do Trabalho.

 

Vim num tempo de guerras, dores, horrores.

Vim para a paz e em paz, dar força aos fracos.

Sem Fuzil, sem bomba, nem espada.

Vim com a força da Lei.

Não seria preciso mais nada.

 

Vim para a cidade e o campo veio a mim.

As cidades incharam. Surgiram becos, guetos

E até fome, nesse mundo infame.

 

Sou massacrada, rasgada, até escondida.

Sou mutilada, mas sou também emendada.

Como tudo neste mundo, sou amada e odiada.

 

Chamam-me obsoleta, caduca, atrasada,

Mas tenho meus defensores.

Não sou divina, nem uma ET,

Tenho 70 anos, sou forte e valente,

Sou a boa e velha CLT.

 

Maria Francisca – 30 de setembro de 2016.

 

 

 28 de setembro de 2016 

 

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Profissão? Escritora. É? Que legal! O que você escreve? Meu nome, ora! Seu nome? KKKK… Se você quiser, posso escrever o seu também. E dessas pessoas que aqui estão… Uns olharam-me com espanto, mas muitos riram bastante.  A moça me deixou em paz, eu paguei e saí.

Não sei se as pessoas perceberam que era uma brincadeira ou se pensaram que eu era uma doida.

Dou esse tipo de resposta nessas lojas, onde querem saber até meu tipo sanguíneo. Aí, invento umas coisas, para que parem de investigar minha vida, sem nenhum sentido. Aliás, tem sentido só para eles: querem saber se você pode comprar mais vezes, para importuná-lo, sempre com telefonemas, e-mails ou mensagens, agora com o infernal whatsapp que, se não for silenciado, ou bloqueado, como tenho feito, é capaz de colocar qualquer um meio doido ou viciado.

E por falar em escritor, participei há pouco tempo de um evento literário, onde surgiu uma discussão sobre essa profissão. Um dos presentes, que, inclusive, estava lançando um romance, disse que não se sentia escritor e nem falava que era essa a sua profissão, porque aqui no Estado e talvez no Brasil, ninguém consegue viver só de literatura. E todos ali concordaram. Um era professor, outro, jornalista, médico, outros juízes…Em verdade, se observarmos a biografia dos grandes escritores, todos têm ou tiveram profissões paralelas.

As leis de incentivo, infelizmente, só beneficiam os amigos do rei. Para os pobres mortais é tanta burocracia, que o dito escritor desanima. E a secretaria de educação tampouco valoriza o escritor da terra, porque compra pouquíssimos livros para as bibliotecas públicas, conforme li num artigo recente de membro da Academia Espírito-Santense de Letras.

E ninguém quer ler. É ínfimo o número de leitores de livros tradicionais. Os e-books, a internet, as resenhas, os resumos. O tempo é pequeno. As escolas de ensino médio (até universidades) não incentivam a leitura, senão de resumos, apenas para que os alunos conheçam de forma superficial as obras dos grandes autores. E não é só aqui no Brasil, não, como o afirma Nuccio Ordine, em “A utilidade do inútil”. Acompanhando a tendência, as livrarias estão desfiguradas, quando não se fecham e desaparecem. O próprio Ordine afirma isso em relação a Paris, Itália e outros países. Elas só vendem o que o mercado dita: obras da moda.

O certo é que é difícil ser escritor. Escrever um livro, talvez não seja tão difícil, se a pessoa tiver talento, e seja seu próprio patrocinador. A propósito, a tirinha de Estêvão Ribeiro acima.

Pois é, apesar de ter dito que sou escritora, na seção “Fora da Toga” do Jornal da ANAMATRA (Associação Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho), com tantos percalços, tenho minhas dúvidas, apesar de ter diversos livros publicados e ser membro de uma Academia de Letras.

Fico, portanto, com a profissão somente para brincar com as atendentes bisbilhoteiras.

Maria Francisca –julho de 2016.

 14 de setembro de 2016 

acupuntura

Ganhei uma dor na coluna cervical, que teimo inconscientemente em chamar de coluna vertical, provocando risos.  Então, semanalmente, submeto-me a uma sessão de acupuntura.

Pra você que não conhece acupuntura, explico (como o dr. Google ensina): procedimento que consiste na inserção de pequenas (e finíssimas) agulhas em pontos específicos do corpo, visando ao alívio de dores e outros efeitos locais e sistêmicos.

Pois é, na minha sessão costumeira, já com as agulhas espetadas em braços e pernas, o médico apaga as luzes e deixa-me ali por 25 minutos, com meus pensamentos, minhas angústias e minhas dores. Fecho os olhos e inicio um ritual de inspirar e expirar, para manter a calma e conseguir ficar ali, deitada, quieta, por aquele tempo que parece eterno.

De repente, um coelho de jaleco branco entra na sala, pergunta se está tudo bem e sai. Fico intrigada. Será que entrei no conto de Alice de Lewis Carroll? Resolvo sair dali e encontro o médico (ou o coelho), que me traz de volta para a mesa, e fico quieta, mas tentando me desvencilhar das amarras, ops, das agulhas, tomo uma queda e saio rolando escada abaixo. Chego a um espaço como uma praça bem movimentada, com a placa: Edifício Pedrini. E, detalhe, muitos Pedrinis. Ali, todos são da mesma família Pedrini. Vou abraçando um por um. Edilson Pedrini, competente secretário da Escola Judicial, com quem trabalhei, há muitos anos, quando vice-diretora da daquela escola, é um dos que chegam alegremente para falar comigo. Depois, o dr. Álvaro, também muito sorridente.  A dor não passa e vou andando pela grande praça, por incríveis caminhos enviesados, encontrando mais gente, mais gente, ganhando abraços de uns, beijos de outros, vou em frente, sentindo muitas dores. Meus braços já nem querem mais abraçar, de tanto que dói o esquerdo.

Daí a pouco, o pano cai, reabre, muda a cena. Já estou no tribunal, sentada entre os desembargadores, mas a dor continua ali, incessante. Peço alguém para pedir ao médico do TRT um analgésico específico e continuo na sessão, sofrendo, quando entra o dr. Álvaro Pedrini, gentileza em figura de gente, e diz: Dra. Francisca, esse analgésico é ótimo. Do que a senhora está acostumada a tomar não tenho, mas vai melhorar bem depressa. Prestando atenção no advogado que falava, apenas estendo a mão. Ele não coloca o comprimido. Então, olho para ele e digo: Pode colocar aqui, doutor Álvaro, minha mão está limpinha. Ele sorri (certamente porque sabia que minha mão não estava limpinha, nada, acostumado com os cuidados de UTI), mas coloca ali o remédio e sai. Tomo o analgésico rápido e continuo meu trabalho. Como por milagre, a dor vai passando, passando, até cessar, e a calma começa a reinar.

Acende-se a luz, o médico, dr. José Santo Pedrini, entra e pergunta: Tudo bem? Tudo ótimo, doutor. Sem dor alguma. Vai melhorar ainda mais, responde.

Então, percebi que sonhara. Assim como o remédio do dr. Álvaro Pedrini havia melhorado minha dor, há mais de dez anos (isso não foi sonho, foi  uma lembrança boa que veio naquele leve sono), outro Pedrini, com técnica diversa, mas a mesma competência e cuidado, conseguira aliviar a minha dor.

Não tenho sorte com os Pedrini?

Maria Francisca – setembro de 2016

 

 

 

 

 

 




Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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