Maria Francisca - Blog da Maria Francisca Lacerda, escritora e poeta. - page 11

 24 de setembro de 2018 

 


Avareza

Era um velho rico, mas nada tinha. Meu dinheiro? Será quanto ganhei hoje? Tempo de inflação alta, ia ao Banco todos os dias. Malvestido, acomodava-se numa cadeira, lá, como a cuidar da fortuna, mas de olho em tudo ao redor. Matador profissional, juntou dinheiro, sem amealhar amigos. Sem família, sofria. O medo dominava seus dias. Sentia medo e metia medo. Foi-se num dia de chuva. Ninguém quis saber a causa e ninguém acompanhou o féretro indigente, senão sua magra cachorrinha.

Gula
Andava penosamente rua afora, devorando uma pizza. As pernas já não aguentavam o peso daquele corpo enorme. Menino magricela, sua maldição: “Comer para crescer”. Comeu e cresceu até demais, mas alimentos perseguiam-no. Até nos sonhos sentia os cheiros. Ah! Culpa dos cheiros. Comendo voluptuosamente, distraiu-se. Não viu um seguidor à espreita. Um cão faminto viu o homem, viu o alimento, sentiu o cheiro… zaz! Num átimo, o guloso ficou a ver navios.

Inveja
Cantada em prosa e verso, por todos, a promoção de uma colega transformou Estela num espectro de gente: silenciosa, encolhida, sofrida. Relembrar o fato era um tormento, um prato indigesto. Por que ela? Remoía-se. Até que viu um extrato bancário na mesa da colega. A gota d’água: Apanhou-o, examinou-o e, raivosa, como o Mouro de Veneza, bradou: guarde seu extrato, rica. Derretida em lágrimas, trancou-se em casa, doente de solidão e tristeza, suas únicas e sinistras companhias.

Ira
Vai, depressa, dá uma surra nele, fala uma voz do lado esquerdo do ouvido do José. Não vai, não, fala outra voz, do lado direito, bem baixinho. Vou, não vou… Foi ele que espalhou aquelas notícias. E ainda foi rude. Não. Ele falou sem querer. E, agora? Vou, não vou… Vai, vai… Já espumando: ele vai me pagar. POFT! Um barulho se fez ouvir e Justo caiu estatelado no chão. Nesse momento, um rabinho balança, sorrateiro e feliz, no ombro esquerdo de José.

Luxúria
Suado, rolava na cama, de frente com sua verdade: o desejo sufocava-o. Queria sair, procurar refrigério nalguma bodega. Sem forças, remexia-se, desvestindo-se para refrescar-se, e deu de cara com a nudez convidativa de bela mulher a seu lado. Agarrou-a feliz, mas um grito agudo acordou-o. A respiração ofegante, o corpo tremendo, num frenesi de volúpia e medo, levantou-se, tentando acalmar-se. Foi beber um gole d’água. Na sala, a mulher, nua, olhar enigmático, pose de Hedonê, tomava champanhe.

Preguiça
Derramou-se na rede, o sono derramado no corpo. Cabeça, ombro, joelho e pé, tudo estagnado, como se fosse o próprio Hipnos. Uma brisa leve balançou as folhas das árvores e tocou seus cabelos. Não preciso de mais nada, aqui terei silêncio e paz. Palavras me cansam, falava de si para si. Trabalhar é tarefa pesada. Longe de casa… não tenho asas nos pés, nem sou herói. A vida é curta. Agora não. Depois, talvez depois, crie algo bom, se Palamedes vier em meu socorro.

Soberba
Qual mula madrinha, de arreios vistosos e cincerro tilintante, a encabeçar a tropa de feitos da ditadura, entrou, de repente, na sala e trovejou: Saiam já, senão, prendo todas. Não sabem que reuniões estão proibidas? As professoras entreolharam-se e foram saindo silenciosas e cabisbaixas…

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 1 de setembro de 2018 

Artigo de Sardenberg, há pouco tempo, falava sobre corrupção. De pequenas coisas que vão se avolumando, crescendo… “O que há por trás disso, antes de se falar em corrupção? A falta do “sentido da coisa pública”. O cliente do INSS acha que não tem nada demais cavar um auxílio-doença. O médico, apressado, com uma fila enorme para atender, vacila, mas, vá lá. […] . “Se não tem responsabilidade pública, se a gestão é frouxa, se parece que ninguém está ligando a mínima, por que não botar a mão na grana de verdade?”.

Isso ocorre, sim, concordo com ele, mas em todos os espaços. É o jeito brasileiro (nem sei se é só brasileiro) de fazer as coisas. Começa aos poucos e vai se alastrando na vida do indivíduo pela certeza de não ser punido. Deu certo uma vez, duas e, assim vai.

Li uma reportagem que fala sobre vazamentos de trabalhos gravados que ainda não foram ao ar. As pessoas roubam as cenas e vendem a revistas, jornais etc. Numa entrevista, o sujeito que usava dessa estratégia, não aparecendo, claro, disse que todos faziam, ele resolveu fazer também. Ninguém via, fez diversas vezes, deu certo, agora ganha um bom dinheiro.

Em Belo Horizonte, há muitos anos, precisei de uma procuração por instrumento público, telefonei para o cartório, falei que precisava do documento naquele dia, deram-me o preço. Na hora marcada, conversei com a escrivã, informei meus dados, o do procurador, os termos do mandato, como de praxe, e ela me deu a nota para pagar. Vi que o valor era menor e disse isso. Recebi a explicação de que ela havia errado no preço. Quando cheguei ao caixa com aquela nota, o caixa falou alto para a moça que me dera a nota: a nota está errada. E a taxa extra? Que taxa extra, você está doido? Foi a resposta dela. Ele ainda insistiu: não era urgente? Que é isso, rapaz? Foi a resposta e o caixa calou-se. Aí, percebi que teria uma taxa extra, mas ela, ao ver a minha carteira de juíza, retirou-a, mais do que depressa. Era um pequeno valor. Bicho miúdo? Não sei.

Mas esses dias ouvi uma história que me causou arrepio. Um amigo estava desempregado e disse que procurou trabalho de gari. Um amigo dele, pobre como ele, prometeu arranjar o trabalho, mas ele precisaria pagar trezentos reais para conseguir o emprego. Dá para acreditar nisso? Pobre explorando pobre.

Os grandes atos corruptos, aliás, nem sei se podemos dizer grandes ou pequenos, porque todos são horríveis, vemos todos os dias nas notícias, ainda mais de uns tempos para cá, com as redes sociais de vento em popa.
Os casos que relatei podem ser bicho miúdo, na visão de Sardenberg, mas esses “pequenos” atos sórdidos vão crescendo, crescendo… E depois, ninguém segura.

Qual será o remédio para esses males, doutor?

Fico a pensar.

Maria Francisca  –  agosto de 2018.

 5 de agosto de 2018 


Diz Eduardo Galeano (Desmemória/3, in Livro dos Abraços) que, nas Ilhas Francesas do Caribe, Napoleão restabeleceu a escravidão, em 1801. A sangue e fogo, teria ele obrigado os negros livres a voltarem a ser escravos nas plantações.
Lemos essas histórias e ficamos arrepiados. Lembramos das agruras por que passaram nossos negros escravos que, segundo pensamos, foram libertados. Leonardo Boff (“A Gazeta” de 22.02.2017), questiona: No Brasil, fizemos a abolição da escravidão, mas quando faremos a abolição da fome”? E acrescenta: “Cerca de metade da humanidade vive em situação de penúria, seja com pobreza extrema, seja simplesmente com pobreza, ao lado da mais aviltante riqueza”.
Será que abolimos, mesmo, a escravidão? Não. Como a fome ainda não foi abolida, trabalhadores livres, negros ou não, vivem submetidos à escravidão contemporânea, violação dos direitos humanos reconhecida pelo Brasil, por pressão de organismos internacionais, em 1995.
Famílias inteiras são recrutadas em cidades do interior, onde a mão de obra é farta e o emprego raro, com promessa de trabalho, moradia e salário. Cheios de esperança, a pobreza extrema cria oásis de prosperidade na imaginação dessas pessoas, levando-as a acreditarem numa vida melhor, em qualquer lugar fora dali. E lá vão eles todos para a colheita de café, o corte de cana, as carvoarias e até para fábricas de roupas. Lá, não há o paraíso esperado. Passam a viver como escravos. Sem correntes, mas sem liberdade, sem dignidade, explorados.
Como exemplo, numa fiscalização em Sooretama (ES) em 2014, os auditores encontraram esgoto aberto, passando por dentro de um dos abrigos e sendo despejado ao lado dos dormitórios. Os trabalhadores, segundo contaram, dormiam e alimentavam-se junto àquela sujeira, sentindo o cheiro horrível que dali emanava. Recentemente, auditores Fiscais, acompanhados da Polícia Federal libertaram uma família de nove pessoas vivendo em condição degradante em Brejetuba (ES).
Todos conhecem as histórias dos imigrantes estrangeiros nas confecções em São Paulo, fartamente divulgadas pela imprensa. Muitas vezes adquirimos essas roupas a baixo preço, sem saber que mãos calosas, sofridas e famintas esperam por essa vida digna, onde todos são iguais, prometida pela Constituição da República.
É inacreditável: não podem sair desses trabalhos degradantes? Muita gente se pergunta. Por que não fogem? O pior é que, por falta de políticas públicas, os que conseguem fugir, mesmo correndo risco de vida, ou os que são libertados pelas autoridades, tendem a retornar a sua cidade de origem, na mesma miséria, facilitando novo aliciamento para outro trabalho, onde serão novamente explorados, perpetuando o ciclo infame.
E os que permanecem nesse trabalho-castigo, sem vez e voz, trabalham, trabalham, esperando, por sua própria luta, poder um dia sair daquele sofrimento, libertar-se, mas nunca conseguem pagar a dívida da viagem e da comida e até das ferramentas. Valores sempre maiores do que recebem de seus empregadores invisíveis: contratados por um, trabalham para outro, parceiro de outro que terceirizou o corte de cana, o serviço da carvoaria ou, mesmo, a confecção da roupa. É como no poema “A quadrilha” de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história”.
Quando são encontrados em condição degradante, difícil descobrir o responsável por aquela história real. O dono da empresa (ou fazenda) é sempre o J. Pinto Fernandes, do Drummond: não entrou na história. Aparece como o inocente, não fez nada, arrendou o imóvel, terceirizou os serviços etc.
Só nos resta reconhecer, como os “heróis” de George Orwell – Todos são iguais, mas uns são mais iguais que outros.
Até quando?

Maria Francisca – Publicado em dezembro de 2017, na Revista Literária Café-com-Letras, Ano 15, nº 15.

 27 de junho de 2018 

Vó, você sabe fazer calda de chocolate? Não, Leozinho, por quê? É porque eu queria…Se você me ensinar, eu faço. Então, tá. Preste atenção, vó: Um copo de água, duas colheres de leite em pó, duas colheres de mucilon, uma colher de toddy. Mexa bem e está pronto. Fácil, não é? Isso sem tirar os olhos da TV, porque estaria jogando um jogo muito importante. E, até aquele momento, segundo ele, eu não poderia sair de perto, porque atuava como sua assistente.

Com a permissão do “chefe”, fui pra cozinha, fiz a tal calda de chocolate, Leozinho experimentou e disse: Está uma delícia. Você caprichou! Sabe por que ficou gostosa, Leozinho? Porque foi você quem me ensinou. Ele, concentrado no joguinho, sorrindo: É?

Como disse Leozinho, de vez em quando, capricho. Arvoro-me em boa cozinheira. Gosto, sei fazer alguma coisa, mas não tenho aquela prática de fazer tudo rápido, gostoso e bonito, como uma boa gourmet o faria.

Tenho meus truques, claro. Na primeira vez de uma receita, cumpro todo o ritual. Depois, vou mudando aqui e ali, até ficar do meu jeito.
Mas não sei se acontece com você o que acontece comigo. Quando copio uma receita de uma pessoa de quem gosto muito, a comida fica uma delícia. Foi por isso que falei com Leozinho que a calda ficou gostosa. Foi ele quem me ensinou, ora.

O certo é que as receitas ensinadas pelos amigos ficam todas gostosas, mas há duas que merecem maior registro. Não erro nunca. Uma é de uma tortinha de frango da Zilá, minha comadre. É muito gostosa. Todos saboreiam com prazer. Faço de vez em quando. A outra é a broa da Janice, outra comadre querida. Ela diz que a receita não é dela. Não interessa. Já está registrada assim: Broa da Janice. Os direitos autorais desta feita que se cuidem…

Veja como tenho razão. O filme “Como água para chocolate”, baseado no livro homônimo, conta a história de Tita, uma moça que proporcionava afetos e sensações para quem tinha o privilégio de desfrutar de seus pratos. Ela transmitia para a comida os sentimentos que nutria no momento em que trabalhava aqueles quitutes. Com as adversidades da vida, nem sempre Tita estava feliz. Ocorreu que fazendo um bolo de casamento, Tita estava tão infeliz, que deixou cair lágrimas na massa do bolo, adoecendo todas as pessoas que dele comeram.

Explicado está como as receitas dessas minhas amigas ficam gostosas. Ali está o amor e o carinho que tenho por elas. Então, a calda de chocolate do Leozinho não tinha, mesmo, como ficar ruim.

O resultado final é de “dotô cumê e lambê os beiço”, como diria um velho amigo de minha mãe.

Publicada, inicialmente, no Facebook.
Maria Francisca – abril de 2016.

 18 de junho de 2018 

 

 

 

 

Dizem que os velhos são todos teimosos. E são, mesmo. Eu sou. Mas esses, dessa história que me contaram, passam da medida, como diria minha mãe.
Casados há mais de 60 anos, Mariana e Joaquim viviam numa cidadezinha, aliás, numa Vila, nos confins de Minas Gerais. Não em Confins, onde fica o aeroporto Tancredo Neves, mas num fim de mundo, num cacha prego, talvez um lugar parecido com o do personagem Crisóstomo, de Valter Hugo Mãe. Só não seria à beira-mar, porque, como se sabe, Minas só tem “Mar de Espanha”.
Pois bem. Viviam ali tranquilamente. Dividiam as tarefas domésticas. Saiam só para ir à Igreja, mesmo assim, de manhã. Dormiam cedo, como a maioria dos idosos. Recebiam só a visita dos vizinhos que ali acorriam quando necessário. Não se sabia se tinham parentes, porque nunca se viu alguém por lá.
Num dia muito frio, foram deitar-se mais cedo do que de costume.
Estavam quase dormindo, quando Mariana lembrou-se: Joaquim, você fechou aporta? Eu não, respondeu. Então vá fechar, porque ficou aberta. Com esse frio? Vá você, Mariana. Não. Vá você.
E assim ficaram teimando, teimando, até que resolveram: Vamos fazer uma aposta: Quem conversar primeiro fecha a porta. E silenciaram, cada um vigiando o outro.
O tempo passava, nenhum falava… e a porta esperando.
Já bem tarde, os vizinhos voltavam da festa junina e repararam a porta aberta. Assustaram-se. Ainda mais tudo escuro.
Pé ante pé, foram entrando na casa e sentindo aquele silêncio soturno, até chegarem ao quarto do casal e darem com eles ali quietinhos. Será que estão mortos? Com muito medo, acenderam as luzes e viram que estavam vivos. Falaram alto, chamaram-nos pelos nomes, gritaram…Silêncio. Atônitos, mandaram um mensageiro, correndo, chamar o médico, que veio afoito, já trazendo toda a parafernália de que dispunha em casa, como único médico daquela Vila.
Ausculta-os, apalpa aqui, apalpa acolá… olha a pressão, olha a temperatura e nada encontra. Nessa altura, a vila toda já estava por ali: uns por curiosidade, outros para ajudar e outros por nada. O médico, então, falou com a vizinha que o havia chamado: Vai ser o jeito dar uma injeção de “5 HTP”. Quem sabe eles acordam?
Preparou a injeção e pensou alto: Em quem aplico primeiro? Joaquim, que morria de medo de injeção, deu um pulo e gritou: NELA! Ela sentou-se na cama, deu boa noite a todos, na maior tranquilidade, e disse: Viu? Não adiantou nada. Vai ter que fechar a porta.
E silenciaram. Por mais que perguntassem o que houve, nem Seu Joaquim, nem Dona Mariana responderam. Nem ao médico quiseram responder. Ou melhor, deram de calado a resposta, como diria uma amiga.
Então, foram todos saindo decepcionados e silentes. E imagino mais: com uma raiva danada daqueles velhos teimosos.
Até hoje, naquela Vila, agora cidade, mesmo tendo uma rua só, como muitas em MG, comenta-se essa história que, de tanto ser contata, tem-se por verdadeira.

 29 de maio de 2018 

 

“Passo a passo, o guarda-noturno vai subindo a rua. Já não apita: vai caminhando descansadamente, como quem passeia, como quem pensa, como um poeta numa alameda silenciosa, sob árvores em flor”, diz Cecília Meireles, na crônica “O Anjo da noite”.

Os moradores podiam dormir sossegados, porque havia um “anjo sem asas, porém armado”, a cuidar do sono de todos.

Há muito não vejo esses “anjos”. Acho que caíram de moda. E, coitados, seriam as primeiras vítimas desse nosso mundo violento. A leitura dessa crônica trouxe saudosas e boas lembranças de figuras interessantes de cidades do interior. Uma delas, era o carteiro de minha cidade. Ele conhecia todas as pessoas, sabia quem namorava quem, onde morava etc. Quando trazia uma carta (sim, naquele tempo a comunicação era toda por carta), vinha em sua bicicleta, chegava perto do destinatário e balançava o envelope no ar. A pessoa corria para receber, ele saia correndo na bicicleta, rindo, e saíamos todas correndo atrás dele. Às vezes, alcançávamos a bicicleta. Era uma festa. Outras vezes, a dona da correspondência tinha que pagar uma prenda para recebê-la. Isso nos divertia e a ele também.

Outra figura era o acendedor de luzes. Tínhamos luz elétrica, mas nada era automático. Então, um profissional percorria ruas e mais ruas, acionando um interruptor. Ia Manoel, pedalando alegremente sua bicicleta, portando um enorme bastão. Nem precisava descer do veículo, tão prático estava em seu ofício. Dava uma parada, elevada o cajado, acionava a chave elétrica e a luz se fazia.

Não me lembro de dia algum sem luz. Manoel da Luz (assim era conhecido por todos, e gostava do apelido) era incansável. Estava sempre alegre. Sentia-se feliz naquele ofício que considerava importante. E era.

Penso nele como o acendedor de lampiões do Pequeno Príncipe, de Exupéry. Morava num planeta tão pequeno que mal acendia o lampião, apagava-o, porque já era novo dia. E assim entre bom-dia e boa-noite, levava a vida. E o Pequeno Príncipe, ao vê-lo, disse: “Quando acende o lampião, é como se fizesse nascer uma estrela a mais, uma flor a mais. Quando apaga o lampião, faz dormir a flor e a estrela. É uma bela ocupação. E verdadeiramente útil, além de bela”.

Manoel deve ter lido o Pequeno Príncipe e sentido a beleza e a importância de seu trabalho. Por isso, era tão feliz.

Essas figuras interessantes todas sumiram de nossas ruas. A modernidade tem dessas coisas. Restaram apenas os sem-teto, os sem-comida, os sem-tudo, ao relento, faça chuva, faça sol, faça frio… E não acendem nenhuma estrela, não fazem nascer nenhuma flor. Só têm a desesperança, estampada nos tristes e mortiços olhos.

Maria Francisca – maio de 2018.

 24 de março de 2018 

 


Não. Não vou falar de política. Não nesse tempo de intolerância. Basta um nome mal-ouvido e você se arrisca a ganhar um palavrão.  Falo de caminhos por onde andar: do lado direito ou do lado esquerdo.
Estava caminhando no calçadão da Praia da Costa, pensando nisso. Em Belo Horizonte, no Parque das Gameleiras, há um calçadão e por ali transitam muitas pessoas. Lá, registraram a forma de se postar na caminhada. Há indicação de quem vai e de quem vem, mostrando por onde se deve caminhar.
Aqui, cada um que se vire. Misture-se com cachorros, bicicletas, carrinhos de picolés, amigos em grupo se confraternizando e por aí vai. Eu, por exemplo, vou em ziguezague: ora na direita, ora na esquerda.
Fui para os lados de Itaparica esta manhã. Ali a coisa piora, porque o espaço é estreito e, em determinado lugar, a Prefeitura resolveu dividir a calçada com os ciclistas. Assim, se duas pessoas andarem juntas e encontrarem uma terceira em direção oposta, a confusão está feita. Ninguém sai para dar espaço ao outro. Nunca vi isso em lugar algum, a não ser aqui. E quando resolvem vir mais de dois? Pior, mesmo, é quando vem um bando, chegando da rua, atravessando a calçada para ir à praia, cheio de cadeiras de praia, sacolas, caixas de isopor e parte pra cima de você, sem nem sequer dar uma olhada. Parecem todos dormentes, na expressão da minha mãe, quando quer dizer que a pessoa não presta atenção. Ou você para, ou pula para um lado, se tiver espaço, ou tromba em todos. E vamos ficamos todos sem educação.
Nos fins de semana e nos dias de carnaval, em que escolas e algumas instituições não funcionam, a coisa fica preta. O fluxo de gente aumenta e todos têm direito de ir e vir, mas uns têm mais direitos, como sempre.
Uns querem tirar fotos justo no lugar de maior fluxo. Aí, quem vem ou vai tem que parar para dar a oportunidade das fotos e vão se aglomerando pessoas.
Hoje estava um caos. Nos lugares mais estreitos é que os vendedores gostam de colocar seus produtos à venda. Talvez para serem melhor vistos. Uma barraca com carrinho vendendo caranguejos ali estava.
Vinha um senhor praticando corrida indo em direção à tal barraca e um grupo estava parado em frente, talvez tentando comprar os tais caranguejos, mas impedindo a passagem. De repente, alguém vinha atravessando e trombou no homem. Ele desequilibrou-se, tropeçou (essas calçadas estão cheias de buracos), caiu sobre o grupo e sobre o carrinho, e lá se foram todos ao chão, misturados com caranguejos e aquele “maravilhoso” cheiro que deles emana. Algumas pessoas assustadas, outras olhavam penalizadas, mas o deleite foi de alguns que morriam de rir, deitados na areia.
Eu ainda tive tempo de dar a volta, passar pela calçada em frente, dar no pé, porque, com certeza, teria mais confusão, do tipo: E, aí, quem paga a mercadoria que se perdeu naquele areal? Ninguém ia querer ter prejuízo. Declarar-se culpado pela confusão, então…
Ou será que a vendedora aproveitaria quando as pessoas saíssem e cataria todos os caranguejos, para depois vendê-los?

Tudo é possível nesse mundo de “espertos”.
Não sei, mas a direita e esquerda não saia de minha cabeça. E, como num mantra, fui repetindo baixo e pausadamente: ora esquerda, ora direita. Ziguezagueando, cheguei em casa.

Maria Francisca – Carnaval de 2018.

 

 

 

 12 de março de 2018 

Os bosques apodrecem e se extinguem
A nuvem se desfaz em chuva sobre o solo
E o homem lavra a terra, e sob a terra jaz,
E após muitos verões também o cisne morre.
Tennyson (Apud Huxley)

Terminei a leitura de “Muito além do inverno”,  de Isabel Allende, e deu-me vontade de reler “A casa dos Espíritos”, só para relembrar a história de Clara, sem me preocupar com a parte política do livro (excelente, aliás), porque nossa situação nesse campo está tão confusa, que… Bem, Clara, sem doença alguma aparente, soube que iria morrer, aceitou-o e começou a preparação espiritual, segundo  sua crença. Morreu ainda jovem, e em paz.
Relembro “Também o Cisne morre”, de Aldous Huxley. Conta a história de um ricaço, como dizíamos antigamente, que contratou um médico inescrupuloso, por uma soma fabulosa, para realizar pesquisas sobre a longevidade, no intuito de protelar a morte. Mesmo depois de visitar uma figura longeva, mas de aparência simiesca, decidiu se submeter à experiência. No final do livro, o dito médico mostra ao milionário o resultado de sua pesquisa: pessoas transformadas em monstros ambulantes. Ou, como na contracapa do livro: Huxley termina a sátira ao desejo de viver eternamente, com uma nota de horror.
Por uma dessas coincidências, uma reportagem no Jornal A Tribuna: “Transfusão de sangue para voltar à juventude!” Será? Está escrito: “Milionários pagam caro por transfusões para se manterem jovens, técnica baseada em estudos do século XIX realizado com ratos”. Já havia lido sobre essa experiência e pensei na época: Credo! Nada mais há para inventar. Daqui a algum tempo, mudam o rumo da pesquisa e falam que não deu certo. Agora, o assunto volta à tona e a reportagem registra a fala do médico Jesse Karmazin para quem o tratamento reverteria o envelhecimento e curaria muitos males, como o diabetes e o Alzheimer.
Já falei sobre a longevidade (no livro “Caminhos”). Citei o personagem Saint Germain (de uma sátira de Humberto Eco), longevo de mais de 400 anos, mas jovem. Claro, uma sátira.
O problema da velhice não é a velhice, mas a doença. E, como disse a médica especialista em cuidados paliativos, Ana Claudia Quintana Arantes, “Quando a doença encontra um ser humano, ela produz uma melodia única, que se chama “sofrimento”. As doenças repetem-se nas pessoas. Mas o sofrimento, não. O sofrimento é único, cada um tem o seu, porque o ser humano é único. E na hora da doença é que toma consciência de sua finitude.”
E as doenças não cessam de surgir. Encontra-se a cura de uma, aparece outra. Agora, já se fala na vacina quadrivalente contra gripe, porque o vírus modifica-se e a trivalente já não serve.
Mas seria uma maravilha ser velho com aparência e saúde de jovem, como na sátira de Humberto Eco. E a pesquisa de hoje pretende justamente isso, pois fala da cura de doenças e renovação celular. Trata-se, entretanto, do resultado do primeiro teste clínico, como teria dito o médico. E, se essa tese prevalecer, não será minha geração que verá essa novidade que nem sei se é tão maravilhosa assim. Viver, viver e viver…Renovaria minha cabeça para eu pensar como jovem? Ou eu sofreria vendo as mudanças sem conseguir adaptar-me a elas? Eu não teria mais doença alguma? Seria uma velha resmungona e chata? Ninguém me toleraria e eu viveria isolada. Ah! que ideia! Ninguém fica pra semente.
Aí, já começo a imaginar-me uma semente. Aqui em casa tem brotado tudo. As cebolas de cabeça na geladeira, a gengibre no cesto, as batatas-doces…E ficam ali com seus brotos crescendo e enfeitando a cozinha, pelo menos por um tempo. Depois, fenecem, sem terreno propício para continuarem vicejando. E eu? Já imaginou se eu for ficando velha, ou, então, com essa nova experiência, começar a brotar? O que poderiam fazer com os brotos? Não teriam que me plantar para começar tudo outra vez? Não, aí já é demais.
Então, ficar pra semente? Eu, não!
Como no poema de Tennyson:

“Os bosques apodrecem e se extinguem
A nuvem se desfaz em chuva sobre o solo
E o homem lavra a terra, e sob a terra jaz,
E após muitos verões também o cisne morre.”

Por que eu, simples criatura humana, ficaria imortal neste mundo? Quando Deus quiser, partirei. E é bom que eu não saiba a hora, porque não teria a sabedoria e a aceitação da Clara, de Isabel Allende.
E você?

 

 

 

 

 

 

 18 de fevereiro de 2018 

Causos – 6º da série


Não senti gastura…
Quando cheguei ao ES, algumas pessoas brincavam sobre palavras originadas aqui no Estado. Eu dizia: Duas, pelo menos, não eram exclusivas de capixaba: gastura e pocar. Sempre falamos essas palavras em minha cidade Natal, no nordeste de MG.
Quanto à gastura, tenho uma lembrança de criança. Uma senhora bem velhinha morava na minha rua e  era caduca, segundo nossa impressão da época. Qualquer demência era logo chamada de caduquice. Pois bem, essa senhora tinha família, moradia boa, mas vivia por ali, zanzando. Tinha-se a impressão de que ninguém se importava com ela. Ia muito à minha casa, onde aprendemos sempre respeitar as pessoas, de forma que ela se sentia em casa.  Sentava-se na sala, escutava as conversas, conversava, outras vezes ia para o quintal, onde estávamos com outras crianças e até participava das brincadeiras, como se ela própria criança fosse. Até subia nos balanços e pedia para alguém balançá-la. Deleitava-se. Cochilava tanto no balanço, como sentada, na sala de  nossa casa.
Um dia, ela estava escutando nossas conversas sentadinha e até se balançando, soltou o maior pum. Meu irmão, muito levado, disse: Que foi isso, dona Cesária? Ela respondeu: O quê? E ele: A senhora peidou. Ela: Será que fui eu? Não senti gastura…

 

 2 de fevereiro de 2018 

 

Certa vez, numa conversa em grupo, alguém disse a um amigo: Você engordou. Ele, na mesma hora, respondeu, irônico: Interessante, ninguém fala com mulher alguma que ela engordou. Todos rimos.
Ele tem razão. Também ninguém pergunta a uma mulher a sua idade. E já ouvi alguém dizer o seguinte: Se perguntar e ela disser a idade certa, fuja dessa mulher. Ela será capaz de tudo, já que assume a própria idade… E eu: Fujam de mim, então, porque tenho coragem de declarar bem alto quanto anos de vida tenho. E com orgulho. Já escrevi sobre isso. Adianta esconder? É até ridículo, querer-se parecer mais jovem do que se é.
Vinícius de Moraes teria cunhado a expressão: “As feias que me desculpem, mas beleza é fundamental”
Por que “as feias”? Por que não os feios? Só as mulheres devem ser belas? Homens podem ser feios como Vinícius? Podem, sim. E podem ser gordos, carecas etc. Nossa sociedade é machista.
Homens com cabelos grisalhos é lindo, mulher, se não pintar as mechas brancas, é relaxada. Ainda bem que muitas mulheres estão dando um thauzinho pra essa exigência e deixando os cabelos naturais. Da mesma forma, estão assumindo o corpo como é, sem a exigência de magreza, desde que tenham saúde. Ninguém precisa ser Gisele Budchen.
Dia 29/01, vendo o “Jornal Nacional”, lembrei-me disso, porque vi César Tralli e Monalisa Perrone na bancada. Claro, ambos muito competentes, senão, não estariam ali.
A diferença é que a mulher, além de competente, tem que ser bonita, como a Monalisa Perrone. O homem só precisa ser competente, como César Tralli, que me desculpe, é bem feiinho. Observem os apresentadores: muitos são feios. Já viram alguma mulher feia na bancada de algum jornal? Mulheres também não podem ser velhas. Já alguns homens são bem velhinhos, como Sérgio Chapelin e Paulo Henrique Amorim. Uma exceção que confirma a regra é Glória Maria, com 68 anos. Há alguma apresentadora de 76 anos? Não? Pois é. Pode ser competente, pode ser bonita, mas é velha.
A televisão é uma escola para muita gente: copiam modelos de roupa, de cabelos, estilo de vida… E continuam dando lições horríveis para os telespectadores, com músicas esquisitas pra não dizer adjetivo pior, programas mais do que esquisitos, cenas tristes e por aí vai.
Ontem (01.02), li no site “Justificando, da Carta Capital” um belo texto de duas colegas sobre a letra machista de uma música funk, que, felizmente, foi retirada das redes sociais Segundo elas, os autores nem se desculparam daquela coisa horrorosa. Disseram que foram mal interpretados. A culpa ainda é da leitura. Ora, ora.
E assim vamos cultivando nosso machismo dia a dia e nada muda, apesar de estarmos no século XXI.

Maria Francisca – fevereiro de 2018.




Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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