Maria Francisca - Blog da Maria Francisca Lacerda, escritora e poeta. - page 10

 10 de maio de 2019 

Um cheiro forte impregnou a sala. Assustados, corremos para fora.
Não demorou, viu-se uma nuvem escura sob a luz do poste, na rua. E tudo se encheu daquela horrível fumaça que tanto mal faz ao nosso já corroído pulmão.
Busca daqui, busca dali, e apareceu: alguém colocou fogo num sofá que outro alguém teria colocado na rua.
Dia seguinte, o estrago daqueles dois: o incendiário e o desleixado, ambos mal-educados, para não dizer coisa pior. Flores e folhagens daquele canteiro, que a duras penas tinham crescido, simplesmente pelo carinho e a dedicação de um morador, jaziam retorcidas, mortas, caídas no chão. Sem tempo de receber socorro.
A vida já pede socorro todos os dias, mas, mesmo assim, aparecem esses seres insensíveis, que só vêm para destruir.
Em volta das plantas, os vizinhos olhavam desconsolados e silenciosos. A tristeza era patente. Todos num só pensar: quem teria sido o autor de tamanha excrescência?
Pouco a pouco, foram retornando aos lares, de cabeça baixa. Amanhã, deverão replantar as flores e folhagens e tentar recuperar a beleza de outrora daquele espaço.
Esse fato aconteceu em Cel. Fabriciano, à beira da mata ciliar, que contorna todo o Bairro Amaro Lanari, onde mora minha mãe.
Não houve vítimas humanas e o espaço pode ser recuperado facilmente.
O que dizer do incêndio que devorou parte do Museu Nacional? Um acervo centenário virou cinzas. Sem vítimas humanas, mas, mesmo assim, uma tristeza. Será restaurado? Ninguém sabe como, nem quando, se falta dinheiro para tudo neste País.
E a bela Catedral de Notre Dame? Essa, sim, será restaurada a toque de caixa, porque pessoas ricas farão gordas doações para que isso ocorra.
O que houve? Todos ficam a perguntar.
No Espírito Santo, como nos dá notícia “A Gazeta”, fogo destrói 3 lojas em prédio histórico no Centro de Vitória, um outro incêndio atinge dois galpões de uma empresa, em Vila Velha e, mais outro, em Aracruz, na área de suprimentos de uma empresa. Todos no mesmo dia. Felizmente, não houve feridos. Na UFES, com tantos percalços pelo corte de verbas, prejuízo com incêndio ocorrido na manhã de 03.05, deixa sem energia e sem o restante das atividades, portanto, toda a Universidade.
Ninguém sabe por que, nem como se deram esses incêndios.
Mas tragédias humanas, com vidas e mais vidas ceifadas, não nos faltam: Mariana, Brumadinho, Muzema… E se tudo isso fosse um desastre anunciado, como muitos estão a bradar? Nem gosto de pensar. Tamanha insensibilidade seria um pecado imperdoável. E quem recupera a vida humana?
E quando o fogo é de bombas, de armas letais, pela maldade das pessoas, como ocorreu no Sri Lanka? Morreu tanta gente…
Enfim, a fumaça que nos sufoca é a mesma fumaça que anuncia a desgraça e previne destroços. O fogo que dá vida e aquece, é o mesmo fogo que destrói vidas, cidades e florestas.
Deveríamos ficar atentos, mas humanos, demasiado humanos, todos somos, como diria Padre Fábio de Melo.
Maria Francisca – maio de 2019

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 1 de maio de 2019 

Esses dias, assistia à palestra “Educação e Empreendedorismo Social, no Teatro da UFES, e a palestrante falou de uma pergunta de um aluno: Professora, você não trabalha? Só dá aula? Ela, então, lembrou-se do significado da palavra “trabalho”, e, partir daí, prefere dizer que é só professora.Fiquei pensando nisso, mas discordando dela.
Realmente, o trabalho foi concebido, no início, como um castigo, uma dor. Vemos, no Gênesis, que, quando Deus expulsou Adão e Eva do Paraíso, disse: “[…]maldita a terra por tua causa. Tirarás dela, com trabalhos penosos, o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos e tu comerás a erva da terra. Comerás o pão com o suor do teu rosto (3, 17-19)”.
Em verdade, conforme os linguistas, a palavra trabalho tem a mesma raiz da palavra latina poena; veio no sentido de tortura, ou tripaliare, torturar com tripalium, máquina de três pontas.
E assim foi durante anos e anos. Trabalho era coisa de escravos e servos, os quais pagavam seu sustento “com o suor de seus rostos”. Trabalhavam em troca de comida que era ruim e pouca.
O tempo foi passando e o sistema foi mudando, até chegarmos ao contrato de trabalho, mas, ainda assim, penoso, sofrido, explorado. Longas horas por dia, para ao fim do mês, o trabalhador receber um salário que mal dava para alimentar-se.
Com a encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, em 1891, é que a Igreja revisitou a frase famosa “comerás o pão com o suor do teu rosto”. O Papa alertou que ‘É vergonhoso e desumano tratar os homens como mero instrumento de lucro e disse mais: Ao Estado cabe velar para que, nas relações de trabalho, não sejam lesados nem o corpo nem a alma do trabalhador, pessoa humana”. Como revela João Paulo II, a Igreja está convencida de que o trabalho constitui uma dimensão fundamental do homem sobre a terra, porque o homem, como imagem de Deus, recebeu o mandato de seu criador para dominar a terra.
É interessante como o texto da Rerum Novarum é atual. Fala sobre a proteção do trabalho dos operários, das mulheres e das crianças, das horas de trabalho, do descanso, dos trabalhos penosos, dos salários. Esses, segundo a encíclica, devem ser suficientes à manutenção do trabalhador e de sua família. Parece até que estamos lendo uma lei, em face da modernidade de tais exortações.
A conclusão é que o trabalho é a afirmação do homem como criatura. Qualquer trabalho que se realize, em dependência ou autonomia, coloca o homem como parceiro na obra da criação. Ele domina o mundo e o transforma com seu trabalho. Então, não existe trabalho que não tenha dignidade.
Entretanto, vemos, hoje, trabalhadores mutilados, doentes, porque os homens utilizam os homens como mero instrumento de lucro, ao contrário da pregação da Rerum Novarum. Aí o trabalho se torna um castigo e não um caminho para a libertação.
Muito se tem falado sobre a crise do trabalho, da sociedade salarial, do enxugamento das empresas, dos serviços públicos, do desemprego. Enfim, vemos, cada vez mais, a precarização das relações de trabalho. O trabalho informal adquire ares de modernidade. Sinônimo, por décadas, de subemprego, desemprego disfarçado e subdesenvolvimento do terceiro mundo, a informalidade deixou de ser exclusividade dos pobres, atingindo, cada vez mais, categorias médias de trabalhadores qualificados que passam a “prestadores de serviços”, consultores, assessores, terceirizados em geral e uma infinidade de variações. Essa terceirização, que cresceu como erva daninha, é uma realidade sem retorno. É a velha subcontratação com roupagem nova. E a terceirização alastrou-se, inclusive para a atividade-fim das empresas, com aval de nossas mais altas autoridades.
Então, estamos vendo o fim dos direitos? Parece que sim.
A última reforma na legislação trabalhista, realizada com a promessa de mais empregos, está se mostrando um desastre. A culpa seria da lei social, da Justiça do Trabalho, segundo constou da propaganda para que o trabalhador aceitasse a mudança. Criou-se uma farsa. Se você tiver menos direitos, você terá emprego. E todos começaram a pensar favoravelmente à reforma. Cadê os empregos? Sumiram.
Esses dias, vi um anúncio de contratação de professor. Não sei se verdade ou mentira, porque as redes sociais têm de tudo. O professor teria que registrar uma MEI para poder ser contratado. Não teria, pois, direito a férias, repouso semanal remunerado etc.

Como disse Marcelo D’Ambroso, o trabalho não é mercadoria, é um direito humano. Com efeito, o artigo 23 da Declaração Universal de Direitos humanos, que este ano faz 70 anos, deixou patente:
“Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego (…) todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social (…)”.
Agora, vivemos a era dos infoproletários. Antes, os acidentes do trabalho mutilavam o corpo e tirava muita gente do emprego. Hoje, trabalhador não pode se desligar do trabalho. Com celular, computador, o trabalhador deve estar sempre a postos. A tecnologia mutila a mente e tira do emprego, da mesma forma. Isso afeta tanto trabalhos simples, como de diretores, gerentes etc.
Vi, no Fantástico de 28/04, o depoimento de um motorista de aplicativo. Ele contou: estava tão cansado, que teve um passageiro imaginário. Assim, temos depressão, suicídios, tentativa de suicídio, síndrome do pânico e por aí vai.
É preciso que a sociedade acorde.
Na era tecnológica, ainda temos trabalho escravo, trabalho infantil, crianças fora da escola, pais e mães de família sem trabalho, fraudes e tudo o mais que afronta a dignidade do ser humano.
Penso que, no dia em todos se conscientizarem de que sem trabalho digno não há cidadania, poderemos dizer, como Thiago de Mello:
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Maria Francisca – 1° de maio de 2019.

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 14 de abril de 2019 

Quando comecei a trabalhar no antigo INPS (hoje INSS), final dos anos 60, era responsável pelo cumprimento do orçamento, emissão de ordem de pagamento, pedidos de material, escala de férias do pessoal, correio etc. Era, como se diz, uma faz tudo.

A Agência era um caos. Nem faxineira havia. Eu limpava até o sanitário dos homens, pra não ficar sentindo aquele cheiro característico. Poucos servidores, muito trabalho, eu não sabia trabalhar direito, não havia quem me ensinasse, saía muita coisa errada, eu vivia sempre aflita naquela situação.

Se adoecesse um servidor, quem lá estivesse, sabendo o serviço, ou não, tinha o dever de cuidar daquele trabalho. Quando faltava o servidor que atendia o público, era um problema sério.

E acontecia muitas vezes. Eu, mais realista que o rei, apesar de não entender nada de benefício, não podia ver aquele povo ali sem atendimento, já que muitos vinham de longe e chegavam de madrugada para entrar na fila. Então, para não deixar aquela fila enorme esperando não sei até quando, avisava ao pessoal que eu sabia pouco do atendimento, mas ia tentar até que chegasse alguém. Os segurados, coitados, sem alternativa, aceitavam, esperavam, esperavam, na maior paciência (e ainda me agradeciam). E eu ia fazendo o que podia. E, naquele tempo, era tudo anotado em ficha. Computador? Só em Belo Horizonte, na Central. As fichas sumiam e eu procurava, procurava…

Um dia, repetida a ocorrência, eu sozinha naquela Agência, fui atendendo aquelas pessoas, até que chegou alguém para me substituir. Eu já estava num estado de nervo que não aguentava. Para me acalmar, peguei um “bolo” de barbante, todo emaranhado e comecei a desembaraçar devagar, como exercício.

Nisso, entrou um senhor para falar comigo. Eu pedi que ele se sentasse e esperasse um pouco. Ele sentou-se. Depois de um tempinho, parei, olhei pra ele e notei que havia desembaraçado um “bolo” de barbante. Já calma, deixei o exercício e disse: Pois não, senhor.

Ele notou minha surpresa e falou-me: “Cheguei aqui muito nervoso. Já tinha visto a senhora lá fora atendendo aquele povo. Esperei bastante. Entrei e vi que desembaraçava barbante. Como me pediu para esperar um pouco, deduzi que queria acalmar-se antes de me atender. Eu costumo fazer isso também. Por isso, resolvi segui-la na atividade. Sei que é um ótimo exercício”.

Ambos sorrimos, conversamos, resolvi o que ele precisava resolver e ele se foi agradecido. Passei o resto do dia em paz e creio que ele também.

Maria Francisca – Tarde de domingo de janeiro de 2019

 

 

 5 de março de 2019 

Numa dessas pisadas em falso em passeio irregular, consegui uma dor no quadril que está se arrastando. Fazendo um parêntese, passei a dizer que tenho dor nos quartos, porque uma piada que me fez rir muito foi sobre os médicos cubanos. Conta-se que, em Minas Gerais, não conseguiam receitar porque não conheciam os nomes de enfermidades ouvidas nos consultórios. Entre eles, espinhela caída e a famosa dor “nos quarto” …. Pois é, por conta dessa dor desconhecida dos cubanos, tive que fazer fisioterapia, peregrinando diariamente, por vinte dias, a uma clínica.

Aí, deitada numa maca, recebendo os cuidados, ouvidos apurados para escutar as conversas na sala ao lado. Hoje, um imenso debate se fazia. O assunto do momento é a barragem de rejeitos de Brumadinho que ceifou a vida de muitos e nem se sabe, ainda, quantos, trazendo sofrimento e dor.
Pois bem. Cada uma das vozes que eu ouvia, todas de mulheres, se manifestava de uma forma tão contundente, que dava a impressão de ser, cada uma, especialista no assunto de barragens, empresas mineradoras, siderúrgicas etc.

No calçadão, ouço as coisas mais absurdas sobre Direito, Processo, segurança jurídica. Aliás, essa expressão caiu no gosto popular. Tudo agora é segurança jurídica. Outro dia, um senhor falava sobre a lei processual e disse que as provas são difíceis, por isso, os réus não cumprem pena alguma. Depois, soltou outra pérola: Na Justiça do Trabalho é pior. Lá, pede-se o que se quer e nem é preciso provar nada. Se perder, tudo bem. Não precisa pagar nada… A lei deveria mudar, dizia um. Não, dizia o outro. A lei tem é que acabar. Não é preciso tanta lei.

O detalhe é que todos sabem tudo. E dão palpites e mais palpites sobre o que deve ser feito. O que é preciso para o Brasil melhorar, a saúde, a educação etc

Esse “debate” que ouvi, hoje, por exemplo, era assim: A Vale deveria fazer isso. O outro retrucava: Não. A Vale deveria fazer aquilo. Outro, ainda: deveria fechar todas as fábricas, não é isso que querem com tantas críticas? Aí, vão ficar reclamando, como aconteceu com a Samarco.É o radicalismo do momento. O diálogo não existe, porque cada um acha que tem razão… Nas redes sociais, então, parece uma disputa, um duelo de verdades, para ver quem sabe mais. Aí, a ideia que se tem é que nenhum dos duelistas sabe alguma coisa do assunto.

Se você fala algo de política, então…

Aí, lembrei-me de um serviço de alto-falantes da cidade de minha infância. Como lá não tinha serviço de rádio, “inventaram” uma transmissão de longa distância, com alto-falantes nos postes e transmitiam músicas, avisos, replicavam repórteres etc. Tinha humor também. E um que se repetia como uma série, uma voz de homem bradava: SE EU FOSSE O PRESIDENTE, EU FAZIA…

E uma das coisas de que nunca esqueci: SE EU FOSSE O PRESIDENTE, EU MANDAVA A MUIÉ PRA ROÇA TRABAIÁ E MANDAVA OS HOME DAR OS PEITO PROS MENINO.

Ai, quando eu vejo quem não sabe nada de determinado assunto dar palpite, eu me lembro dessa história e costumo repetir em silêncio: Se eu fosse o presidente…

Maria Francisca – Fevereiro de 2019.

 1 de fevereiro de 2019 

Vela Encantada
Quando o tempo está chuvoso, como hoje, céu fechado, ruas alagadas, pobres perdendo suas casas, o coração apertado, a alma passeia devagar pelos cantos da vida, levantando os fiapos dos acontecimentos, ora bons, ora ruins. Mas como sou um tipo Poliana, alimento só os bons.
Conto um deles.
Eu era professora. Já contei as agruras por que passei, com salário atrasado (era ditadura, nem reclamar podia). Então, já que dava aulas à noite, para conseguir sobreviver, trabalhava num escritório de contabilidade durante o dia.
Então, fiquei sabendo do concurso do antigo INPS, hoje INSS. Resolvi estudar. Mas sem livro? Dinheiro pra apostila, cadê? Cursinho, nem pensar. Em Português e Matemática, eu me garantia, claro. Sempre fui estudiosa e era professora… Por uns dias, uma moça que tinha a apostila foi estudar comigo. Depois, desistiu. Como eu iria estudar a legislação previdenciária, aquele novelo que eu nem sequer ouvira falar até começar a trabalhar como escriturária?
Então, caiu do céu um livro de uma senhora que trabalhava no INSS e era amiga do meu irmão. Ela soube que eu ia fazer o concurso e me deu o livro. Tenho esse tesouro guardado com o maior carinho: “Legislação de Previdência Social, de Adriano Campanhole. E traz, na primeira página, o nome da antiga dona: Maria José de Paula (Uma estrela no céu).
Estudei, estudei. No dia das provas, nervosa a mais não poder, minha irmã disse: Antes de ir, acenda uma vela e faça uma oração. Você está muito nervosa e isso pode atrapalhar você. Fiz isso e fui para a prova.
Lá, cada um contava de um curso que fizera, de livros que lera e eu ali encolhida, morrendo de medo. Tocou o sinal, fui para a sala, fiz a prova e fui embora depressa, já visando à derrota, porque tudo estava muito difícil.
Encontrei a família em polvorosa. Você quase pôs fogo na casa toda! Que irresponsabilidade! Se não fosse eu, suas roupas seriam cinza, agora. Bradou minha cunhada, mal entrei. Corri ao meu quarto e chorei. A burrice foi tanta que coloquei a vela acesa sobre um pires de plástico. A vela acabou, o fogo pegou no pires, depois na cômoda, e, efetivamente, se não tivesse ninguém em casa, nem roupa eu teria depois, porque ali estavam todos os meus pertences, nas gavetas. Um enorme buraco preto “enfeitava” a cômoda.
Depois do choro, a raiva de mim mesma. Fiz aquela prova horrível, deixei essa porcaria de vela aí, perdi a cômoda e ainda ganhei reprimenda (e, pior, reprimenda merecida). Quanto mais brigava, mais a raiva aumentava. Claro, em silêncio, no quarto.
O tempo passou, esqueci aquele incidente e segui a vida.
Uns meses depois, um telefonema maravilhoso: aprovada em primeiro lugar. Foi uma alegria tão grande que, na mesma hora, a vela brotou na minha lembrança.
A partir daí, quando a vida endurece e o coração aperta, a oração, à luz da vela encantada, clareia meus caminhos, o coração abranda e ando sem tropeços.
Maria Francisca – novembro de 2018.

 1 de dezembro de 2018 

 

Fuçando antigos arquivos, encontrei uma bela mensagem sobre os doidos.
Deus gosta dos loucos, diz o texto. E cita diversas passagens bíblicas, como Moisés levantando o cajado, mandando o mar abrir-se para o povo judeu passar, e passaram todos incólumes.
Fui lendo e pensando em tudo que tenho ouvido sobre loucura e conclui que loucos são os outros.
Um dia, uma colega chegou até mim e disse em tom confidencial: Acho que Maristela (nome fictício) ficou doida. Eu respondi no mesmo tom: Querida, de um tempo pra cá, cheguei à conclusão de que todos são loucos, menos eu. Ela afastou-se sorrindo e eu fiquei meditando: ela deve estar pensando que a louca sou eu.
Basta uma pessoa ser diferente de nós, pensar diferente, ou ser ativista de alguma causa, que é logo tachada de doida. Muita gente diz: Você é doida, quando fica sabendo que vou a Terra Vermelha à noite, cumprindo cronograma de trabalho voluntário na educação. Doida, por quê? Não andam emperiquitadas de joias pelas ruas, com tanto perigo? Não tem assalto em plena Henrique Moscoso ou Hugo Musso à luz do dia? E andar na rua a pé ou de bicicleta falando ao celular? Quem vai a Santiago de Compostela a pé era sempre tachado de doido. Agora, não mais, virou moda. Se virou moda, é chique.
Tenho diversos amigos doidos. E são os melhores, porque fazem coisas excelentes, como trabalhar com pastoral carcerária, em programas de leitura em presídios, escrever coisas fabulosas, cuidar de filhos e outras crianças especiais, sem esperar qualquer recompensa a não ser o bem-estar das pessoas cuidadas.
Hoje, recebi um vídeo interessante e, diante de tantas notícias e vídeos falsos, as chamadas fake News, fui pesquisar sobre o assunto e vi que estava na mídia, mesmo. Então, a história é verdadeira. Trata-se de um homem analfabeto, que reside no interior da Paraíba, mais precisamente em Lagoa Nova, que inventou um combustível à base de água para sua moto, em face da escassez de gasolina na época da greve dos caminhoneiros. Um analfabeto, imagine!
As pessoas dirão: mais doido impossível. Eu diria: que inteligência rara! Normalmente os muito inteligentes também são tachados de doidos. Aliás, é uma forma de reduzir o valor da pessoa. Doido é doido. Ninguém se importa com doido. Ah! É doido. E pronto! Deve ser por isso que Giseli Suave (“Estou onde não penso. Penso onde não estou”) diz que não é doida. Ela afirma, por exemplo, que (…) doido é o que vê um analfabeto e acha normal”.
Uma das minhas amigas ditas doidas um dia me contou que estava falando sobre mim em casa e o filho perguntou: é aquela sua amiga doidinha? Fiquei muito feliz com isso. Sinal de que me considera uma pessoa diferente ou que faz a diferença. Para mim, seria isso. Não sei se quem disse pensou assim, ou: só faz loucuras. Agora, ter a fé desse povo da Bíblia… é querer demais, não?
Moisés, que mandou o mar abrir-se, Isaías que parou o sol com suas orações, Josué que rodou sete dias em volta da Cidade de Jericó até cair as muralhas, Daniel que ficou quietinho na jaula de leões famintos.
E Jesus, que mandou parar os ventos e o mar ficar quieto? E disse: levanta-te e anda? E jogou as mesas e mercadorias dos vendilhões do templo? E protegeu a mulher adúltera?
E o inventor de algo raro? O mundo precisa de doidos.
Desses doidos maravilhosos que só fazem coisas incríveis.
Você gostaria de ser um doido assim?

Maria Francisca – novembro de 2018

 11 de novembro de 2018 

“Roubaram a bicicleta de Vavá à porta de uma farmácia na Glória” foi a manchete do Jornal “A Gazeta” há 50 anos, registrada um dia desses.
Lendo a notícia, fiquei meditando sobre nosso tempo, com a criminalidade à solta. Imagine se um dito roubo de uma bicicleta seria manchete?
Aí, como disse Hermes de Aquino, em “Desencontro de Primavera”, no pensamento a gente voa, lembrei-me de um fato envolvendo bicicleta.
Quando juíza em Belo Horizonte, presidi uma audiência em que tanto patrão como empregado eram quase miseráveis. É como costuma dizer a colega Wanda: é a luta entre o roto e o esfarrapado.
Não me lembro do valor postulado na ação. Era pouca coisa. Pobre não tem muito a pedir. É humilde até nisso.
Pois bem. O empregador não tinha dinheiro, não tinha nada. O comércio, se é que podemos chamar aquele botequim de periferia de comércio, fechou por falta de tudo. O reclamante lembrou-se de que o reclamado tinha uma bicicleta velha e afirmou que receberia o veículo como pagamento. A tal bicicleta, então, foi entregue ao dito credor.
Alguns dias depois, retorna o reclamante quase chorando: o patrão encontrou-se com ele na rua e tomou sua bicicleta…
Nesse caso, ninguém ficou sabendo qual era o roto e qual o esfarrapado. Ou melhor, o empregador era mais esfarrapado, porque nem honrou o compromisso assumido.

 4 de novembro de 2018 

Não sou perfeito
Estou ainda sendo feito
E por ter muito defeito
Vivo em constante construção
(Lamento dos Imperfeitos. Padre Fábio de Melo)

Um dia, passando minhas compras no caixa de um supermercado, observei os uniformes diferentes das moças que atendiam. Curiosa, perguntei o motivo. A empacotadora, virou as costas e vi escrito: Aprendiz. Ah! Eu também sou aprendiz. Aprendiz? Elas esperavam minha resposta. Eu completei: de feiticeira. Elas riram. Perceberam a brincadeira, claro. Eu aproveitei pra dizer: na vida, todos somos aprendizes. Basta termos a mente aberta ao mundo ao nosso redor. Aprendemos todos os dias, acrescentei. Ambas ouviram atentas e concordaram.

Fui professora de ensino fundamental e médio por um bom tempo, já que minha formação inicial foi magistério. Deixei essa bela profissão, porque a minha sobrevivência estava em jogo. Não tinha dinheiro nem sequer para comprar um agasalho para o frio, ou um sapato, quando o antigo rasgava. Já andei de chinelo e agasalho emprestado. O Estado atrasava demais o pagamento e os professores ainda tinham a obrigação de pagar (a palavra era esta: pagar) caixa escolar. Era estabelecido um valor e o professor pagava. Ninguém queria saber de onde vinha o dinheiro. E alguém podia reclamar? Vivíamos na ditadura.

Vejo que hoje a situação continua a mesma. Professores sem dinheiro, merendas sendo roubadas, caixa escolar vazia, escolas sucateadas e por aí vai. Uma tristeza.

Há algum tempo, o noticiário deu-nos conta de que em Juazeiro do Norte o Município teria reduzido 40% do salário dos professores, o que causou choro e revolta dos profissionais. Fico imaginando o que sente um político que vota uma matéria dessas.

Dias atrás, estava “bombando” o RX da educação. O jornal (A Gazeta) anuncia: “O Estado fica em 1º no ranking nacional, mas meta não é alcançada”. Como alcançar meta com tanta dificuldade? E, mais, a reportagem fala de escolas campeãs. Não são as que mais têm dinheiro, mas as que têm foco na valorização do professor e na aprendizagem.

Então, o recado está dado: o foco na aprendizagem e a valorização do professor. Creio nisso e espero que nossos governantes, quando estiverem lendo e escrevendo, pensem em quem lhes ensinou.

As minhas andanças pelas escolas, com o trabalho voluntário que coordeno no Estado (Programa Trabalho, Justiça e Cidadania) trazem muitas alegrias, mas também muitas tristezas. Alegro-me quando vejo professores comprometidos, vocacionados, entusiastas, cuidando de alunos com necessidades especiais, ou indisciplinados a mais não poder, que é a regra de nossos adolescentes sem limite. Entristeço-me quando vejo professores desmotivados, que vão para as salas, cumprem a obrigação mal cumprida, e se vão, sem o menor pudor ou remorso. Não querem nem olhar para trás. Com tanto problema, não é de se admirar a falta de entusiasmo de muitos. É a humanidade deles falando mais alto. Quem pode condená-los?

Ali, embora cada um deles seja um aprendiz dos ensinamentos do professor e da mensagem que o TJC leva, o aprendizado maior é nosso, porque vemos um mundo em que, apesar de todas as dificuldades, da luta e do sofrimento, ninguém quer abandonar a batalha porque espera uma vida melhor.

A maioria dos professores trabalha em mais de uma escola. À noite, já estão cansados (sinto isso quando olho para aqueles rostos que, mesmo assim, sorriem para mim) e têm que lidar com essa realidade difícil. Acho que eles, para encontrar forças, como diz a música de Padre Fábio de Melo, em noite de céu apagado, desenham estrelas no chão…

Volto pra casa, eu, a mais imperfeita dos imperfeitos, pedindo a Deus uma mente aberta e liberta para continuar em construção.

Maria Francisca – novembro de 2018.

 27 de outubro de 2018 

 

Adélia Prado disse que a mulher é desdobrável. Mas que ainda é uma espécie envergonhada. Às vezes, pergunto-me: Por quê? Não é um paradoxo? Ao mesmo tempo em que consegue fazer mil coisas, há coisas que não consegue fazer… Por exemplo, livrar-se de um companheiro violento. Vemos tantas mulheres sendo massacradas e mortas todos os dias. Será que isso é amor? Outro exemplo: disputar cargos com homens. Quem há de?
Historicamente, a mulher foi massacrada. Era educada para ser esposa e mãe. Profissão, só professora, mesmo assim, as ricas, não. Teriam marido rico que as sustentasse.
Vejamos:
Desde 1821, temos eleição no Brasil. Indireta, ou direta, mas eleição. Somente em 1933, a mulher pôde votar em âmbito nacional, quando o Código eleitoral de 1932 deixou explícito o direito/dever.
A segunda guerra mundial que durou de 1939 a 1945 teve muitas mulheres nas trincheiras, mas como a história sempre foi contada pelos homens, ninguém tomava conhecimento disso. Alecsievitch Svetlana no livro “A guerra não tem rosto de mulher” fala dessas mulheres guerreiras que lutavam ao lado dos homens, vestidas como homens.
E quem sabia disso?
Agora, vindo para 1964, com o início da ditadura militar. Eu tinha 15 anos e participava de movimento estudantil, denominado JEC (Juventude estudantil católica). Havia a JEC, a JOC (Juventude operária) e a JUC (juventude universitária). O movimento era católico, mas discutíamos o país em nossas reuniões.
Com a revolução, tudo isso foi desmantelado, porque éramos considerados comunistas, quando até tínhamos medo do comunismo. Aliás, queríamos apenas um Brasil melhor. Nossos dirigentes foram presos, desaparecidos alguns, casas de diretores da União estudantil reviradas. Ficamos todos acuados.
Heloísa Buarque de Holanda, escritora e crítica literária, prefaciando a obra “Morangos mofados” de Caio Abreu, disse que a juventude radicalizada, no final dos anos 60 tinha dois caminhos: a luta armada ou o desbunde.
Muitas mulheres foram, sim, para a luta armada, presas, torturadas, mortas. Sabemos disso. Daqui do ES, por exemplo, temos a história da Miriam Leitão.
A minha geração foi aquela que começou a revolução feminina, queimando sutiens, mas isso foi nas capitais do país. No interior? Desbunde? Deus nos livre de mulheres assim. Todas doidas.
Então, do interior, e aluna de colégio de freiras, onde a lavagem cerebral era a tônica, mulher alguma foi para o desbunde, tampouco para a luta armada. Ficou foi acuada, repito, porque era vigiada pelas forças da ditadura, prontas para levar quem tivesse, em casa, o que consideravam arma letal: livros ditos comunistas.
Nossa cultura era esta: a mulher foi feita para o lar. Para ter filhos, educá-los, cuidar do marido…
O tempo passou e ainda hoje, a mulher repete aquela famosa frase: atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Por quê?
É interessante o seguinte: quando depende da capacidade intelectual da mulher, ela deslancha. Quando depende de eleição ou indicação, de disputa, ela perde. Por quê? Justamente pela nossa cultura. Pela discriminação que ainda existe contra a mulher e pela própria mulher. É só ver a quantidade de mulheres nas universidades em todos os cursos.

Quantas são executivas? Muitas, mas ainda poucas em relação aos homens.
Quantas mulheres na cúpula do Judiciário? O STF, por exemplo, foi criado em 1890. Só no ano de 2000, a primeira mulher foi nomeada, a Ministra Helen Grace, que foi a primeira mulher a se tornar Presidente daquela Corte de Justiça. Hoje, são 11 ministros e duas mulheres, apenas.

Na Magistratura do Estadual do ES. As magistradas são quase 50% do total de juízes. São mais de 100 mulheres no primeiro grau. Apenas 3 estão no TJ que é composto de 28 membros, ou seja, são 25 homens e 3 mulheres apenas.

Na magistratura do Trabalho, um pouquinho mais democrática, são 56 juízes no primeiro grau, sendo 25 mulheres. No Tribunal são 12 desembargadores e apenas 4 mulheres.

Na política, a situação não é muito diferente.
Em 2018, 52% dos eleitores são do sexo feminino, conforme estatística do TSE. Por que as mulheres são minoria em cargos eletivos?
Em Vitória, por exemplo, há anos, sempre a Neuzinha como única vereadora. Luzia Toledo já foi vice-prefeita, mas já tivemos mulher à frente do Município? Em Vila Velha, só na última eleição 3 mulheres foram eleitas vereadoras, ou seja, 20% quando os homens ficaram com 80% das vagas.
Nas eleições de 2018, duas mulheres foram candidatas ao Senado. Uma ficou com 4,60 % dos votos e a outra com apenas 0, 64%. Claro, vencidas. Para a Câmara Federal três mulheres foram eleitas, ou seja, 30% apenas. Já para a Assembleia Legislativa, 3 mulheres foram eleitas, percentual menor (10%) do que para a Câmara Federal.
A coluna de Ascânio Seleme, de 01/07/2018, do Jornal A Gazeta, publicou uma pesquisa sobre os motivos para as mulheres não se candidatarem, de acordo com elas mesmas, seriam falta de jeito para isso, criação dos filhos, tarefas domésticas, oposição do marido etc.
Nas associações de classe, da mesma forma.
Nas associações de juízes, por exemplo. No Estado do Espírito Santo, a AMAGES tem 50 anos de existência, até hoje, apenas uma mulher a presidiu.
A AMATRA (Associação dos Juizes do Trabalho do ES) tem 26 anos. Nenhuma mulher a presidiu até hoje. Muitas foram vice, inclusive eu, duas vezes. A ANAMATRA (Associação Nacional) tem 40 anos, até hoje 3 mulheres foram presidentes.
Na Associação dos Magistrados Brasileiros, que congrega todos os juízes do Brasil, nunca houve uma mulher na Presidência. E fundada há 67 anos.
Na AJUFE (dos juízes federais) fundada em 1972, com 46 anos de fundação, nunca houve mulher na Presidência.
Por quê?
Porque nós somos uma espécie envergonhada como diz Adélia Prado. Porque deixamos que isso aconteça. Umas por comodismo, outras por medo. Outras preferem ficar pelos cantos reclamando que não conseguiram isso e aquilo, porque a sociedade boicota, porque os homens não deixam, porque, porque, porque. Eternas desculpas.

Nada contra mulheres que se dedicam apenas ao lar e são felizes. Mas não podem optar por isso e depois chorar o leite derramado.

Vamos ficar assim para sempre?

Maria Francisca – outubro de 2018.

 5 de outubro de 2018 

 

Que “Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves, dentro do coração”, como diz a bela canção do Milton, todos já sabemos, mas e aquele amigo tão chato, tão chato, que ninguém mais aguenta?
Em primeiro lugar, amigo é amigo, chato ou não.
Pensei nisso, hoje, porque vi a tirinha de “Os Passarinhos” do Estêvão, no caderno 2, do Jornal A Gazeta e lembrei-me (“No pensamento a gente voa”) do meu amigo Barzilai. Quando um de nós estava muito chato, ele dizia: O que fazer? A gente não escolhe os amigos que tem.
Era uma brincadeira, mas serve para uma reflexão.
Claro que escolhemos nossos amigos, entretanto, há pessoas que podem ser chatas a mais não poder e têm tantas outras qualidades, como competência, lealdade, solidariedade, que esquecemos sua chatice. Muitas vezes, temos vontade de sair de perto, mas como deixar um amigo falando sozinho?
Em tempo de polarização política, dá vontade de deixar o amigo falando sozinho, sim, quando insiste em certas ideias, como a tentar fazer-lhe mudar de opinião, bandear para o lado que ele quer. E se o amigo não tiver “desconfiômetro”, característica do chato?
Uma amiga, disse-me: logo você, uma pessoa esclarecida, pensar dessa forma? Rápido, lembrei-me de Schopenhauer no livro “Como vencer um debate sem ter razão”, porque, em verdade, ela alertava-me sobre minha atitude (segundo ela) burra. Então, para não brigar com ela (burra, eu?) brinquei: Mire-se no espelho e veja a aparência de que se revestiu, falando isso comigo. Olhe sua cara. Raivosa. Desse jeito, você nunca vai me convencer.
Aí está o x da questão. Escolhi aquela chatice? Não. Escolhi o amigo e ele vem com tudo: qualidades e defeitos, como todos nós. Não somos tachados muitas vezes, da mesma forma? E quem garante que não somos assim?
Pois bem. Tenho alguns amigos que muita gente acha chatos e me diz: como você aguenta? Respondo: Gosto deles, são meus amigos. E ponto final.
Quem sabe um amigo chato não nos ajudará a melhorar nossa paciência e tolerância com os diferentes, como disse o Hector, o dito chato, ao Afonso, o amigo ácido, na tirinha do Estêvão Ribeiro?




Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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