Estou relendo “O tempo e o vento” de Érico Veríssimo.
Quando, ao pesquisar na biblioteca pessoal, encontro algo de que gostei muito, tenho esta mania: pego para ler de novo. Érico Veríssimo é mestre em me fazer reler seus livros.
Fico a imaginar como era aquele mundo ali descrito: o povo vivia num lugar tão distante do resto do mundo, sem escolas, sem nenhum povoado por perto, sem socorro médico, sem relógio nem espelho (pra quê espelho? Coisa do diabo!, dizia o velho Terra), que contava o tempo pelo vento. Vento demais, sol demais, frio demais, calor demais, florescer… E as guerras? Guerras e mais guerras, além de bandidos que matavam, pilhavam e deixavam todos mais pobres ainda. Esses pobres, muito pobres, miseráveis, não eram considerados cidadãos, viviam em bairros imundos. Claro que, nos volumes seguintes, já se falou de progresso, mas muita coisa continuou e continua igual, ainda hoje. A pobreza e a política do poder, por exemplo.
Na era do metaverso, uma realidade virtual, onde já é possível até o assédio, o toque virtual, como li hoje, num artigo, os homens continuam se matando pelo poder. Uns se matam literalmente, como nas guerras, assassinatos encomendados, controle de tráfico de droga. Outros, com palavras caluniosas, frases ofensivas nas tais redes sociais, e ainda conseguem seguidores. E a miséria humana continua em todos os lugares.
Voltando ao livro de Erico Veríssimo, observei que não lera tudo, pois o romance histórico, se é que posso denominá-lo assim, tem 3 grossos volumes e eu lera apenas os livros esparsos: Ana Terra, Um certo Capitão Rodrigo, o retrato etc.
Os dois últimos volumes trazem, além de outros fatos ficcionais, a história do médico Rodrigo Cambará, da família Terra Cambará, de Santa fé, cuja saga mistura-se com os eventos históricos do Rio Grande do Sul e do Brasil no período de 1626 a 1945.
Rodrigo foi o único daquele clã que terminou o curso superior. Era médico. Volta para sua cidade cheio de alegria e coragem. Abre seu consultório e começa a atender pacientes da periferia, como era de seu interesse, desde sempre, porque sabia da pobreza do povo, e se compadecia deles. Só que, saber de uma coisa por ouvir dizer, saber de pobreza por ler nos livros, sem nunca sentir na pele, é uma coisa completamente diferente.
“Rodrigo comovia-se até as lágrimas diante da miséria descrita em livros ou representada em quadros”, mas diante dos miseráveis que iam ao seu consultório, sentia repugnância. E achava difícil amar aquela “humanidade sofredora”, porque era feia, suja, malcheirosa. E, quando saiam do consultório, ele tratava de abrir as janelas, para entrar o ar, dava um jeito de tirar aquela roupa, tomar um banho, tamanho o asco que sentia. Isso, apesar de tratar com todo cuidado aquelas pessoas. Era uma caridade fria, uma piedade sem calor humano.
Não tive como não relacionar essa ficção sobre o Rodrigo com a história verdadeira de Jose Falero, também daquele Estado, cujo livro “Em que mundo tu vive?”, acabei de ler. Segundo sua biografia, era pobre, muito pobre. Agora, escritor requisitado. Há, nesse livro, suas experiências como trabalhador, auxiliar de construção, repositor de supermercado, como estudante da EJA e, claro, de fome. Numa das crônicas, ele diz que muita gente acha que passar fome é não ter o que jantar um dia, apenas. Ele viveu a vida de pobreza, sabe o que é a pobreza de senti-la no corpo e na alma. E conheceu a fome.
Como é sempre uma ideia chamando outra, lembrei-me do que minha mãe dizia. Éramos muito pobres, mas sempre tivemos o que comer. Então, se alguma de nós falava: Mamãe, estou com fome, ela dizia: Menina, você não sabe o que é fome! Falava isso tão brava! E completava: Você pode estar com vontade de comer e não com fome!
Ela, sim, vivia no meio daqueles pobres de minha cidade, e, muitas vezes até os trazia para dentro de nossa casa, sempre dando um jeito de oferecer comida para os famintos. Ela sabia, sim, o que era a fome, por estar ali com aquelas pessoas, e sentir empatia por eles. E não a fome que sentíamos ou a fome de um jantar. José Falero também sabia o que era fome e expôs a situação em diversas crônicas.
A história do Dr. Rodrigo Cambará passa-se no século 20, mas, neste nosso Brasil, a fome ainda impera. No ES, segundo o noticiário, 10% da população vive em extrema pobreza: nas periferias, nas ruas, bem pertinho de nós, muita gente vivendo em condições indignas, pedindo socorro.
Se você não sabe disso, vale a pergunta-título do livro de José Falero “Em que mundo tu vive?”.
Maria Francisca – Fevereiro de 2022.
Antônio de Carvalho Pires
12 de março de 2022 às 09:02
Excelente artigo. Retrata a pura verdade. A realidade é muito mais cruel do que o nosso imaginário! Viver essa realidade nem sempre é fácil!Parabens!
mariafrancisca
20 de março de 2022 às 17:32
Obrigada, caro amigo Antônio, pela leitura e comentário.
Nós vivemos num mundo paralelo e nem sempre vemos à nossa volta, não é?
Grande abraço.
Helio
12 de março de 2022 às 09:08
Fome, muita fome em nosso amado Brasil! Até quando teremos a fome grassando entre nós ! Boa reflexão, prezada Francisca ! Continue sempre assim!
mariafrancisca
20 de março de 2022 às 17:30
Até quando é o que sempre pensamos, Helio, mas a fome está aí e, muitas vezes, nem vemos.
Grande abraço. Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Attilio Carattiero
12 de março de 2022 às 14:51
… não sabemos direito como é a fome do vizinho, a fome do espírito, a fome do saber, a fome de viver…
Sua crônica cutuca a ferida.
Como será a fome da guerra que, brasileiramente, nunca tivemos?…foi lá nos PARAGUAY, onde o exército era, em maioria, escravos que teriam a liberdade, caso voltassem. Todos foram libertados, vivos ou mortos…
mariafrancisca
20 de março de 2022 às 17:29
Pois é, Attilio. E como sofrem, nós nem sabemos, porque não sentimos na pele, da mesma forma que tivemos a sorte de não sentir fome, diferente de tantos que passam pela nossa vida e nem vemos.
Obrigada pela leitura e comentário.
Grande abraço.
Geraldo de Castro Pereira
13 de março de 2022 às 09:52
Francisca, gostei demais da sua crônica! Quero dar-lhe parabéns! Continue nos brindando com seus textos maravilhosos! Abraços fraternais! Geraldo.
mariafrancisca
20 de março de 2022 às 17:27
Obrigada, caro amigo Geraldo, pela leitura e gentil comentário. Grande abraço.
Roberto Vasco
21 de abril de 2022 às 15:27
Sim, minha querida, humana e sensível escritora. A fome é uma pedra multifacetada. muitos falam da fome sem noção da sua real dimensão e das múltiplas facetas que se apresenta. A vida “infra miserável” existe realmente e é tremendamente difícil arrancar os sofredores da miséria arraigada em sua própria índole. Complicadíssimo, mas vale a pena darmos as mãos e continuar tentando cada um no que estiver a seu alcance.
mariafrancisca
21 de abril de 2022 às 18:28
Pois é, meu amigo, vamos tentando cada um do seu jeito, para melhorar, um pouquinho que seja, essa vida sofrida dos famintos que aumentam, neste nosso Estado, cada vez mais. Nunca vi tanta gente nas ruas, nas calçadas, ao relento.
Grande abraço e grata pela sua leitura ecomentário.