O ACENDEDOR DE ESTRELAS - Maria Francisca

 29 de maio de 2018 

 

“Passo a passo, o guarda-noturno vai subindo a rua. Já não apita: vai caminhando descansadamente, como quem passeia, como quem pensa, como um poeta numa alameda silenciosa, sob árvores em flor”, diz Cecília Meireles, na crônica “O Anjo da noite”.

Os moradores podiam dormir sossegados, porque havia um “anjo sem asas, porém armado”, a cuidar do sono de todos.

Há muito não vejo esses “anjos”. Acho que caíram de moda. E, coitados, seriam as primeiras vítimas desse nosso mundo violento. A leitura dessa crônica trouxe saudosas e boas lembranças de figuras interessantes de cidades do interior. Uma delas, era o carteiro de minha cidade. Ele conhecia todas as pessoas, sabia quem namorava quem, onde morava etc. Quando trazia uma carta (sim, naquele tempo a comunicação era toda por carta), vinha em sua bicicleta, chegava perto do destinatário e balançava o envelope no ar. A pessoa corria para receber, ele saia correndo na bicicleta, rindo, e saíamos todas correndo atrás dele. Às vezes, alcançávamos a bicicleta. Era uma festa. Outras vezes, a dona da correspondência tinha que pagar uma prenda para recebê-la. Isso nos divertia e a ele também.

Outra figura era o acendedor de luzes. Tínhamos luz elétrica, mas nada era automático. Então, um profissional percorria ruas e mais ruas, acionando um interruptor. Ia Manoel, pedalando alegremente sua bicicleta, portando um enorme bastão. Nem precisava descer do veículo, tão prático estava em seu ofício. Dava uma parada, elevada o cajado, acionava a chave elétrica e a luz se fazia.

Não me lembro de dia algum sem luz. Manoel da Luz (assim era conhecido por todos, e gostava do apelido) era incansável. Estava sempre alegre. Sentia-se feliz naquele ofício que considerava importante. E era.

Penso nele como o acendedor de lampiões do Pequeno Príncipe, de Exupéry. Morava num planeta tão pequeno que mal acendia o lampião, apagava-o, porque já era novo dia. E assim entre bom-dia e boa-noite, levava a vida. E o Pequeno Príncipe, ao vê-lo, disse: “Quando acende o lampião, é como se fizesse nascer uma estrela a mais, uma flor a mais. Quando apaga o lampião, faz dormir a flor e a estrela. É uma bela ocupação. E verdadeiramente útil, além de bela”.

Manoel deve ter lido o Pequeno Príncipe e sentido a beleza e a importância de seu trabalho. Por isso, era tão feliz.

Essas figuras interessantes todas sumiram de nossas ruas. A modernidade tem dessas coisas. Restaram apenas os sem-teto, os sem-comida, os sem-tudo, ao relento, faça chuva, faça sol, faça frio… E não acendem nenhuma estrela, não fazem nascer nenhuma flor. Só têm a desesperança, estampada nos tristes e mortiços olhos.

Maria Francisca – maio de 2018.

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10 comentários

  1. Parabéns,Francisca!
    Infelizmente hoje há a desesperança e a tristeza nos olhos destes profissionais, que outrora ascendeu estrelas e fez nascer a flor.hoje um retrocesso…

  2. Esplêndida sempre. Gostei muito, Fran.


  3. Maria Wilma de Macedo Gontijo
    30 de maio de 2018 às 01:58

    Querida Francisca: você acende estrelas e faz nascerem flores quando escreve e nos oferece suas lindas crônicas. Faz-me, também, recordar personagens da minha pequena cidade do interior de Minas. Ah! Quanta saudade …

  4. Aquele brilho…
    A modernidade trouxe muitas melhorias, porém algumas inovações são traidoras do ser humano.
    Os robôs pôs de lado o ser VIVO E HUMANO , deixando muitos sem seus ofícios…
    Muito sensível sua crônica Maria Francisca.


  5. janice emaculada moraes moreira
    6 de junho de 2018 às 14:18

    Êta comadre Chica ! Como você é leve , despretensiosa, alegre, acende e reaviva as estrelas de nosso coração e de nosso passado. Em você vejo a figura simples e modesta da dona Sebastiana , sua mãe, quem muito admiro. Obrigada pela crônica.

    • Oi, comadre. Quem dera eu acendesse estrela. Isso é coisa de pessoa amiga, como você. Mesmo assim, fico feliz e agradeço.
      Grande abraço.

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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