Não fui eu… - Maria Francisca

 29 de setembro de 2019 

Assis Chateaubriand, segundo Fernando Morais (in Chatô: Rei do Brasil) costumava publicar diariamente um artigo em todos os seus jornais.
Um dia, chegando a Belo Horizonte, escreveu no hotel, e, a caminho de um evento, passou na redação, deixou o escrito para que o linotipista decifrasse seus garranchos, de forma a possibilitar a publicação.
Quando retornou ao hotel, assustou-se, pois encontrou parte do rascunho num dos bolsos, cerca de um terço do que escrevera. Ficou aflito e, logo de manhã, pediu a um mensageiro para buscar numa banca próxima um exemplar do seu jornal, preocupado com o que tivesse saído, ou não saído nada. Ambos os fatos eram preocupantes.
O artigo estava lá, completo. Saiu danado da vida, foi ao jornal, xingou o linotipista de tudo quanto é nome feio, antes de despedi-lo, ao argumento de que tivera a ousadia de escrever um pedaço do artigo assinado por ele, o dono do jornal.
O rapaz tentou explicar, mas nada o demoveu.
Passada a tempestade, acalmou-se e foi ler o artigo, confrontando-o com o que escrevera. Estava tal e qual. Nenhuma palavra, letra, ponto ou vírgula, diferentes do que estava em seu rascunho.
O resto não precisa ser contado. Todos já imaginam.
Relembro essa história, porque nunca me esqueci de um fato parecido que aconteceu comigo.
Trabalhava em Linhares. Naquele tempo, escrevia à mão e a secretaria datilografava tudo. Eu não tinha a habilidade de meu irmão, também juiz, de escrever direto na máquina, de forma a entregar as sentenças prontas.
Como eu ficava em Linhares a semana inteira, e morava num micro apartamento na parte de trás da secretaria, ao lado do gabinete, trabalhava até a hora de dormir e ia empilhando processos e mais processos nas cadeiras para, dia seguinte, serem datilografados os textos das decisões.
Um dia, quando o trabalho retornou, como de praxe, fui conferindo e assinando. Deparei-me, entretanto, com uma decisão de embargos à execução, cujo rascunho não encontrei e, pior, não me lembrava de ter lido a matéria daqueles autos. E eu tinha uma memória excelente. Li todo o processo, vi que a decisão estava correta, mas o fato de não me lembrar do caso, tampouco encontrar o rascunho, me deixou curiosa, pra não dizer aflita: como e por que não me lembrar?
Chamei o diretor de secretaria e perguntei: Cadê o rascunho dessa decisão? Ele, timidamente, disse: Dra., eu tomei a liberdade de fazer essa minuta, mas peço desculpas pela minha ousadia. Não deve estar boa.
Menino, está igualzinho ao meu estilo… Como, em tão pouco tempo, você assimilou isso? Ficou ótima.
E ele nem tinha terminado o curso de Direito.
Eu não sou nem pretendia ser um centésimo do que foi Chateaubriand, por isso, não fiz, nem faria como ele., claro, mesmo porque, a minha primeira atitude foi ler o processo. Aliás, e iria imaginar que não fora eu a autora daquela decisão? E estava ótima.
Marcos Louzada era um excelente servidor e isso ficou constatado nos longos anos que trabalhamos juntos, até minha aposentadoria.
Hoje, quando me lembro daquela decisão tão bem-feita, com uma pontinha de inveja e de saudade, digo em pensamento:
Não fui eu…
Maria Francisca – final de setembro de 2019.

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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