Microcontos: Os sete pecados capitais - Maria Francisca

 24 de setembro de 2018 

 


Avareza

Era um velho rico, mas nada tinha. Meu dinheiro? Será quanto ganhei hoje? Tempo de inflação alta, ia ao Banco todos os dias. Malvestido, acomodava-se numa cadeira, lá, como a cuidar da fortuna, mas de olho em tudo ao redor. Matador profissional, juntou dinheiro, sem amealhar amigos. Sem família, sofria. O medo dominava seus dias. Sentia medo e metia medo. Foi-se num dia de chuva. Ninguém quis saber a causa e ninguém acompanhou o féretro indigente, senão sua magra cachorrinha.

Gula
Andava penosamente rua afora, devorando uma pizza. As pernas já não aguentavam o peso daquele corpo enorme. Menino magricela, sua maldição: “Comer para crescer”. Comeu e cresceu até demais, mas alimentos perseguiam-no. Até nos sonhos sentia os cheiros. Ah! Culpa dos cheiros. Comendo voluptuosamente, distraiu-se. Não viu um seguidor à espreita. Um cão faminto viu o homem, viu o alimento, sentiu o cheiro… zaz! Num átimo, o guloso ficou a ver navios.

Inveja
Cantada em prosa e verso, por todos, a promoção de uma colega transformou Estela num espectro de gente: silenciosa, encolhida, sofrida. Relembrar o fato era um tormento, um prato indigesto. Por que ela? Remoía-se. Até que viu um extrato bancário na mesa da colega. A gota d’água: Apanhou-o, examinou-o e, raivosa, como o Mouro de Veneza, bradou: guarde seu extrato, rica. Derretida em lágrimas, trancou-se em casa, doente de solidão e tristeza, suas únicas e sinistras companhias.

Ira
Vai, depressa, dá uma surra nele, fala uma voz do lado esquerdo do ouvido do José. Não vai, não, fala outra voz, do lado direito, bem baixinho. Vou, não vou… Foi ele que espalhou aquelas notícias. E ainda foi rude. Não. Ele falou sem querer. E, agora? Vou, não vou… Vai, vai… Já espumando: ele vai me pagar. POFT! Um barulho se fez ouvir e Justo caiu estatelado no chão. Nesse momento, um rabinho balança, sorrateiro e feliz, no ombro esquerdo de José.

Luxúria
Suado, rolava na cama, de frente com sua verdade: o desejo sufocava-o. Queria sair, procurar refrigério nalguma bodega. Sem forças, remexia-se, desvestindo-se para refrescar-se, e deu de cara com a nudez convidativa de bela mulher a seu lado. Agarrou-a feliz, mas um grito agudo acordou-o. A respiração ofegante, o corpo tremendo, num frenesi de volúpia e medo, levantou-se, tentando acalmar-se. Foi beber um gole d’água. Na sala, a mulher, nua, olhar enigmático, pose de Hedonê, tomava champanhe.

Preguiça
Derramou-se na rede, o sono derramado no corpo. Cabeça, ombro, joelho e pé, tudo estagnado, como se fosse o próprio Hipnos. Uma brisa leve balançou as folhas das árvores e tocou seus cabelos. Não preciso de mais nada, aqui terei silêncio e paz. Palavras me cansam, falava de si para si. Trabalhar é tarefa pesada. Longe de casa… não tenho asas nos pés, nem sou herói. A vida é curta. Agora não. Depois, talvez depois, crie algo bom, se Palamedes vier em meu socorro.

Soberba
Qual mula madrinha, de arreios vistosos e cincerro tilintante, a encabeçar a tropa de feitos da ditadura, entrou, de repente, na sala e trovejou: Saiam já, senão, prendo todas. Não sabem que reuniões estão proibidas? As professoras entreolharam-se e foram saindo silenciosas e cabisbaixas…

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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