Acordei cedo.
Animada, olhei o céu. Nuvens grossas, escuras, cobriam tudo. Prestes a chover, pensei. De repente, estava chovendo. Aquela chuva fininha, suave, que mal se vê, parece uma nuvem baixa.
Fui à varanda, a memória afetiva tomou a frente, e vi meu pai, em pé, na porta da cozinha da casa de minha infância, dizendo, pensativo: Invernou…
Agricultor de profissão e por natureza, meu pai sempre cuidou de plantação. No início, cultivava café. Na época da floração, aquela beleza extasiava meus olhos e o cheiro das flores trazia as abelhas para a colheita do pólen. Era perigoso ficar por ali. Menina, cuidado, você pode ser picada por essas abelhas… Mas eu ficava lá assim mesmo. Sentindo aquele cheiro de natureza. E quando os frutos estavam madurinhos…
Depois, na época da colheita, ficávamos por ali “catando” os que caiam no chão e, assim, ganhávamos um pouco de dinheiro (algumas moedas) com aquelas sobras. Alguns de nós, claro, e só nas férias.
Quando o governo resolveu mandar arrancar pés de café, foi uma tragédia. Se não arrancasse, corria o risco de ficar na miséria, porque o preço caiu tanto que nem valia a pena vender. Com muito desgosto, meu pai entrou na negociação, arrancou tantos pés quanto exigiram, recebeu aquele dinheiro que mal deu para as despesas, e fim do cafezal.
Depois, milho, mandioca, arroz, até ficar mais velho, e passar o sítio para os primeiros filhos que já trabalhavam com a terra. Mas não deixou suas plantações ao léu. Na Cidade, sempre arranjava um espaço aberto, vazio, para ir ao encalço do dono e fazer uma “meia” para plantar seus sonhos.
Ah! Sem esquecer o amor pela música. Tinha a música no peito. Adorava a sua sanfoninha e nos divertia tocando. Sempre começava seus saraus com uma musiquinha, com uma letra muito engraçada: Papai tem, mamãe tem, bundinha arrebitada, eu também tenho. Cantávamos essa bobagem e ríamos… Ele ficava feliz.
Queria tocar violão, mas, segundo ele, não sabia cantar, então, preferia a sanfoninha.
Certo dia, cheguei à casa dele e ouvi a música “Asa Branca” sendo executada numa flauta. Pelo som, vi que era uma flautinha de nada, daquelas de criança, bem simples, sem qualquer recurso. Pensei: Essa criança tem pendores musicais. Fui ao encalço da música e encontrei meu pai no quintal, debaixo de uma árvore, concentrado, tocando a flautinha.
Era de uma simplicidade linda.
Gostava de uma prosa, mas se o interlocutor falasse algo e ele não acreditasse, dizia, tranquilamente: Bestage, moço!
Mais velho, reclamava, às vezes, de comprar certas coisas, porque a vida inteira ele plantou e doou: bananas, mangas etc. Chegou a dizer: Daqui a pouco estamos comprando água pra beber.
Hoje, ele desfruta de Bela Morada que o Pai reserva às pessoas que fizeram da terra um Céu.
Com essa saudade gostosa, porém dorida, voltei à varanda de onde apreciava a chuva fininha, suave, que mal se via… parece nuvem baixa…
Maria Francisca – julho de 2021.
Arildo
9 de julho de 2021 às 21:45
Oi Francisca, boa noite !
Seus contos também me fez lembrar de meu pai, principalmente com aquela calma peculiar ao preparar seu cigarro de palha de milho: primeiro cortava o fumo de rolo em pedacinho, esfiapava e enrolava, delicadamente, passava a saliva para fixar seu entorno final: pronto! Depois fazia uma cerimonial para acendê-lo. Fumava com um prazer indescritível !
Se isso acontecesse hoje, diriam que era viciado em maconha, não acha ?
mariafrancisca
10 de julho de 2021 às 07:58
Oi, Arildo,
Sim, tem razão. Meu pai gostava também de um cigarrinho de palha… Quando falei da prosa, não me lembrei, mas ele, mais velho, ficava sentado num banquinho, fumando seu cigarrinho, calmo, imagino que como se pai. Essas lembranas são muito gratas, não?
Um abraço, meu amigo.
Obrigada.
Francisca
Roberto Vasco
9 de julho de 2021 às 23:13
Gostei. Viajei junto.
De vez em quando precisamos desse momento de calma e tranquilidade que essa viagem proporciona. Abç. Roberto Vasco
mariafrancisca
10 de julho de 2021 às 07:55
Meu caro amigo João Roberto,
Pode crer que meu pai era isto: uma nuvem calma. Fico feliz que tenha se sentido assim.
Grata pela leitura e pelo comentário.
Grande abraço,
Francisca
Geraldo de Castro Pereira
10 de julho de 2021 às 09:36
Bela crônica! Seu pai não apreciava também um”rapé”? Meus pais tinham o hábito de cheirar rapé! Parabéns!
mariafrancisca
10 de julho de 2021 às 13:14
Oi, Geraldo. Vi muitos idosos naquela época cheirando rapé, mas meu pai, não. Ele apreciava um cigarrinho de palha. Eu que me esqueci de contar sobre isso.
Obrigada e um abraço,
Francisca
Euler Oliveira
11 de julho de 2021 às 07:55
Adorei a crônica. Me fez lembrar as casas dos amigos onde íamos finais de semana. Subíamos nos pés de jabuticaba, laranjas e acerola. Era um fim de semana memorável.
Parabéns.
Aproveito para mandar uma crônica da Desirée sobre a casa de infância dela
https://construirresistencia.com.br/sobre-a-morte-as-acerolas-e-os-ipes/
mariafrancisca
11 de julho de 2021 às 08:15
Olá, Euler. Feliz por ver você aqui.
Essas lembranças vão sempre provocando outras lembranças, não?
Grata pela visita e pelo comentário.
Claro que vou ler a crônica da Desirée. Já sei que é coisa boa…
Um abraço a ambos,
Francisca