Mentiram-me.
Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente.
Mentem de corpo e alma completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente
A implosão da mentira (Affonso Romano de Sant’ana)
Eu vivo em estado flutuante.
Acolho uma coisa como verdade, daí a pouco, a verdade vira mentira. O que penso ser mentira, daí a pouco vira verdade.
Não há notícia de jornal, impresso ou virtual, em que se possa acreditar, sem a eterna pergunta: Será que é verdade? Não se pode crer sequer nos sites que pesquisam se uma notícia, um vídeo, são verdadeiros.
Hoje, estava ouvindo aquela música de Oswaldo Montenegro, A Lista. Tem uma parte da letra que diz assim: Quantas mentiras você condenava/ Quantas você teve que cometer. Sim, quem nunca mentiu?
Dirá: Exame de consciência nesta hora? Por que não?
Até as mentirinhas antigas de nossas mães e avós para se livrarem de visitas indesejáveis. Vassoura atrás da porta que, muitas vezes, causaram saia justa, quando uma criança esperta dizia: Mãe, por que aquela vassoura está atrás da porta? Até aquelas por necessidade mesmo, por caridade a uma pessoa com doença grave, ou para esconder algum pequeno erro próprio ou alheio.
Em questão processual, tem-se a falácia da verdade real. Que verdade real que nada! Existe? Fatos são fatos, e a versão dos fatos depende do olhar e da interpretação de cada um. A verdade, ali, é apenas provável. O Juiz, coitado, tem que se contentar com a prova dos autos, que ele também vê e com os olhos que tem. Muitas pessoas pensam que o juiz tem bola de cristal. Quantas vezes já ouvi: Mas era mentira! E foi uma injustiça! Como saber? Prova testemunhal, então… E se a testemunha contou mentira, uma mentira tão bem contada que pareça verdade?
A insanidade tomou conta do mundo. E, para os desajuizados, nada mais irritante que o juízo, como diz Mr. Bahu, personagem de Aldous Huxley, em “A Ilha”. E nesse caso, “No país dos insanos, o homem perfeitamente integrado não se torna rei”. Da mesma forma, mostra José Saramago, em “Ensaio sobre a Cegueira” (que já citei em crônica anterior): Em terra de cego, quem tem olho não é rei.
Quando essa insanidade não prejudica a vida de alguém, tolera-se, mas o que se tem visto é a exposição indevida de pessoas, sujando a sua honra, sua dignidade. Ou quando se mente em processos, principalmente os criminais, empurrando um inocente para a cadeia, senão para a morte.
Saber o que é verdade está difícil, cada vez mais.
Segundo a parábola, atribuída a Jean-Léon Gérôme, escultor e pintor francês, a mentira, vestida de verdade, anda por aí, sem que ninguém a intercepte. E a verdade parece ter se escondido, com vergonha da nudez, mas talvez nós é que talvez tenhamos vergonha, ou medo, da nudez da verdade.
Na “Ilustrada” de março de 2013, Inácio Araújo, numa crítica ao filme A marca da maldade, de Orson Wells, diz que, a partir da disputa entre dois personagens Quinlan x Vargas, Welles lança a questão que atravessa toda a sua obra: onde está a verdade e, aliás, o que é ela? E complementa: “O mundo se abre a partir da dúvida sistemática lançada pelo incomparável Welles”
Mas quando Jesus se apresentou diante de Pilatos, por obra e graça dos “donos” do Templo, à pergunta do Governador, se Ele era rei, a resposta foi (segundo João-18,37): “Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da verdade que vim ao mundo. Todo o que é da verdade, ouve a minha voz”. Mas Jesus não respondeu à pergunta de Pilates sobre o que era a verdade.
Hans Kelsen (O que é Justiça?) disse que, cético, o Governador não esperava a resposta.
Se Jesus tivesse dito o que era a verdade, teria mudado algo? Não sei.
Afinal, como disse o juiz-poeta Francisco Barbosa, em Veritas: Busco verdade/Mas como sabê-la se todos dizem tê-la?/ Cada uma, dentre pares, nenhuma/ Melhor, então, manter a procura.
Há mentiras e Mentiras. Umas trazem consequências funestas. E, hoje, vivemos um tempo assim.
E seguimos flutuando…
Maria Francisca – março de 2023.
Alda
6 de outubro de 2024 às 17:41
Querida Francisca
👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
Otima
Bjus
mariafrancisca
6 de outubro de 2024 às 20:03
Obrigada, querida Alda.
Beijos.