Caminhando contra o vento, com lenço e sem documento, no sol de quase primavera, como numa paródia do Caetano, vou ouvindo conversas aqui e acolá. Umas de raro proveito, outras, de nenhum, e outras, nem merecem uma pausa.
“Emprego? Não existe! Ouço. Ah! Emprego existe sim, só que ninguém quer trabalhar. Trabalho? Quero um emprego bom, mas só acho miséria.”
Desligo-me dos papos e vou olhando para aquele mar azul, com nadadores, mergulhadores e muitos, muitos barcos compridos, as tais canoas havaianas, aquele povo todo remando no mesmo compasso. Uma beleza de se olhar e o convite a perder-se em pensamentos e devaneios.
Sento-me num daqueles banquinhos e fico por ali.
Vejo-me criança, na minha cidade natal, sem mar, sem barco. Sem eira, nem beira. Mas brincava na areia, fazendo buracos e colocando água, como se estivesse sonhando.
Entretanto, à minha frente, uma senhora varria a calçada. Chamou-me a atenção, porque não usava o uniforme típico dos garis. Olhou-me e eu a cumprimentei. Foi a dica para ela puxar conversa.
Sentou-se ao meu lado e contou-me que morava sozinha e, de vez em quando, ia para o calçadão ajudar os garis na limpeza. E viu o preconceito que rola por ali. Eu fui a única pessoa que a cumprimentou. Conversou um tempinho e disse que precisava voltar pra casa, para fazer o almoço, pois esperava uma visita. Agradeceu, levantou-se e saiu.
Fiquei ali ainda um bom tempo, pensando como nossa boa educação caminha contra o vento, como somos preconceituosos. Todos o somos. Preto discrimina preto, pobre discrimina pobre, velho discrimina velho, mulher discrimina mulher e assim caminha a humanidade.
O preconceito é o pai da discriminação e “é filho da deseducação, daquele que não abre a cabeça (quando) observa o mundo”, segundo o historiador Severino Vicente, da Universidade de Pernambuco, citado em recente artigo de Mateus Pichonelli. Será que nosso narcisismo nos impede de ver o outro, centrando-nos em nossa forma canhestra de ver o mundo?
A questão do preconceito entrou na ordem do dia, em face de críticas aos nordestinos por certos políticos. Aí, todos falam. Mas temos discriminação dia a dia e nem vemos. A mulher é sempre alvo. Outro dia, por exemplo, escutei uma conversa atravessada (cronista ouve tudo) de um cara dizendo que o seguro de carro é mais barato quando as mulheres são as principais condutoras, porque elas dirigem mais o fogão e as panelas, e menos os carros. Meu estômago até revirou.
Uma questão recorrente é o sotaque. Carioca ri de mineiro, mineiro ri de carioca e de baiano, e assim vai. Quando morei em Salvador, uma colega de trabalho, todas as vezes que estava perto de mim, repetia tudo que eu falava, carregando no meu sotaque. Os esses e os erres eram sua predileção. Vocêsss, então…Um dia, numa reunião, eu falava e ela repetia. Subiu-me uma raiva tamanha que vociferei: QUER PARAR DE ME IMITAR? ISSO NÃO IRRITA SÓ A MIM, MAS A QUEM ESTÁ PRÓXIMO DE NÓS. PENSEI QUE SE CANSASSE COM O TEMPO, MAS CONTINUA. VOCÊ NÃO APRENDEU QUE ISSO É FALTA DE EDUCAÇÃO? Ela somente resmungou. Fiquei livre.
Numa escola, recentemente, no meu trabalho voluntário do TJC, fui com uma professora, falar para os alunos sobre assédio moral, discriminação etc. A professora falou muito bem, e deu seu depoimento sobre o que passou, quando estudante. Na hora das perguntas, um aluno disse: professora, se um colega ficar falando isso e aquilo comigo, posso quebrar a cara dele? Claro que lhe foi explicada a providência a tomar, mas eu me vi na pele daquele aluno.
Pois é. Nós adoramos ver um europeu ou americano no Brasil, mas a um venezuelano, torcemos o nariz. E eles, americanos e europeus torcem o nariz para nós. Até Gisele Bündchen, em jornal americano, foi chamada de “brasileira estourada”, “cabeça quente daquele jeito brasileiro”, numa clara atitude xenofóbica.
Devemos ter muito cuidado com o preconceito. Nossa cultura ensina que branco, loiro, principalmente, é rico, e moreno ou preto é pobre (quando não é bandido). Entrar numa loja e ser acompanhado o tempo todo, enquanto se olha os produtos é uma humilhação e já ouvi muitas vezes relato desse tipo.
Não consigo entender tanta discórdia. Como disse Rubem Braga, numa bela crônica, “quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços”, e ainda brigamos por sermos diferentes. E todos brigamos, uns mais, outro menos.
José Faleiro, preto, de periferia, escritor premiado, fala na crônica “A faxineira”, sobre uma mulher que ele sempre encontrava no ponto de ônibus, quando voltava da EJA. Apenas por a mulher ser preta, ele pensou que fosse faxineira num dos prédios elegantes perto dali. Conversando com a suposta faxineira, contando que fazia EJA (“quem sabe ela se anima volte a estudar também…”, pensou). Só que a mulher, alegremente, disse: Que maravilha! Você voltou a estudar e faz EJA? Eu sou professora naquela Universidade. Pois é. A suposta faxineira era formada em Letras, mestre e doutora. Aí, o queixo do preconceituoso caiu de vergonha.
É preciso que nossas cabeças se abram para observar o mundo, o outro, e lembrar que somos todos iguais, mas diferentes, no jeito, nos modos, no linguajar, uns bonitos, outros não tão bonitos, mas todos humanos e devem ser respeitados nas suas diferenças.
Caminhar contra o vento? Só na praia!
Maria Francisca – Início de setembro de 2022.
Leandro Bertoldo Silva
23 de outubro de 2022 às 09:40
Ah, minha amiga…
Como gosto da sua escrita, sempre precisa, elegante, no ponto certo. Ler você me inspira a escrever. E quanta verdade… E você também tem muita razão em uma coisa: “crônica ouve tudo”.. rsrsrs.
Muito obrigado!!
mariafrancisca
23 de outubro de 2022 às 20:19
Leandro, meu novo velho amigo, o Quixote das Gerais, seu trabalho também é fonte de minha inspiração. Seu site é lindo. Obrigada pelo carinho.
Grande abraço.
Sidemberg Rodrigues
23 de outubro de 2022 às 10:29
Como sempre, vocé consegue, usando a poesia na prosa, trazer um tema denso com firmeza, mas leveza. Às vezes, penso que o tal do preconceito não tem mesmo jeito. Mas tenho observado que, salvo esse fundamentalismo preocupante em que mergulhou nosso país, até que tenho observado esforços para evitar sua prática no Brasil. E escritos como este são fundamentais para trazer nossa mente à realidade irrefutável. Ao ler sobre a sigla EJA, lembrei de seu engajamento, mesmo em uma rotina intensa, abria agenda para difundir a consciência dos próprios direitos àquela educada turma a quem falamos em Serra. Parabéns por mais esta! Bjos
mariafrancisca
23 de outubro de 2022 às 20:15
Querido Sid, grata por sua leitura e comentário generoso. Como gosta de dizer meu amigo Getulio Neves, escritor e magistrado, você é um leitor qualificado, por ser essa pessoa sensível, poeta, cineasta, escritor, pianista, compositor…Que mais? Rsrs.
Beijos.
Edson Lopes
23 de outubro de 2022 às 17:04
O genial na sua escrita e que começa com um assunto no qual penso que vai por um rumo e depois penso não é esse o rumo da escrita e logo vejo que sim é o mesmo rumo. Não sei se fui claro? rsrs Uma estória com curvas retas. Adoro essas suas escrita.
mariafrancisca
23 de outubro de 2022 às 20:09
Meu amigo Edson, feliz por você gostar de meus escritos. Leitor nota DEZ, sempre me prestigiando. Obrigada. Grande abraço.
Marco Kbral
25 de outubro de 2022 às 00:29
Minha madrinha, quanto orgulho. Texto lindo, esclarecedor e hermeneuticamente fundamentado. Parabéns !
mariafrancisca
25 de outubro de 2022 às 09:48
Obrigada, querido afilhado, você é muito gentil.
Grande abraço.
Horacio Xavier
25 de outubro de 2022 às 07:01
Nossa, como seus Dizeres me tocam. Lhe admiro!
mariafrancisca
25 de outubro de 2022 às 09:47
Obrigada, caro amigo pela leitura e comentário. Quando à admiração, a recíproca é verdadeira.
Grande abraço.
Hélio
29 de outubro de 2022 às 11:09
Agora vc tem um link para sua crônica no site amatra17.org.br/literario/
Suas crônicas são ótimas. Abraço.
mariafrancisca
29 de outubro de 2022 às 17:03
Legal, meu amigo.
A AMATRA está de parabéns pelo belo site e, claro, você, seu presidente, de parabéns em dobro.
Um abraço.