CADÊ O PORTEIRO? - Maria Francisca

 1 de agosto de 2021 

 

Hoje realizei uma das minhas proezas infantis prediletas. Tomei uma enorme chuva. Sem premeditar, só que não, porque as nuvens escuras anunciavam algo além de um solzinho tímido que teimava em aparecer.

Antes que alguém pergunte se não derreti, digo, como sempre: Sou de sal grosso, inteira. Moída, ainda sobram partículas de mim. Derreter? Só com muito esforço.

Pois bem. Voltava pra casa, naquela chuva grossa, já toda ensopada, andava pela calçada em frente para me livrar das poças do calçadão, quando, ao passar perto de um prédio, vi uma senhora com um pacote às mãos e reclamando ao interfone:  Moço, depressa, por favor, está molhando o bolo!

Parei para tentar ajudar e vi que se tratava de portaria remota. O porteiro, lá das calendas, dizia à senhora que não estava conseguindo acessar o apartamento chamado. Enfim, a portadora do tal bolo resolveu ir embora com seu pacote, se era bolo, já tinha virado outro bolo.

Continuei minha caminhada, pensando nessa profissão de porteiro, uma classe quase em extinção.  Sim, porque esse da portaria remota parece mais um profissional da antiga telefonia do que porteiro. É um ser invisível… Nada mais chato do que chegar a um prédio, à noite e ficar ali, plantado, esperando. Coisas da modernidade. Só edifícios enormes, aqueles com diversas torres, ainda têm porteiros do sistema antigo. Os prédios menores, como o meu, têm um interfone e pronto. Redução de custos é a palavra de ordem.

Eu sempre tive uma ‘birra” com porteiros. Aliás, eles é que sempre tiveram birra comigo. Uns me mandam pela porta de serviço, outros me prendem no prédio, com raiva porque “burlei” as suas normas de pobre (já disse que tenho cara de pobre) ter que entrar pelo elevador de serviço em prédio chique e, outros, ainda, me vigiando o horário de sair e chegar, como se fosse um juiz dos meus atos.

Eu trabalhava em Ubá, a 120 Km de distância. Era Auditora Fiscal do Trabalho.  Normalmente retornava por volta de 20 horas. Ia e voltava de ônibus. Morta de cansada, com minha pesada pasta às mãos, o porteiro respondia ao meu cumprimento e acrescentava: Ainda trabalhando, Doutora? Sim, Seu Olímpio. O Ministério está aberto até essa hora? Sim, Seu Olímpio. Eu rapidamente entrava no elevador, ele atrás, com sua bisbilhotice, tanta, que quase prendia o pescoço na porta.

Era só ele estar em serviço e a história se repetia.

Um dia, acabou a festa. Tinha ido fazer um desses trabalhos difíceis, com uma equipe, acompanhada da Polícia Federal. Quando cheguei ao prédio, um policial todo equipado, saiu do carro da polícia para abrir a porta para mim. Seu Olímpio ficou tão assustado, que mal respondia ao meu cumprimento quando eu chegava. Eu me livrei, sem querer, da bisbilhotice dele.

Quando me lembrei dessa história, até comecei a rir, sozinha, na rua. Ainda bem que, de máscara, ninguém percebeu minha doidice. E toda molhada daquele jeito…

Hoje, alguns desavisados, chegam aos prédios sem porteiro, como no meu, e ficam, por ali, tocando o interfone sem parar. E, às vezes, resmungando: Cadê o porteiro?

 

Maria Francisca – 05.06.2021.

 

 

 

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6 comentários

  1. Parabéns pela crônica. Sempre nos surpreendendo.
    Abraços

  2. Ótima crônica. Eu mesmoo estranhei a primeira vez que estive aí em sua casa. Procurei pelo porteiro! Abraços, grande cronista!Bom dia!

  3. Belíssima crônica. Me lembrei de um texto do Moacyr Scliar, cujo porteiro também é bem interessante… Chama-se “Pausa”.

    • Meu amigo Leandro, não conheço essa crônica do Moacyr Scliar, mas sempre gostei de tudo que ele escrevia. Tenho diversos livros dele. Gostava de ler “A Folha” e ver como ele de um fato do jornal, escrevia uma história. Excelente escritor. Deixou saudades. Vou procurar essa crônica. Obrigada pela leitura e comentário. Um abraço.

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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