“Assim os dias passarão
Virão as novas gerações
Outras perguntas, prováveis canções
Outro mundo, outra gente, outras dimensões
E na hora marcada, em algum lugar
Uma estrela virá pra lhe acompanhar”
(Renato Teixeira, Almir Sater e Paulo Simões)
Assistia a uma reportagem sobre as sequelas da covid-19 no jornal de A Gazeta e a entrevistada falou a expressão “derepentemente.” Foi o link pra eu me lembrar daquela música “Urubu tá comendo gente”. Só que a memória apagou o nome do cantor da tal música.
Vim para a biblioteca, liguei o computador para pesquisar, distraí-me, e cadê que eu me lembrava do que queria pesquisar? Fiquei na maior aflição.
Mais tarde, consegui, ufa! Fiz a pesquisa, vi que era o grupo” Baiano e os Novos Caetanos” formado pelos humoristas Chico Anysio, Arnaud Rodrigues e Renato Piau.
Às vezes, quero falar uma palavra, lembrar um nome de um escritor e tudo me foge. Converso com amigos sobre isso e todos reclamam da mesma situação. Uns, até bem mais novos do que eu, esquecem nomes, perdem as chaves, não sabem onde deixaram o carro etc.
Nesse dia, como computador continuava ligado no YouTube, fui embarcando naquelas músicas engraçadas do grupo “Baiano e Novos Caetanos” e esqueci o meu esquecimento.
Mas a noite sempre se incumbe do resto dos pensamentos não completados durante o dia. Então, voltei a pensar nesses lapsos de memória, fruto dos anos vividos e vencidos.
A figura de minha mãe surgiu na mesma hora. Já estava em idade avançada. E vinha tendo falhas na memória, sim, mas a primeira vez que ela não me reconheceu foi muito triste. Chorei, chorei.
Ao chegar lá, ela perguntou quem eu era. Um baque no meu coração. Quando eu disse quem era, falou: Você está brincando comigo e foi me interrogando sobre a família, nome do meu pai, dos meus irmãos, nada disso resolvia. Minha tristeza era tanta, que passei a me sentir culpada por não ficar mais perto dela, por morar longe. Depois, acabou lembrando-se de mim, mas compreendi que, dali para a frente, só iria piorar.
Tempos atrás, falávamos que a pessoa estava caduca.
Ouço, de vez em quando, pessoas falando sobre demência de alguém da família. Qualquer demência é triste, mas a doença de Alzheimer, penso, é mais triste, porque, além dos esquecimentos, traz dificuldade para a vida diária, e alterações comportamentais. Às vezes, ataca pessoas em plena vida ativa, como nos mostra o filme, do livro homônimo, “Para Sempre, Alice”.
A tecnologia ajuda-nos muitíssimo, mas tem seus prejuízos. Quem se lembra de números de telefone de amigos? Está tudo aí, no celular, para que procurar lembrar? Como gosta de dizer meu marido, a experiência dos idosos perdeu o sentido, porque o Dr. Google resolve tudo. E está à mão. Ninguém precisa se lembrar de nada. Por isso, vamos perdendo o interesse em arquivar na memória e ela vai perdendo o ritmo. Será isso?
Hoje, se esquecemos algo importante, principalmente perto de amigos, costumamos brincar, para disfarçar. Puxa! Estou sendo atacada pelo alemão!
A longevidade é um bem conquistado pela medicina, mas nem tudo é perfeito. Sabe-se.
Minha mãe, depois, bem mais idosa (101 anos), e acamada, o tempo presente era para ela apenas um “indefinido rumor”, como diz Borges em Aleph.
Na nossa cultura não se fala sobre velhice e morte, talvez por entendermos e temermos o caminho para o mesmo rumo, já que a vida é uma incógnita. O que nos espera? Como diz Zeca Baleiro, “Tu não sabes”.
E ninguém se livra da trágica erosão dos anos.
Maria Francisca – Janeiro de2023
Arildo
14 de janeiro de 2023 às 16:26
Francisca, boa tarde!
Com esse conto você me fez lembrar de um amigo, junto de outros, quando notamos algo estranho em seu comportamento, ou seja, ele e um outro amigo que tocava violão, ele cantava “Cachoeiro, Cachoeiro, fui ao Rio de Janeiro pra voltar e não voltei … e, assim repetiu 4 vezes, foi quando sua esposa pediu pra ele parar!
Assim começou o drama dessa estranha doença e, mesmo assim, viveu, mais ou menos, 10 anos.
Levava comunhão para ele e só lembrava em rezar a Ave Maria!
Abraço
mariafrancisca
14 de janeiro de 2023 às 18:05
Oi, Arildo! É sempre muito triste essa situação que você apontou. Ainda bem que ele se lembrava de, pelo menos, Ave Maria. Com seu comentário, vi que está bem e fiquei feliz. Sentia falta da sua gentileza e me preocupava com você.
Grande abraço.
Antonio de Carvalho Pires
16 de janeiro de 2023 às 07:56
Pois é minha querida amiga, isso de esquecer as coisas, nome de pessoas com quem estou conversando etc, me ocorre com uma frequência bem razoável. Como regra me lembro logo depois. Me preocupo e me despreocupo, todos dizem que é normal isso acontecer e que não se trata do tal alemão. Inventaram até um nome bonito/diferente para designar tal situação: Anosognosia. Para lembrar esse nome tive que consultar o Dr Google rs…rs… Gostei muito do seu artigo. Bela reflexão também! Grande abraço!
mariafrancisca
16 de janeiro de 2023 às 09:51
Estamos no mesmo barco, caro Antonio. Realmente, quando as pessoas começam a se preocupar, há sempre um nome bonito para tentar a nossa despreocupação. Mas estamos, mesmo, numa época de esquecimentos vários. Obrigada pela leitura e comentário. Grande abraço.
Adriana Zuccolotto
16 de janeiro de 2023 às 17:51
Oi Francisca. Gostei de seu conto e do comentário de vida. Penso que verbalizando um ¨problema¨ a identificação que temos com ele, diminui nossa apreensão e também permite ver que temos caminho a seguir. Aguardo o próximo post.
mariafrancisca
16 de janeiro de 2023 às 20:27
Oi, Adriana, que surpresa! Nem sabia que acessava meu blog. Que bom! Tem razão. Quando falamos sobre uma questão, parece que ela tem o potencial reduzido ou, no mínimo, facilita o caminho a seguir, como você disse.
Grata pela leitura e comentário.
Grande abraço.
Attilio Carattiero
18 de janeiro de 2023 às 12:59
Oi, Maria Francisca.- Outro dia conversamos sobre o assunto e não posso deixar de parabenizá-la pela abordagem de um assunto tão atual e presente em todos os lares.
Nesse dia perguntou se eu tinha lido esse POST.
E acabei de fazê-lo agora. muito oportuno!
Vou fazer mais comentários depois.
Suas observações de cronista são ótimas.
Muito obrigado pelo seu trabalho.
mariafrancisca
19 de janeiro de 2023 às 13:00
Caro Attilio, nossas conversas diárias rendem crônica. Não é a primeira vez, você sabe. Vamos conversar mais…rs. Mais? Grata por sua leitura e comentário gentil.
Você é excelente escritor. Precisa criar coragem e publicar suas crônicas.
Um abraço.
Sidemberg Rodrigues
19 de janeiro de 2023 às 08:46
Mais uma jóia em forma de letras cuidadosamente arrumadas para encantar. Sua forma de abordar a volatilidade da memória – e do tempo – dá contornos de poesia a algo candidato à prosa dura. Essa é a missão das fadas literárias, que usam do lirismo para nos soprar doces conselhos imprescindíveis sobre “causos sérios”. Nosso disco rígido continua sempre cheio (as noites que o digam), mas os mecanismos e algoritmos de acesso do dia começam a se confundir com a chegada da idade. Sinto isso cada vez mais forte e me lembro da minha mãe, chamando pelo nome de todos os filhos da prole antes de conseguir chegar ao meu nas repreensões… rssss Parabéns por mais essa pérola. Beijo carinhoso!
mariafrancisca
19 de janeiro de 2023 às 13:05
Sid, querido amigo, você é sempre tão generoso…Grande escritor, cineasta, músico, compositor… Nossa: você é aquela pessoa de sete instrumentos, e ainda encontra tempo para ler e comentar minhas croniquetas.
Pois é. Nosso HD entupido de lembranças nada mais cabe. Se pudéssemos trocá-lo por um SSD como fiz com meu computador há pouco tempo… Mas somos humanos, né? Normal que seja assim.
Grata pelo carinho de sempre. Beijo carinhoso também.
Geraldo de Castro Pereira
20 de janeiro de 2023 às 10:31
Muita boa a sua crônica! Vc.é mesmo a nossa “Cora Coralina”capixaba (ou melhor:mineira!) Abraços fraternos!
mariafrancisca
22 de janeiro de 2023 às 14:04
Obrigada, Geraldo. São poucos os que podem ter um leitor constante e qualificado como você. Sou privilegiada, portanto. Grande abraço.