Saudades de quê? - Maria Francisca

 1 de julho de 2022 

Hoje, acordei mais tarde que de costume, com aquele escurinho do inverno que ainda nem começou e já esfria tudo, pelo menos em nossa opinião. Acostumados com calor…

Tão logo saí da cama, vi a claridade despontando em tons vivos no horizonte e notei que luzes dos navios se apagavam pouco a pouco.

Distraí-me e o sol já brilhava no mar. Na varanda, as buganvílias brancas entrelaçaram-se com as vermelhas, formando um lindo cacho. Claro, tirei foto.

Olhei para a rua. O calçadão já estava movimentado e lá fui eu para a caminhada de sempre.

Andava, andava, e nada de ver algum daqueles velhos conhecidos. Comecei a ter saudade de todos que eu encontrava naquelas minhas caminhadas, há mais de vinte anos. Muitos já se foram. Envelheceram e partiram. Outros se mudaram daqui. O bicho-covid levou muitos. Entristeceu outros, adoeceu muitos. Alguns ainda nem se recuperaram.

Passei perto do prédio onde morou um colega. Senti saudades do tempo em que íamos, sem cerimônia, à casa dos amigos.  Recebíamos da mesma forma, sem nos preocupar com coisa alguma. Um café, um suco, coisa simples, e estava tudo bom, porque o melhor, mesmo, era a amizade, o contato, os papos agradáveis. Às vezes, aparecia um violão, uma música agradável.

Caminhava, mas a saudade corria, corria.

Saudades até de mim.

Aliás, essa saudade é recorrente.

Não pergunto como Cecília Meireles: “Em que espelho ficou perdida a minha face?” Mas pergunto: Em que momento passei a ser essa velha? As pessoas gostam de enganar-nos, mas o corpo, a cabeça e a mente não mentem… O espelho está aí, para quem quiser se expor, bem como as fotos sem retoque.

Mas não há, hoje, tantos recursos para melhorar a aparência? Tratamento nos dentes, cirurgia plástica e a tal de harmonização facial que virou moda. Mas de que adianta? Farei nas pernas, nos braços, no abdômen? Teria que fazer uma mudança radical. Isso pensando apenas no corpo.

Imaginemos: Se eu pudesse mudar todo meu corpo? E a cabeça? Voltaria a ser cabeça de jovem? E minha memória? De um click estaria ótima, aprendendo tudo depressa, como era anos atrás? A saúde seria de ferro, como antes? A imunidade idem? Eu iria me adaptar a todas as modernidades, desde tecnologia até novos costumes?

Tudo vai mudando de forma vertiginosa. Uma correria desenfreada de todos. As pessoas não têm mais tempo pra nada. Só uma mensagem aqui, outra ali, até telefonar ficou difícil para muitos.

Ninguém manda telegrama, telefone fixo está acabando, e-mail só em alguns casos, a carta também se foi, mas dela tenho saudade.  Como tenho saudades das serestas. Era tão bom receber uma carta…Carta de amor, então! E escutar uma música debaixo de sua janela…Mas isso faz tempo…

Entretanto, de outras tantas coisas não tenho saudades. Das sentenças à mão, de datilografar contratos enormes, com 4 vias, carbono, tentando não errar, da geladeira que gerava pedras de gelo e tinha que ser lavada sempre, do mimeógrafo, dos meios de comunicação deficientes… E haja lembrança!

Nos anos 70, um professor disse “Haverá um tempo em que quem correr vai ficar no mesmo lugar. E quem caminhar apenas, vai ser atropelado.”

Achamos graça quando ouvimos isso, mas ele tinha razão.

Afinal, o bom da vida é passar por ela e viver. Não ser apenas uma sombra. Ter história. Envelhecer? Da vida. Como nos últimos versos de um antigo poema, “Tenho história/Tenho, sim/Escondida nos sete véus.”.

Se tenho história, tenho saudades, sim.

Mas de algumas coisas, não. Digo, apenas: Já foram tarde.

 

Maria Francisca – junho de 2022.

 

 

 

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10 comentários


  1. HELIO MARIO DE ARRUDA
    3 de julho de 2022 às 17:08

    Sempre inspirada, amiga Francisca! Suas crônicas nos refrigeram a alma!

    • Oi, Helio. Quando os amigos como você incentivam, continuamos a escrever. A inspiração é resultado disso.
      Obrigada, e um abraço.


  2. HELIO MARIO DE ARRUDA
    3 de julho de 2022 às 17:09

    Suas crônicas nos refrigeram a alma! Continuem sempre nessa toada!


  3. Janice Emaculada Moraes Moreira
    3 de julho de 2022 às 17:52

    SAUDADE É UMA COISA GOSTOSA .DAS COISAS BOAS É ÓTIMO LEMBRAR . HÁ

    OUTRAS QUE SÃO APAGADAS DA MEMÓRIA COMO VOCÊ BEM DIZ .

    PARABÉNS PELA FACILIDADE DE EXPRESSÃO .

    ADORO LER SEUS TEXTOS !

  4. Sempre ótimas suas crônicas. E contêm ensinamentos úteis para nossa vida! Parabéns! E continue nos brindando com seus belos escritos!Abraços fraternos!

  5. Textos sempre primorosos que quem observa a condição humana sem filtros e a põe na mesa. O tempo… sempre o danado! Não por acaso o Caetano tentou um “tráfico de influência” por ser famoso rsss: “Tempo, tempo, tempo, tempo… entro num acordo contigo..! Tempo, tempo, tempo, tempo…”
    (Oração ao Tempo). Bjao e parabéns!

    • Obrigada, meu amigo! O tempo é implacável. Acordo? Nem carteirada…Rsrs.
      A menos que seja como disse Mario Lago. “Eu fiz um acordo com o tempo…Nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Qualquer dia a gente se encontra. Dessa forma, vou vivendo intensamente, cada momento”…
      Lindo, não?
      Assim, procuro viver.
      Grande abraço.

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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