Cansada de olhar pela varanda, resolvi sair de casa hoje. Queria vencer o marasmo e a inquietude. Pensei, assim, retomar a compostura habitual. Andei devagar, subi 16 degraus, mais devagar ainda, e cheguei. Ao terraço.
De lá, olhei pra longe. Só se via prédio, porque uma grade de proteção impedia a visão do mar, das ruas, dos carros, apenas navios pequenininhos ao longe.
Mas via o céu. Não tinha uma nuvem. Limpo e azul este céu de Vila Velha. O sol, aproveitando-se da liberdade, brilhava o quanto podia. E podia muito, porque daí a pouco eu já sentia calor.
Fiquei um tempão olhando pra cima. Cansei. Resolvi caminhar ali mesmo. Dei voltas e mais voltas. Cantei baixinho, rezei dois terços, recitei poemas, inventei versos (que esqueci um minuto depois).
Então, comecei a dar corda à imaginação. Respirei fundo, inspirei, expirei diversas vezes, tentando entrar no clima. Nada.
Cantei, ora esganiçada, ora rouca, tentando vozes e vozes distintas. Nada. Nada adiantava.
Retornei do meu “grande” passeio e abri o whatsapp. Comecei a rir, da primeira coisa que vi. Uma mensagem de um colega, em que uma pessoa dizia que estava com uma mancha amarela no corpo (já fiquei atenta) e, depois de exames e mais exames, descobriu-se a doença da inércia: mofo.
Então, lembrei-me de um fato acontecido nos idos anos 80. Morávamos em Salvador. Uma senhora de outro Estado estava na casa do filho que morava naquela cidade. Um dia, ela foi visitar-nos, agradável surpresa, e, quando ia embora, fui levá-la até a portaria do prédio. Ao entrar no elevador, cuja luz era bem forte e clara, ela olhou-se no espelho e disse: Puxa! Como envelheci nesta Cidade. Olhe como estou cheia de rugas. Nossa! Estou horrível. Eu disse: Não, a senhora está ótima. Ela apenas riu.
Em verdade, eu precisava ter dito é que ela estava tal qual havia chegado à cidade, porque estava ali há menos de uma semana. Mas seria grosseiro de minha parte.
Ontem, aconteceu comigo algo parecido. Tive que ir à portaria receber um objeto que uma amiga comprara para mim, e vi que ela me olhou com estranheza. Na hora, não entendi, mas não dava tempo de perguntar, porque estava parada na rua e teria que ser rápida. Em casa, olhei-me no espelho e vi. Estava péssima. Com uma roupa velha, horrível, o cabelo preso com um grampão e com a tintura vencida, um corte mais do que tosco (feito por mim), de chinelo velho, enfim, da pior forma. Depois, ri. Minha amiga deve ter pensado que eu estava muito velha e mofada.
Pois é. Fiquei muito velha, feia e mofada nesse isolamento.
Culpa do bicho-corona.
Maria Francisca – Final de Junho de 2020.
Andra Valladares
5 de julho de 2020 às 18:13
Parabéns pela excelente crônica, Confreira. Estamos nos adaptando a esse período de recolhimento forçado e acabamos mesmo nos descuidando um pouco da aparência, por estarmos mais focados em coisas mais essenciais. Só fico me perguntando, se quando isso passar, estaremos mudados ou se regressaremos ao nosso cotidiano de aparências externas que muitas vezes não refletem o nosso interior.
mariafrancisca
8 de julho de 2020 às 21:00
Andra, grata pela leitura e pelo comentário. Essa mudança, creio, vai depender do aprendizado de cada uma de nós. Uns, passam pelo fogo, como disse Rubem Alves, em bela crônica, e não se transformam. Tomara que nosso mundo melhore em todos os aspectos, porque está ruim demais, não é? Grande abraço.
Edson Lopes
5 de julho de 2020 às 18:33
Mais uma jóia de texto. Quanto a aparência;não se preocupe,depois desse isolamento todos nós sairemos modificados,por fora e por dentro.kkkkkk
Agora se precisar e quiser,já estou craque na pintura de cabelos. Pergunta pra Maura.rsrsrs
mariafrancisca
8 de julho de 2020 às 20:58
Sei não, Edson. Antes, vou perguntar à Maura, mesmo…rsrs. Mas você é sempre muito gentil e meu fiel leitor. Grata pelo carinho de sempre. Grande abraço.
José Roberto de Oliveira
5 de julho de 2020 às 21:43
Oi Francisca!
Belo texto…meus parabéns.
Mas…quase sempre a imagem introjetada em nossa mente…no nosso imaginário, nesse aspecto estetica, é sempre mais cruel…crudelissimo, quando declarado por uma mulher.
Penso, no seu caso,que voce só estava diferente do “modus vivendi” social.
Voce estava , naquele exato momento, digamos, com um sentir domiciliar…uma das Franciscas.
Quanto a personagem de Salvador- BA, nao dava pra trocar o espelho do elevador, nao é mesmo!
Um grande abraco.
mariafrancisca
8 de julho de 2020 às 20:57
Zé, uma das franciscas, das muitas que me habitam, está cada vez pior…rsrs. Grande abraço e obrigada pela gentileza, pela leitura e pelo comentário. Grande abraço.
Teresinha
6 de julho de 2020 às 19:12
Viajei no seu texto! Fiquei com saudades de Vila Velha e dos amigos, ah!!! Que vontade de poder sair e dar asas à imaginação!
Mas a gratidão está presente nos meus pensamentos!
Grande beijo, com mofo e tudo mais.kkkk
mariafrancisca
8 de julho de 2020 às 20:55
Oi, Tê. Saudade de você também. Esses dias, pensei que, se estivesse aqui, iria pedir outros quadros para minha varanda. Aqueles estão ainda muito bonitos, mas velhinhos… Grata pelo carinho, pela leitura pelo comentário. Lembra que meu primeiro blog foi você quem idealizou, criou e me entregou prontinho? Beijos (mofados? não pega? Rsrs)
Angela Jardim
6 de julho de 2020 às 21:23
Oi, Confreira, também me sinto assim. Belo texto, expressou uma tendência geral e inconfessa, até então, por muitas. Me deu coragem para assumir, em timido sussurro aqui, que estou mais despojada do que de costume, não tenho me exercitado, por conta de uma fascite plantar, e acho que estes meses estão produzindo efeito exponencial, cruel mesmo! Nada de salão, de lojas, excluindo o supérfluo.Simplificando a vida. Estou sobrevivendo direito, ou seja, expondo o meu avesso! E quando tudo isto acabar, saberemos quem são aquelas que valorizaram a vida de todos, terão abraços mais calorosos, mais propensas a esquecerem batons e esmaltes, mas gente que teremos vontade de manter a menos de um metro de nós, pois altruístas, abriram mão de vaidades,durante uma eternidade! Essas são as que amam de verdade!
mariafrancisca
8 de julho de 2020 às 20:50
Belo texto você escreveu, a pretexto de comentar minha crônica, Angela. Você é ótima com as palavras. E tem razão em tudo que disse. Estamos nos reformando por dentro e por fora. Grande abraço e obrigada pela leitura e pelo comentário. Abraço fraterno.
Vânia
7 de julho de 2020 às 06:49
Francisca,
Mário Quintana em uma entrevista disse que até uma vírgula do que escreveu foi confessional. Lendo sua crônica vejo a confissão de muitas e muitos de nós. Mal cortamos e pintamos nossos cabelos, guardamos nossas roupas novas, só lixamos nossas unhas…Por aí.
Principalmente, lemos os amigos. E em cada palavra escrita é muito bom sentir esse transparecer suave.
Abraços
mariafrancisca
8 de julho de 2020 às 20:47
Mario Quintana tem toda razão. Em tudo que escrevemos, há algo de nós. E, no caso dessa crônica, a situação atinge muita gente, que está vivendo dessa forma. Grata pela leitura e pelo comentário. Abraços.
valsema Rodrigues---
15 de julho de 2020 às 14:50
Agora depois de nos encantar com Crônicas alegres e interessantes, estará nos presenteando com suas conversas com as estrelas; hábitos de alguns Poetas…Parabéns e sucesso sempre ! Obrigada por nos enriquecer com seus belos textos… abraços carinhosos – valsema.
mariafrancisca
18 de julho de 2020 às 18:27
Gratíssima, Valsema, por sua leitura e pelo comentário carinhoso, além de sua presença, ontem, no lançamento o meu livro. Grande abraço.
Jamyle
24 de julho de 2020 às 01:47
Parabéns pela belíssima crônica! Como disse Andra Valladares em seu comentário: “Estamos nos adaptando a esse período de recolhimento forçado e acabamos mesmo nos descuidando um pouco da aparência, por estarmos mais focados em coisas mais essenciais.” E acrescento que “o essencial é invisível aos olhos”, como bem disse Antoine de Saint-Exupéry. O momento difícil pelo qual o mundo passa é um momento para olharmos para nosso interior, um momento de pausa, de reflexão, de muita paciência! Como vc disse Maria Francisca: “Uns, passam pelo fogo, como disse Rubem Alves, em bela crônica, e não se transformam. Tomara que nosso mundo melhore em todos os aspectos, porque está ruim demais, não é?” Vdd, tomara que nosso mundo melhore, muitos dizem ter esperança de dias melhores, mas eu espero sinceramente, um mundo com pessoas melhores!!! Estou muito feliz em encontrar este belo texto e tb surpresa em ver que a autora é vc Maria Franscisca, que em sua atuação no TRT da 17ª Região (Espírito Santo) sempre foi exemplo e fonte de inspiração para mim na Justiça do Trabalho!!! Parabéns e obrigada pela crônica encantadora!!!
mariafrancisca
30 de julho de 2020 às 18:21
Obrigada,Jamyle, pela leitura e pela gentileza do comentário. Eu costumo dizer, como Suassuna, que sou uma realista esperançosa. Então, creio que teremos um mundo melhor, porque teremos pessoas melhores, não é? Grande abraço e seja feliz.