Tenho uma palavra na ponta da língua.
Herança de minha mãe, último tom, numa casa sempre cheia. Ora crianças, ora compadres, comadres, afilhados, parentes, todos juntos, e mais quem viesse. E a palavra se fazia ouvir de cada canto da casa. O barulho do mundo estava lá.
A palavra dava-se em brados, como se fora um profeta a alertar o povo para o fim do mundo. Poeta algum naquele meio, tampouco orador ou juiz. Mas a palavra era a arma de todos naquele ambiente alegre e ruidoso.
Se um pequeno silêncio se fazia, quem estava fora do grupo acorria, como se um acidente ocorrera. Palavra, palavra, palavra, tudo era palavra. Cantada, falada, discursada, armada ou desarmada.
Palavras escritas iam e vinham em cartas e mais cartas.
Meu pai, ao contrário, era a pausa, o intervalo de silêncio naquele vozerio sem fim. Sua palavra silenciosa era o olhar. Olhar calmo, bondoso, ou zangado, que obedecíamos como se fora um grito.
Eu amava o silêncio do meu pai. Eu queria seu silêncio, eu precisava do silêncio de meu pai, para mim. Só não conseguia alcançar seu horizonte, porque eu sentia e via tudo à altura dos meus olhos. Por isso, herdei a palavra de minha mãe, seu tom e sua destreza no dizer. Às vezes, quero silenciar, mas a palavra sai. Não é minha, não a conduzo, ela simplesmente é a palavra.
A família tornou-se ruidosa por essa herança. Quando se juntam, é sempre festa, alegria, risadas, palavras, palavras… Tudo vira piada, sempre lembrada e relembrada por todos, passando de geração em geração. As mesmas. Usadas, usadas, sem perder a substância.
Um conclave? Poderia pensar alguém que chegasse na hora.
Não, apenas reunião de família. Família de palavras. Nada de açoites. Palavras leves. Carinho, apenas carinhos ruidosos.
Carinho em palavras.
Maria Francisca – maio de 2020.
Edson Lopes
14 de junho de 2020 às 17:22
Nunca nada falado ou escrito por você será só palavras…..E certamente o silêncio do seu pai faz parte das suas palavras.Belo texto. Não é nada menos esperado de você. Parabéns mais uma vez.
Regina Lúcia Pinto Rangel
16 de junho de 2020 às 06:47
Bom dia,amiga
Belas palavras.As palavras não se perderam mas ficaram na memória da Escritora.Com tantas conversas inúteis atualmente é bem melhor recordar das rodas de conversas de antigamente. Parabéns! Bom dia sem Pandemia!
mariafrancisca
16 de junho de 2020 às 07:43
Oi, Regina. Bom dia, sem pandemia. Obrigada pela leitura e comentário.
mariafrancisca
18 de junho de 2020 às 17:22
Obrigada, Edson. Você é um leitor fiel e dedicado. E grande amigo, claro. Obrigada. Grande abraço.
João Tadeu
14 de junho de 2020 às 17:28
Me fez lembrar minha mãe com seus dez filhos e nos finais de semana costumávamos passar o Domingo com ela. Era muito neto (28), (rsrs) choro, gritos às vezes noras brigando com a outra por causa de criança e a minha mãe sempre tranquila.
Hoje quando nos encontramos comentamos como era possível Dona Mariquinha ficar calma com aquela bagunça, (Deus a tenha) mas era divertido.
Abraços!
mariafrancisca
18 de junho de 2020 às 17:20
OI, Tadeu. Cada família uma história e sempre bela, não é? Grata pela leitura e pelo comentário. Grande abraço.
Simone
14 de junho de 2020 às 20:52
Palavras, carinho, um olhar, um apertar de lábios, o silêncio, tudo comunica. Belo texto Francisca.
mariafrancisca
15 de junho de 2020 às 21:26
Oi, Simone. Você sabe disso, carinhosa que é. Obrigada. Bjs.
ivete flores catta preta ramos
14 de junho de 2020 às 21:29
Delícia de texto,Francisca!
mariafrancisca
15 de junho de 2020 às 21:25
Obrigada, Ivete. Saudades de você. Bjs.
Lino Faria Petelinkar
15 de junho de 2020 às 22:46
Cara Francisca, essa história é quase da minha família. Só que lá em casa era o contrário: pai era o conversador e minha mãe do silêncio e trabalho. Grato por compartilhar seus lindos momentos. Fraterno abraço. Lino
mariafrancisca
16 de junho de 2020 às 07:41
Pois é, Lino. Em cada casa, em cada família, uma história. Obrigada. Abraço fraterno.
Genesio Vivanco
18 de junho de 2020 às 15:40
Minha querida poeta e amiga. Nesta pandemia nada melhor para preenchermos o vazio com palavras de alegria. Principalmente quando transmite muito amor. Com a palavra você nos anima, com o seu olhar, minguado em humildade e derretido em bondade, você nos acalenta. Obrigado, que Deus a abençoe!
mariafrancisca
18 de junho de 2020 às 17:00
Genésio, querido. Muito bom ter você falando no meu blog. Grata pelo carinho. Um abraço e que Deus o abençoe também.
Ney
22 de junho de 2020 às 21:05
Gostei Francisca. Tem um trecho que tem um ritmo gostoso e eu o li umas três vezes, como a gente faz com as músicas que gosta…
Bj
mariafrancisca
23 de junho de 2020 às 07:56
Obrigada, Ney. Você anda sumido de nosso grupo. Poeta que é, tem “obrigação” de escrever. Seus leitores exigem…Eu, em primeiro lugar.
Bjs.