AINDA TEMOS ESCRAVOS, SIM, SENHOR! - Maria Francisca

 5 de agosto de 2018 


Diz Eduardo Galeano (Desmemória/3, in Livro dos Abraços) que, nas Ilhas Francesas do Caribe, Napoleão restabeleceu a escravidão, em 1801. A sangue e fogo, teria ele obrigado os negros livres a voltarem a ser escravos nas plantações.
Lemos essas histórias e ficamos arrepiados. Lembramos das agruras por que passaram nossos negros escravos que, segundo pensamos, foram libertados. Leonardo Boff (“A Gazeta” de 22.02.2017), questiona: No Brasil, fizemos a abolição da escravidão, mas quando faremos a abolição da fome”? E acrescenta: “Cerca de metade da humanidade vive em situação de penúria, seja com pobreza extrema, seja simplesmente com pobreza, ao lado da mais aviltante riqueza”.
Será que abolimos, mesmo, a escravidão? Não. Como a fome ainda não foi abolida, trabalhadores livres, negros ou não, vivem submetidos à escravidão contemporânea, violação dos direitos humanos reconhecida pelo Brasil, por pressão de organismos internacionais, em 1995.
Famílias inteiras são recrutadas em cidades do interior, onde a mão de obra é farta e o emprego raro, com promessa de trabalho, moradia e salário. Cheios de esperança, a pobreza extrema cria oásis de prosperidade na imaginação dessas pessoas, levando-as a acreditarem numa vida melhor, em qualquer lugar fora dali. E lá vão eles todos para a colheita de café, o corte de cana, as carvoarias e até para fábricas de roupas. Lá, não há o paraíso esperado. Passam a viver como escravos. Sem correntes, mas sem liberdade, sem dignidade, explorados.
Como exemplo, numa fiscalização em Sooretama (ES) em 2014, os auditores encontraram esgoto aberto, passando por dentro de um dos abrigos e sendo despejado ao lado dos dormitórios. Os trabalhadores, segundo contaram, dormiam e alimentavam-se junto àquela sujeira, sentindo o cheiro horrível que dali emanava. Recentemente, auditores Fiscais, acompanhados da Polícia Federal libertaram uma família de nove pessoas vivendo em condição degradante em Brejetuba (ES).
Todos conhecem as histórias dos imigrantes estrangeiros nas confecções em São Paulo, fartamente divulgadas pela imprensa. Muitas vezes adquirimos essas roupas a baixo preço, sem saber que mãos calosas, sofridas e famintas esperam por essa vida digna, onde todos são iguais, prometida pela Constituição da República.
É inacreditável: não podem sair desses trabalhos degradantes? Muita gente se pergunta. Por que não fogem? O pior é que, por falta de políticas públicas, os que conseguem fugir, mesmo correndo risco de vida, ou os que são libertados pelas autoridades, tendem a retornar a sua cidade de origem, na mesma miséria, facilitando novo aliciamento para outro trabalho, onde serão novamente explorados, perpetuando o ciclo infame.
E os que permanecem nesse trabalho-castigo, sem vez e voz, trabalham, trabalham, esperando, por sua própria luta, poder um dia sair daquele sofrimento, libertar-se, mas nunca conseguem pagar a dívida da viagem e da comida e até das ferramentas. Valores sempre maiores do que recebem de seus empregadores invisíveis: contratados por um, trabalham para outro, parceiro de outro que terceirizou o corte de cana, o serviço da carvoaria ou, mesmo, a confecção da roupa. É como no poema “A quadrilha” de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história”.
Quando são encontrados em condição degradante, difícil descobrir o responsável por aquela história real. O dono da empresa (ou fazenda) é sempre o J. Pinto Fernandes, do Drummond: não entrou na história. Aparece como o inocente, não fez nada, arrendou o imóvel, terceirizou os serviços etc.
Só nos resta reconhecer, como os “heróis” de George Orwell – Todos são iguais, mas uns são mais iguais que outros.
Até quando?

Maria Francisca – Publicado em dezembro de 2017, na Revista Literária Café-com-Letras, Ano 15, nº 15.

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4 comentários


  1. Maria Wilma de Macedo Gontijo
    5 de agosto de 2018 às 22:32

    Cara Francisca: talvez os pobres imigrantes que adentram o Brasil neste momento em busca de socorro sejam a versão atualizada do contingente de “escravisáveis” que venham a suprir as contemporâneas senzalas brasileiras, urbanas ou rurais. Tristeza!

    • Sim, Maria Wilma, infelizmente, eles entram nessa roda triste. Falta emprego, falta comida, falta tudo. E exploradores não faltam. Beijos.


  2. geraldo de castro pereira
    6 de agosto de 2018 às 20:44

    Francisca, seu texto é excelente. Eu já o havia lido na Revista Café Com Letras, da Academia de Letras de Teófilo Otoni,pois também participei da mencionada revista literária como você tem ciência,como membro correspondente.Parabéns, mais uma vez!

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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