ALGARAVIA DE PÁSSAROS - Maria Francisca

 18 de novembro de 2024 

Acordei cedo.
O dia muito claro, os passarinhos saíram do sério, acordaram antes do sol e resolveram me alegrar, numa terna algazarra na varanda.
Fiquei ali parada alguns minutos, ouvindo a algaravia. E o pensamento voando, como pássaros sem rumo.
Voei, voei e resolvi voltar.
Levantei-me, cuidei do café, fiz meu desjejum e fui para a academia para meus exercícios matinais, visando tirar a ferrugem dos membros, principalmente inferiores, que já brigam contra a velhice.
Lá é uma festa, sempre. Muitos se conhecem e são tantos os bons dias alegres que os exercícios ficam menos pesados.
Comecei a trabalhar os músculos e, ao sair de um aparelho, um lenço que carrego sempre, caiu no chão e alguém alertou: Olhe, caiu um papel no chão.
Uma moça forte, malhada, estruturada, como diz uma amiga, senhora de si, estava perto de onde eu estava, e disse à que alertou: é daquela senhorinha que malhava ali na extensora.
Peguei meu lenço no chão, agradeci, mas minha vontade era perguntar à moça o que significava aquele tratamento: ‘senhorinha”. Eu conhecia diversos pronomes de tratamento, mas aquele era pronome de “destratamento”.
No dicionário, não há o significado da palavra dita pela moça.
Já tratei disso numa outra crônica. Da mudança do sentido das palavras e da infantilização do idoso.
Senhorinha, hoje, é um termo comum, mas, para mim, é pejorativo. É uma forma de reduzir a importância da pessoa idosa.
Não dei qualquer resposta à moça, por covardia, medo de virar ”barraco” ,já que as pessoas vivem “armadas”, por ser uma pessoa dita gentil (que sina!), mas fiquei com uma raiva danada.

Em verdade, o meu aborrecimento, minha raiva, melhor, nem foi tanto pela palavra usada, mas pelo tom da voz que, em vez de “aquela senhorinha”, soou como “aquela coisinha”. Tom de desprezo.
Como disse Aurê Aguiar, em crônica no Jornal “A Gazeta” de 01.12.2023, vivemos a era da deselegância.
Quando saí da dita Academia, hoje, diferente do ânimo da entrada, estava reduzida a ossos de minhoca, usando um termo antigo, já que engoli a ofensa. E engolir sapo não é minha predileção, pois política não sou, nem quero ser.
Na rua, para me acalmar, procurei na mente o canto dos pássaros pela manhã, e o que diria minha mãe: “Deixe pra lá. Urro de burro não chega ao céu!” Ri sozinha, segui meu caminho, a pensar naquela algaravia da madrugada que me deixou tão feliz.
Ao chegar em casa, por incrível que pareça, tocava uma música comandada pela Alexa que eu havia esquecido ligada em músicas religiosas. Ouvi tudo e conclui, como na música final: a vida é bem mais do que o mundo ensina.
E fiquei em paz.

Maria Francisca, dezembro de 2023.

 

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Maria Francisca Lacerda
Poeta e escritora.
Espírito Santo - Brasil.


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